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sábado, 20 de outubro de 2012

Considerações sobre a crítica no mundo digital

Entre os dias 16 e 19 de outubro, foram realizadas quatro mesas de debate na Caixa Cultural sobre os novos rumos da crítica cultural em tempos de internet. Com a provocação "Qual o papel da crítica cultural quando a internet dá a todo mundo direito de opinião?", o seminário Crítica da crítica: expansões e limites do pensamento 2.0 reuniu nomes conhecidos em quatro áreas específicas: música, artes visuais, cinema e literatura. Já que tenho um blog e portanto também posso dar a minha opinião, deixo aqui alguns comentários (im)pertinentes sobre o tema.
De início, impliquei de imediato com a questão central do seminário. Opinião e crítica não são sinônimos, portanto não entendi muito bem o que teria a ver o fato de muitas pessoas poderem publicar na internet suas opiniões sobre os mais variados temas com a nova função que a crítica desempenharia a partir disso. A crítica, a meu ver, deveria fazer o que sempre fez, isto é, a construção de um texto outro a partir de uma obra artística apontando novas possibilidades e direções. Em outras palavras, a crítica teria como uma de suas funções esmiuçar o objeto analisado de modo a construir uma nova obra, de aporte mais teórico-filosófico, capaz de lançar novas luzes sobre a arte. Não se trata, em absoluto, de uma análise mercadológica de modo a orientar o leitor se ele deve ou não consumir o alvo da crítica, ou seja, um texto que se limita a explicar porque o consumidor deve ou não assistir a um filme - se o bonequinho está dormindo ou aplaudindo, por exemplo - não é, a meu ver, um texto crítico, mas sim, quando muito, um texto tendencioso com finalidades outras, enfim, uma opinião, menos um texto crítico - a crítica não é julgadora, não compete a ela dizer se a obra é boa ou não.
Tenho consciência que essa "confusão" se dá porque o espaço destinado à crítica em jornais e periódicos acaba inibindo os limites entre uma resenha, uma crônica e uma crítica propriamente dita. É como se houvesse uma hibridização desta última, mais acentuada quando ela sai da publicação impressa e ganha o espaço virtual. Neste, os blogs, que geralmente mesclam as informações textuais com o empirismo do blogueiro, numa espécie de invenção de si, de exercício autoficcional, colaboram para misturar e condensar opinião, vida empírica, resenha, crônica e comentários críticos sem o devido aprofundamento por falta de espaço. Se por um lado torna-se mais difícil o surgimento de textos críticos na internet (e também em jornais), por outro o espaço virtual oferece uma altenativa criativa para quem quer se expressar e registrar a sua opinião. A efervescência e a democratização de blogs dos mais variados tipos e conteúdos colaboram para descentralizar a legitimidade outrora conferida apenas aos críticos dos grandes veículos midiáticos, espécies de donos da razão sobre seus campos de atuação. E penso que isso é bastante saudável. Lembremos que Benjamin já profetizava que na era da informação leitores também seriam autores.
Talvez a crescente publicação em blogs esteja demarcando um novo tipo de fazer crítico, mas ainda fico um tanto cauteloso em afirmar ser este um novo espaço para a crítica; isto porque ela é um texto complexo, incapaz de ser veiculada em textos curtos e rasteiros. Por outro lado, e isso é uma opinião minha, de um leitor acostumado e amante de livros, a leitura de textos extensos em blogs é desagradável e desestimulante, indiciando a dificuldade de textos mais complexos e elaborados na internet.
Ainda sinto-me reticente em concordar que os blogs são sim um espaço de prática crítica, mas, por outro lado, concordo facilmente que eles já são utilizados como novo espaço de labor literário. Se é possível que a literatura hoje sofra certas adequações devido ao meio em que ela é produzida, como, por exemplo, uma nova tipologia de narrador presente nos blogs, seria possível também concordar que a crítica também sofre as mesmas adequações? Se sim, talvez seja mais apropriado dizer que a crítica, mutatis mudandis, é outra coisa e, redefinindo-a, a acolhemo-na no espaço virtual.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Redenção

Quando criança sonhava em ser astronauta, ou piloto de Fórmula 1. Queria ser diferente, fazer alguma coisa que me distinguisse dos demais, ser manchete, reconhecido, invejado. Não podia me imaginar trabalhando num escritório qualquer, sem nenhuma emoção, vítima da mesmice do cotidiano. Não, eu seria diferente. Ou astronauta ou piloto de Fórmula 1.
Nada melhor para mim, que vivia com a cabeça no mundo da lua, do que fazer disso minha profissão. Sair da órbita terrestre, passar pela Lua, conhecer galáxias distantes e, quando voltar, ter aos meus pés todas as mulheres que eu quisesse. Do espaço, veria a Terra pequenininha, um ponto azul lindo e distante, capaz de caber no meu bolso. Sim, eu teria muito o que viver, inúmeras realizações, uma vida repleta de sucesso. Um planeta só seria pouco para mim.
Mas, não fosse isso, meu plano B estava assegurado. Viveria a 300km/h, sem tempo a perder, a cada semana em uma pista diferente. Após alguns poucos anos, certamente me transformaria no ídolo de milhões de pessoas, estaria em todos os lugares, em programas de televisão, outdoors, capas de revistas. Teria produtos com meu nome, com meu rosto na embalagem, seria exemplo para as crianças, e viveria a mil por hora, mesmo fora das pistas. Quando criança, sempre soube que havia muito o que fazer e que as minhas 24 horas diárias não seriam suficientes para todos os meus anseios. Pressa, eu tinha pressa para o sucesso, para viver a vida, para ser feliz, reconhecido e bem-sucedido.
À medida que eu fui crescendo, porém, minhas ambições infantis cederam espaço para metas mais plausíveis, realistas e comuns. Já não desejava conhecer o universo, tampouco correr num carro para atingir a fama e o estrelato. Viveria, agora, feliz com alguma profissão que me propiciasse uma boa qualidade de vida, que me permitisse algumas excentricidades, como viajar pelo mundo, pular de paraquedas, descer numa jaula submarina para ver, frente a frente, o grande tubarão branco, praticar esportes radicais – e sim, ter muitas mulheres. Poderia ser talvez um publicitário, roteirista ou quem sabe cineasta.
Mamãe me dizia que eu podia ser o que eu quisesse, que eu era um jovem talentoso, bom aluno, escrevia ótimas redações, que a Rede Globo me pagaria o que eu pedisse para me ter como um de seus redatores. Mamãe me dizia, enfim, que eu podia continuar sonhando, pois um dia meus sonhos se transformariam em realidade. Nesse caso, não tinha erro. Bastava aguardar e esperar a vida acontecer, tudo não passava de uma questão de tempo. E enquanto aguardava, enquanto esperava o início de meu final feliz, ia vivendo a vida sem grandes sobressaltos, sem preocupações, certo de que o meu destino estava traçado.
Mas o tempo passou e parece que mamãe se enganou. Não me tornei publicitário, cineasta, tampouco redator de televisão. O que mais me aproxima das minhas expectativas profissionais é a manutenção de um blog na internet onde posto, regularmente, algumas impressões de meu dia a dia. Desiludido, escrevo comentários sarcásticos sobre tudo aquilo que a vida me negou. Não poupo nada nem ninguém. Nem mesmo meus (poucos) leitores, meia dúzia de quatro ou cinco fiéis seguidores. Às vezes, até publico alguma coisa mais lírica, a depender de meu humor. E assim vou vivendo no meu conjugado aqui na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Sem dinheiro, sem mulheres, sem aventuras.
O alvo predileto de minhas críticas internáuticas é o número elevado de pessoas que acreditam na profecia de que a Terra vai acabar em 2012. Como assim? Quer dizer que a vida se extinguirá, que todos sucumbiremos, que não mais haverá amanhã? Idiotice, pensava eu. Agora, porém, acho que posso confessar que minha implicância com os crédulos do fim do mundo se dava justamente porque a minha vida de glórias nunca começou, que dirá terminar. Como posso encerrar minha existência se eu simplesmente não iniciei nada. Não tive filhos, não plantei uma árvore e muito menos escrevi um livro. Quer dizer que a minha existência foi completamente infrutífera?! Não realizei nenhum dos meus sonhos, não comi nem a metade das mulheres que eu desejei, não tive sucesso, dinheiro, status. Mas parece que agora sim eu vou para o espaço, a minha hora chegou. Inexoravelmente.
Sim, o mundo vai acabar. Hoje. Na verdade já começou o fim, resta-me apenas esperar que a onda gigante que começou a destruir tudo no Japão e na Oceania atinja o Brasil e o resto do mundo. Lá fora, ouço as buzinas, os gritos, o desespero. Muitos pretendem subir a serra para se refugiar da fúria advinda do oceano, mas a angústia da população só tornará o fim mais agônico. A televisão, que vai segundo a segundo noticiando o fim ao vivo, foi devidamente desligada. Aguardo a minha hora com resignação. Até com uma inesperada paz. Ao meu lado, meu Marlboro, minha cerveja e meu desejo de deixar alguma coisa para a posteridade, para tornar menos vazia minha passagem pelo planeta. Cheguei a me perguntar, entre uma tragada e outra, que diferença isso faz agora, no meu último dia de vida. E a resposta que me dei é que possuo a última oportunidade de fazer alguma coisa que valha a pena; que posso me redimir de mim mesmo enquanto espero a onda avassaladora chegar e me engolir; que posso fazer a cesta de três pontos no último segundo da final das Olimpíadas que não se realizarão.
Não deixarei minha última oportunidade escapar. Sentado diante de meu laptop, escrevo um conto autobiográfico que dará conta do que eu (não) fui em 37 anos de vida. Afinal, quem sabe se um único casal conseguirá resistir à fúria da natureza e repovoará o mundo, como um dia fizeram Adão e Eva? Ou se, num futuro distante, uma nave interplanetária não aterrissa aqui numa missão exploratória e descobre que um de seus nativos, depois de sonhar em conquistar o espaço, se conforta em deixar um conto que valha a pena ser lido?
Na verdade, mais do que tudo isso, o que me motiva a escrever este conto não são meus futuros leitores alienígenas, muito menos uma raça mutante oriunda da maior e última hecatombe da humanidade que poderá vir a descobrir a subjetividade de um de seus ancestrais, mas um acerto de contas comigo mesmo. Eu, que vivi de maneira inútil e desapercebida; que nada deixei de legado para as possíveis futuras gerações; que estive longe de meus planos mais sinceros, puros e imaculados; eu, para não morrer como um cão, no meu Processo; para fugir do nada da morte apregoada por Sartre, venho aqui não para escrever um conto, mas fazer uma reparação comigo mesmo. Este conto, escrito a poucos minutos de meu fim, será minha redenção. Poderei, depois do ponto final, partir em paz. Mamãe me dizia que eu poderia ser o que eu quisesse. Tudo o que eu quero agora é concluir este texto. Engenheiro das obras inacabadas, me dou agora a oportunidade de finalizar alguma coisa digna de nota. Ou que pelo menos mereça ser lida por alguém – se alguém houver para lê-la.
Vou me lembrando de todos os livros que comecei e não terminei de ler, mais preocupado que estava em curtir a vida e, por isso mesmo, não me dando conta de que as coisas que realmente valem a pena não são fugazes, mas perpassam gerações. É isso! A literatura é algo que desde Homero permanece, sejam as epopeias clássicas, os poemas líricos ou os romances burgueses. Uma vez escrito e registrado, o texto não é mais do autor, é da humanidade, da posteridade. Finalmente, à espera de meu fim iminente, percebo que o que sempre almejei esteve dentro de mim. Que importância teriam hoje os produtos com meu nome e rosto? Alguém se lembraria de um astronauta tupiniquim, que teria vivido provavelmente nos Estados Unidos, longe de sua terra e de sua gente? As inúmeras mulheres com quem teria dividido minha cama chorariam a minha morte? Certamente não. Mas este conto me redime. Com ele transcendo e alcanço a imortalidade. Agora autor, coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou mais um Zé Ninguém. Agora, eu escrevo porque preciso, como sempre ouvi os escritores de verdade dizerem. Há em mim uma necessidade de me expressar, de externar meus sentimentos, de não permitir que a minha vida se finde junto com o meu corpo, condenado à espera da onda gigante.
Vou morrer em breve. A internet continua, segundo a segundo, atualizando a população sobre o avanço incontido da onda. Ilhas e mais ilhas do pacífico desapareceram. Falta muito pouco. E mal comecei a escrever. Mamãe sempre se orgulhava das minhas redações, mas agora não consigo progredir, não consigo escrever sobre minhas realizações. E me dou conta de que não as tive. Vivo solitário num bairro superpovoado, mas sem nenhum amigo, com mulheres fáceis que ocasionalmente aceitam vir ao meu apartamento.
Uma vez quase me casei. Ela era uma mulher bonita, interessante, mas muito pragmática e responsável. Se cansou do meu jeito doidivanas, desleixado e irresponsável. Disse-me que iria em busca de um futuro estável, com alguém disposto a crescer em sua companhia. Nunca mais a vi. Preferi ficar em casa e sofrer em silêncio, ou melhor, optei por anestesiar minha dor e solidão com sexo fácil, comprimidos e minha cerveja, companheira inseparável. Hoje ela deve ser uma mulher de sucesso, casada quiçá com um advogado ou médico, e deve ter uma prole linda e comportada, autêntica família Doriana. Que se dane, todos vão morrer igualmente, e, provavelmente, sem um conto a ficar para a posteridade. Eu posso ser um louco solitário e irresponsável, com pouco mais na geladeira do que água, mas sou um autor, deixarei um legado, ainda que inédito. Ainda que apenas literatura.
As Cordilheiras dos Andes agora estão completamente submersas, vejo na internet. Falta muito pouco, enfim. Recordo-me, com um sorriso irônico, que sempre acreditei que o mundo acabaria com as águas. Mas achava que isso aconteceria na virada do milênio. Justificava-me dizendo que sempre que o mundo acabava era desse jeito: lembrava-me da Arca de Noé, das Metamorfoses, de Atlândida, o continente perdido. Com o aquecimento global e o derretimento das geleiras polares, nada mais convincente para a minha crença no fim do mundo que ele se desse no oceano. Mas jamais previ que uma onda gigante, sem precedentes na história, ocasionada por um meteoro que caiu no oceano, fosse nos sepultar. Sinto-me agora como um pirata morto no navio, atirado ao mar para o eterno descanso.
Mas de que vou descansar? Deste texto. Ele não é fruto de inspiração, jamais a tive. Só eu sei o esforço que é concluir uma frase, quantos cigarros são fumados antes de finalizar um parágrafo. Não podia ser diferente. É justo que a obra da minha vida demande tempo e esforço. Só assim me sentirei realizado. Sempre busquei as coisas mais fáceis, nunca gostei de trabalho, de tarefas, de responsabilidades. Agora, à espera do fim próximo, me dou pela primeira e última vez um trabalho dignificante. E até que estou gostando da experiência. Se pudesse voltar atrás, muitas coisas faria diferente em minha vida. Acho que é este o sentimento que ouvia no catecismo que os bons católicos devem nutrir na hora da morte – o arrependimento. Mas não é exatamente arrependimento o que sinto, mas um vazio indelével, eloquente mesmo. Talvez preenchido quando der o ponto final, a conclusão, pela primeira vez na minha vida, de alguma coisa.
Acendo mais um cigarro e abro a última cerveja da geladeira, a derradeira de minha existência. Lá fora, pânico, gritos, sirenes, buzinas, estrondos. Aqui dentro, uma paz indefectível. E a certeza de que estou próximo do ponto fin