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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Língua e realidade

Em agosto de 2010 fui apresentado ao pensamento de Vilém Flusser, filósofo theco, em um simpósio realizado na UERJ intitulado A filosofia da Ficção de Vilém Flusser. Recordo-me de ter ficado bastante interessado na obra de Flusser e cheguei mesmo a comprar Língua e realidade, seu primeiro livro escrito em português. Na ocasião, parecia-me um excelente título para me ajudar a estruturar e a embasar uma pesquisa pessoal, mas só agora, mais de um ano depois, me dispus a lê-lo.
Posso dizer que a leitura, apesar de agradável e fluida, não atendeu, num primeiro momento, às minhas expectativas, pelo menos às expectativas criadas em agosto de 2010. Ou melhor, para o meu propósito, há quase dois anos atrás, seria importante um texto menos analítico e mais sociológico. Ora, acabo de perceber que, ao comprar o livro, esperava que ele se adequasse à minha pesquisa, e não que minha pesquisa precisasse se coadunar ao pensamento de Vilém Flusser. Mas é claro que um trabalho que discute língua e realidade é muito bem-vindo a integrar o manancial bibliográfico de minha pesquisa - ou a de qualquer pessoa que se disponha a refletir sobre essas questões.
Língua e realidade é um excelente estudo acerca da língua e de como esta é, forma, cria e propaga a realidade. Mesmo que possam existir algumas discordâncias a respeito da teoria de Flusser - como as apontadas por Anatol Rosenfeld quando a primeira edição foi lançada, em 1963, que "admitiu haver alguma verdade na afirmação de que a língua determina a nossa visão da realidade, mas essa verdade seria apenas parcial. Para ele, teria sido melhor se Flusser se tivesse limitado ao exame cuidadoso dessa verdade parcial, 'em vez de pregar logo um mito e arrancar dos seus diversos nadas toda uma mística'" -, é um livro que vale a pena ser lido, não apenas por tratar de um tema desde sempre importante, mas, também, por ser escrito de forma simples, direta, objetiva e contundente.
Primeiro livro em português do poliglota Vilém Flusser, que exilou-se no Brasil quando os judeus eram implacavelmente perseguidos pela Alemanha nazista, é o resultado de um pensamento lúcido e construtivo, muito pertinente à minha pesquisa e a qualquer outra que se debruce sobre essas inquietações. Por falar fluentemente vários idiomas, ficou mais "fácil" para ele refletir sobre as questões concernentes à língua para, então, oferecer suas reflexões num ótimo livro escrito em português, sua terceira língua materna.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um Brasileiro

Sim, hoje posso dizer, sem medo, que tenho orgulho de ser brasileiro. Nasci no mesmo país de um dos melhores compositores de todos os tempos da música mundial. Antônio Carlos Brasileiro Jobim recebeu, muito merecidamente, um documentário belíssimo dirigido por Nélson Pereira dos Santos. A música segundo Tom Jobim difere dos demais documentários porque não há a usual intercalação entre depoimentos de personalidades que conheciam e/ou conviveram com o personagem-tema do documentário e imagens resgatadas de arquivos. A sensibilidade de Nélson Pereira dos Santos conferiu ao longa cerca de 90 minutos de pura música. E haveria melhor maneira de homenagear Tom, para quem "a linguagem musical basta"?
A excelente pesquisa realizada para o filme nos presenteia com imagens raras - muitas conseguidas graças ao Intituto Tom Jobim - não só do próprio maestro, mas também de grandes nomes da música nacional e internacional interpretando as composições do mestre. E isso permite às novas gerações ter uma pequena dimensão da importância de Tom Jobim para a música brasileira e a sua influência no cenário internacional.
Ficar tecendo elogios a Tom Jobim é chover no molhado. Seus arranjos jazzísticos, suas harmonias sofisticadas, seus acordes marcantes são conhecidos de todos. O filme, verdadeiro tributo, merece e precisa ser assistido. Excelente filme sobre um excelente músico. Brasileiro.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Chagall - o poeta com asas de pintor*

Uma vez Marc Chagall disse: "As crianças costumam sorrir ao ver os meus quadros. Quando vejo esses sorrisos, tenho certeza de que elas entendem a minha arte!" Nada mais natural, portanto, do que uma peça destinada ao público infantil para contar a vida e a trajetória de Moyshe Segal, criança judia e pobre que cresceu em Vitebsk, cidade bielo-russa, até ser rebatizado, em Paris, como Marc Chagall, expoente das artes plásticas.
A peça é uma podrução da CIADRAMÁTICADECOMÉDIA, com direção de João Batista, e João Velho, Cleiton Rasga, Cristina Lago, Eduardo Rieche, Sérgio Kauffmann e Sonia Praça no elenco. João Velho, aliás, interpretando o pintor, está maravilhoso, com uma atuação deslumbrante. Os demais atores revezam-se, muito bem, em mais de um papel.
A peça inicia-se com uma observação dos atores para a plateia: No teatro, como na arte, tudo pode. E é uma observação bastante pertinente se considerarmos a obra de Chagall, que pintava peixes voadores, casas de cabeça para baixo, violinistas em cima de telhados etc. E, segundo o pintor, suas telas eram resultados das coisas que ele via, de sua realidade. Devidamente apresentados ao universo cênico mágico e onírico, os espectadores acompanharão o crescimento do jovem Moyshe, seu despertar para o desenho, as dificuldades da juventude pobre até a consagração como Marc Chagall. Conseguem apreender, porque a mensagem chega de forma lúdica, a importância que a arte teve para o pintor - e que tem para todos nós - e como devemos perseguir aquilo que nos é caro.
Sempre fui da opinião de que as crianças são as melhores críticas para qualquer obra. Se a peça agradou tanto minhas filhas - Maria Eugênia nunca esteve tão compenetrada e interessada num espetáculo, afirmando, ao sair, que "quando crescer quero ser pintora"; e Maria Antônia, em meio a gostosas risadas, quando se deu conta de que a peça havia acabado, começou a chorar porque queria mais -, acho que não preciso nem dizer que é uma peça que precisa ser assistida. Eu mesmo, com a desculpa de levar a minha mãe para ver, vou assistir de novo.
Chagall - o poeta com asas de pintor está em cartaz até o dia 18 de março no CCBB, no teatro II, todos os sábados e domingos, inclusive no carnaval, às 16 horas. Para quem acredita que na arte, como na vida, tudo pode, e para quem não acredita também, vale muito a pena conferir.
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* Imagem retirada da internet.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Retomada futura

Reler Novos apontamentos em memória social, de Diana e Souza Pinto e Francisco Ramos de Farias (orgs.). Especialmente o texto "Memórias anônimas", de Camila Guimarães Dantas e Vera Dobedei (7 Letras).

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

As cobras: antologia definitiva

Luís Fernando Veríssimo uma vez disse que as cobras surgiram da combinação de seu amor pelos quadrinhos e da sua inabilidade para desenhar. Segundo ele, "cobra é muito fácil de fazer, só tem pescoço". Bom, devo discordar. Sou daqueles que não conseguem desenhar uma casinha com um sol em cima. Meus traços são trêmulos, não tenho nenhum senso de profundidade e, para piorar, sou filho de uma artista plástica. Mas voltando ao Veríssimo, o fato é que ele conseguiu criar uma das tirinhas mais divertidas e engraçadas que saíam impressas em nossos periódicos. Lembro-me que, quando criança, sentava-me ao lado de meu pai aos domingos e, imitando-o, abria o jornal ao seu lado no sofá. Mas só lia as tirinhas. Agora elas estão todas reunidas em uma antologia definitiva, publicada pela Objetiva, que vem reeditando as obras do autor. Recomendo, é diversão garantida.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Precisamos falar sobre o Kevin

Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay, é um excelente filme. Todavia, não é um filme fácil de assistir. A história centra-se na relação de Eva (Tilda Swinton) e seu filho Kevin (Ezra Miller), um adolescente que desde sempre se apresentou como uma criança desajustada.
Eva, que não queria ser mãe mas se vê refém de uma gestação indesejada, dá à luz a uma criança que piora em demasia a sua vida. A tensão existente entre mãe e filho cresce a um ponto de tornar a vida de Eva insuportável. Para piorar as coisas, diante do pai, Kevin se comporta como qualquer criança normal, dando a entender que as queixas maternas são exageradas e sendo cada vez mais mimado pelo pai.
O filme caminha para o desfecho esperado, o assassinato em massa cometido por Kevin em sua escola, o que faz Eva ser, durante todo o filme, vilipendiada por todos, onde quer que ela esteja. O inferno em que se transforma sua vida pode ser lido como uma espécie de castigo, embora, apesar da culpa que ela carrega consigo, Eva não tenha nenhuma responsabilidade sobre a psicose de seu filho. Mas resta a questão: ela estaria sendo culpada e punida pelo ato vil de Kevin ou por não ter sido uma boa mãe? É possível desassociá-los?
O filme merece destaque pelas belíssimas atuações de Tilda Swinton e Ezra Miller e pelo recurso encontrado pela diretora de sobrepor em constantes flashbacks a evolução temporal da história, sem se tornar um flashback "pedagógico".
O longa discute um comportamento que, infelizmente, vem se repetindo nos últimos anos e não é mais restrito à realidade norte-americana. Excelente filme e, apesar de denso e pesado, tem sua importância, sim, precisamos falar sobre o Kevin.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Quatro cantos

Quatro cantos, de Wanderlino Teixeira Leite Netto, é um livro formalmente irretocável, desde a capa, programação visual e ilustrações, assinadas por Raquel Ponte, até o texto, muito bem escrito. Nele, o autor apresenta um Visitante que faz uma viagem espaço-temporal por quatro cantos: Primavera em Zênite, Verão em Viramusgo, Outono em Amanhecer e Inverno em Solaris. Cada uma dessas visitas corresponde a um conto do livro.
No primeiro, o Visitante conhece Zênite, que, como as outras, é uma cidade fictícia. No entanto, pode-se depreender inúmeras semelhanças com qualquer cidade de nosso tempo, afinal, "os jovens não ignoram: o jogo do poder praticado em Zênite envolve truques, cartas por baixo do pano, blefes, altos cacifes". Assim, podemos compreender em Quatro cantos uma metáfora ao mesmo tempo sutil e crítica a uma sociedade demasiadamente competitiva, consumista e alheia às coisas realmente importantes da vida. O Visitante, elemento extrínseco dessa realidade, flana por Zênite conhecendo e nos dando a conhecer seus personagens e seu modus operandi.
Quando, no verão, o Visitante chega a Viramusgo, depara-se como uma cidade que fora inundada e virara um açude. Com o tempo, a represa secou e a cidade ressurgiu, coberta por um musgo que rebatizou a cidade. O ressurgimento da cidade após a inundação é uma maneira de refletirmos sobre a memória, pois, quando a população precisou retirar-se e encontrar outro local para se estabelecer, foi "para um lugar de quadras simétricas, construções padronizadas. Sem alma, sem fantasmas nas esquinas", isto é, sem reminiscências, sem história. Ao pôr os pés em contato direto com o musgo, o Visitante entra em contato direto com a tradição, conhecendo os locais cheios de vida porque cheios de história, apesar de estarem sem pessoa alguma por perto. Parece que o autor encontrou uma maneira de chamar a atenção para a importância de se manter a tradição, de não permitir que ela seja substituída por uma padronização em várias frentes, como acontece hoje em dia, seja nas artes, nas vestimentas, nos comportamentos.
Amanhecer é a cidade visitada quando chegamos ao outono. Composta por uma única rua, que possui alguns atalhos, a maioria ilegais, notabiliza-se por ser uma cidade onde é impossível sonhar, pois lá não existe o sonho. A única rua da cidade oferece sempre o mesmo caminho, sem alternativas, sem criatividade, inviabilizando, por exemplo, o trabalho da atriz, a primeira das personagens conhecidas pelo Visitante. Em dado momento, ele afirma: "Desde que cheguei aqui, tropeço em contradições". Uma cidade com uma única rua propicia isso mesmo, pois ela é ao mesmo tempo caminho de ida e de volta, chegada e partida, norte e sul. Uma possibilidade de interpretação para este conto e para a cidade com uma única rua, vigiada para que atalhos não sejam criados, é justamente a nossa colonização, pois, submetidos a Portugal, não tínhamos alternativas, liberdade, autonomia.
O inverno em Solaris é a última parada do Visitante. Ele deparou-se com um local com um burocratismo exagerado, onde "nada se resolve sem carimbos e vistos, memorandos e ofícios, favores e propinas". Somado a esta burocracia, há um crescimento vertiginoso de arranha-céus e diminuição de espaços verdes. Alguma semelhança com alguma cidade que conhecemos? O Visitante, nesse cenário, nutria o desejo de conhecer o Pintor, mesmo antes de visitar Solaris, talvez por ser ele capaz de oferecer, via telas e cores, uma realidade já deveras distante.
Dos três livros que já li de Wanderlino Teixeira Leite Netto, Quatro cantos, apesar de ser formalmente muito bem escrito, é o que menos me cativou como leitor. Na minha opinião, falta a este livro a inspiração e a vitalidade encontradas em Retrato sem moldura, por exemplo. Mas, mesmo aquém de suas demais publicações, é um livro que suscita questões importantes e pertinentes.