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domingo, 29 de dezembro de 2013

Minha forma de ver o mundo é verbal. 
Mil imagens não valem uma palavra. 
A palavra contém tudo, sobretudo o 
silêncio.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

BLISS NÃO TEM BIS - Uma revista-disco (brevíssimos comentários)


Acabei de ler-ouvir a revista-disco BLISS NÃO TEM BIS, editada por Clarissa Freitas, Lucas Matos, Marcio Junqueira e Thiago Gallego e recém-lançada no último dia 29. A revista-disco é composta por dois cedês, lados A e B, que apresentam uma nova sonoridade fruto da junção de poesia e música. Não se trata, porém, de musicar os poemas, que passariam a ser então letras de música, mas, ao contrário, oferecer uma nova forma estética a partir da união poético-vocal com arranjos sonoros diversos, flertando, também, com a performance - um fazer poético plural, bem ao gosto da contemporaneidade.
Particularmente, sempre tive restrição a saraus ou a qualquer outra forma de leitura de poesia em público. Minha relação com os versos sempre foi solitária, com o livro em mãos e, quando muito, lia-os em voz alta para mim mesmo, de modo a saborear audivelmente as palavras. Ultrapassadas leituras, as minhas.
Após terminar a leitura-audição, me dei conta de que eu não sei nada de poesia, ou melhor, preciso conhecer mais profundamente a produção atual, com todas as suas aparições. Os poemas que figuram na revista-disco, além de muito bons, me apresentaram a um fazer poético que eu desconhecia por completo, descortinando novas e interessantes possibilidades de poesia, que transcendem a leitura pura e simples da página de um livro. Pensando com Adorno, o que eu julgava conhecido tornou-se desconhecido. Sinto-me incapaz de dizer o que é poesia após BLISS NÃO TEM BIS
Para encerrar esses brevíssimos e superficiais comentários, discordo de Benjamin ao anunciar que, na reprodução de uma obra de arte, a aura é atrofiada. Esta é, para o alemão, "uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja". De forma muito sucinta, para Benjamin, os poemas da revista-disco, ao serem reproduzidos e ouvidos repetidas vezes em diferentes aparelhos de som, não teriam mais a aura peculiar e própria de todo objeto artístico. No entanto, não é isso o que ocorre, a meu ver. Cada audição singulariza o poema e torna-o aurático sim, a despeito da reprodução técnica. E mais: a cada vez que a revista-disco for lida-ouvida, seus poemas não perderão sua aura, apesar da gravação, a priori, inviabilizar flexões vocais e alternâncias nos arranjos. Isso porque o sujeito que a escuta é outro e, como outro, põe-se novamente diante da arte de maneira a (in)compreender o pensamento que dela provém. 
Fui leviano ao falar muito sucintamente de temas tão complexos, como os tratados por Adorno e Benjamin, e a poesia (?) contemporânea. Tal leviandade se justifica porque o que importa, dentre o que escrevi nessas poucas linhas, é que vale muito a pena conhecer a revista-disco BLISS NÃO TEM BIS - e se maravilhar.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Personagem de Luiz Ruffato

No Centro Empresarial na Praia de Botafogo, lia enquanto esperava a Maria Antônia sair da arteterapia.
- Moço, desculpa atrapalhar sua leitura, mas o que é Delivery?...
[Me viro e vejo uma senhora de cabelos brancos, cara mal-humorada e segurando a coleira de um cachorro]
- Bem, Delivery é quando...
- ... e não seria muito mais fácil e bonito falar em português?!
[A senhora me dá as costas, sem dizer mais palavra, e se afasta com seu pastor alemão]



domingo, 27 de outubro de 2013

Rascunho de poema

A sujeira, para baixo do tapete
O indigente, para a vala comum

Então fingimos que não há desigualdade
                               impunidade
                                    extermínio
                                         ameríndio 

Assim seguimos confiantes
Recuperamos nossa autoestima 
        
             - Copa, Olimpíadas, BRIC´s -

E acreditamos que o Brasil é próspero
                             soberano
                             justo
                             domesticado

Afinal, a vida é linda

                      para inglês ver.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Carta aberta para Marcela Tagliaferri

Querida Marcela,

exilei-me. De mim mesmo. Foi necessário. Precisei abandonar meu corpo, minha cabeça, meu espírito para, com o distanciamento, refletir sobre o mundo. Sobre a literatura. Sobre meu eu diante de mim mesmo. Homem de poucas certezas, hoje tenho uma nova: sou completamente outro após a leitura de Exílio. E asseguro que um homem melhor do que era antes de lê-lo. E te agradeço muito por isso. A leitura de uma obra-prima faz isso com a gente. Rediscute, problematiza, abala. Estou abalado. Agora, enquanto escrevo, recordo-me de que nosso amigo Leonardo Davino, ao nos apresentar, disse-me que este seu romance me seria útil porque, ao contrário do que previu Benjamin, passava uma sabedoria a seus leitores. Lembro-me que fiquei curiosíssimo, mas, cético, atribuí o entusiasmo de Leonardo a puro galanteio. Mais uma vez eu estava errado.
A dedicatória que você escreveu para mim é datada do dia 9 de agosto de 2012. Mais de um ano seu romance esperou por mim na prateleira, ou melhor, era eu a esperar por ele sem saber o que perdia. Nesse tempo, nosso relacionamento se estreitou e hoje sinto um orgulho imenso de ser amigo de escritora de tamanho quilate. 
Vou te confessar uma coisa, Marcela. Aliás, relembrá-la, pois você já se dispôs a comentar um texto meu "com responsabilidade", lembra? Sempre tive veleidades literárias. Ambiciono um dia, quem sabe, ser um escritor. Lendo seu livro, porém, tomei consciência de quão pequena é minha "literatura". Pobre. Reles. Previsível. Acadêmica. Ainda tenho muito o que estudar, muito o que suar, muito a praticar. Confortei-me ao me dar conta de que posso aprender com os grandes. Posso aprender com você. 
Exilado. Mas não como Vicente. Nem Sílvia. Muito menos Fernando. Afastei-me por livre e espontânea vontade. Para desaturdir-me. A cada página de meus caminhos e descaminhos, afligia-me com a guinada que minha pesquisa daria. Preocupado, dentre outras coisas, com o narrador do século XXI e suas singularidades, como justificá-lo após a leitura de Exílio? Como classificar o seu narrador? Seu livro demandaria uma tese, isso para discutir apenas esse ponto - e que não é o único.
Enquanto angustiava-me com minha pesquisa, tive um lampejo de sanidade e percebi o quanto estava sendo egoísta e mesquinho. Sentimentos incongruentes diante de uma obra de arte. Então relaxei e me entreguei ao puro deleite, sem preocupações acadêmicas, tolas. Talvez o tipo de escrita que me resta. Uma vez, o Eduardo Losso disse que a teoria é para os fracos. Resigno-me. Posso ao menos fingir escrever algo de relevante.
É claro que venho falando sobre o narrador porque este é um de meus assuntos nos próximos quatro anos. Não o seu. Seu romance não é uma obra-prima apenas porque despertou em mim uma atenção peculiar e, a priori, insolúvel. E naturalmente não há um narrador. Você os pluraliza brilhantemente. Personifica-os. Subjetiviza-os. Brilhantismo também notório no diálogo, a meu ver, com o ciúme doentio de Bentinho e a "dissimulação" de Sílvia. Mas neste caso ela não se assemelha a Capitu, mas sim a uma trama de Nelson Rodrigues, também em minha humilde opinião. O desejo incestuoso de seu pai reacionário e cruel é digno de uma peça do fanático dramaturgo tricolor. Como você, não? 
Marcela, sem nenhum favor te digo que a construção do enredo, tendo como base nossa história política recente, os anos de chumbo da ditadura militar, entremeando a tortura nos porões com a realidade infelizmente comum de nossos pacientes psiquiátricos, é brilhante. Com muito prazer, vemos a transformação da "ficção na mais perfeita das realidades". É com esse recurso que você cria sua ficção a partir da iniquidade de poucas décadas atrás. E com o mesmo estratagema Vicente é levado à loucura; Sílvia igualmente, em certo sentido. Seu romance é a prova cabal e inconteste da força da ficção. De sua beleza. Sua magnitude. Em contrapartida, revela a fragilidade da realidade.
Ainda teria muito a dizer sobre seu livro, mas paro por aqui. Em tempos de correio eletrônico, opto por lhe escrever um carta, ainda que em um blog. Paradoxos desse nosso tempo. Mas se assim o faço é porque não me senti capaz de resenhá-lo, ou melhor, nenhuma resenha daria conta do que seu livro é. Além do mais, há bastante tempo uma leitura não me abala dessa forma, por isso julguei mais oportuno falar de leitor para autora, publicamente, pois se favor há, é que faço aos possíveis leitores desta carta, que devem correr para ler seu

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Redenção

Quando criança, eu sonhava em ser astronauta, ou piloto de Fórmula 1. Queria ser diferente, fazer alguma coisa que me distinguisse dos demais, ser manchete, reconhecido, invejado. Não podia me imaginar trabalhando num escritório qualquer, sem nenhuma emoção, vítima da mesmice do cotidiano. Não, eu seria diferente. Ou astronauta ou piloto de Fórmula 1.
Nada melhor para mim, que vivia com a cabeça nas nuvens, do que fazer disso minha profissão. Sair da órbita terrestre, passar pela Lua, conhecer galáxias distantes e, quando voltar, ter aos meus pés todas as mulheres que eu quisesse. Do espaço, veria a Terra pequenininha, um ponto azul lindo e distante, capaz de caber no meu bolso. Sim, eu teria muito o que viver, inúmeras realizações, uma vida repleta de sucesso. Um planeta só seria pouco para mim.
Mas, não fosse isso, meu plano B estava assegurado. Viveria a 300 km/h, sem tempo a perder, a cada semana em uma pista diferente. Após alguns poucos meses, certamente me transformaria no ídolo de milhões de pessoas, estaria em todos os lugares, em programas de televisão, outdoors, capas de revistas. Teria produtos com meu nome e rosto na embalagem, seria exemplo para as crianças, e viveria a mil por hora, mesmo fora das pistas. Quando pequeno, sempre soube que havia muito o que fazer e que as minhas 24 horas diárias não seriam suficientes para todos os meus anseios. Pressa, eu tinha pressa para o sucesso, para viver a vida, para ser feliz, reconhecido e bem-sucedido.
À medida que eu fui crescendo, porém, minhas ambições infantis cederam espaço para metas mais plausíveis, realistas e comuns. Já não desejava conhecer o universo, tampouco correr num carro para atingir a fama e o estrelato. Viveria, agora, feliz com alguma profissão que me propiciasse uma boa qualidade de vida, que me permitisse algumas excentricidades, como viajar pelo mundo, pular de paraquedas, descer numa jaula submarina para ver, frente a frente, o grande tubarão branco, praticar esportes radicais – e sim, ter muitas mulheres. Poderia ser talvez um publicitário, roteirista ou quem sabe cineasta.
Mamãe me dizia que eu podia ser o que quisesse, que eu era um jovem talentoso, bom aluno, escrevia ótimas redações, que a Rede Globo me pagaria o que eu pedisse para me ter como um de seus redatores. Mamãe dizia, enfim, que eu podia continuar sonhando, pois um dia meus sonhos se transformariam em realidade. Nesse caso, não tinha erro. Bastava aguardar e esperar a vida acontecer, tudo não passava de uma questão de tempo. E enquanto esperava o início do meu final feliz, ia vivendo a vida sem grandes sobressaltos, sem preocupações, certo de que o destino estava traçado.
Mas o tempo passou e parece que mamãe se enganou. Não me tornei publicitário, cineasta, tampouco redator de televisão. O que mais me aproxima das minhas expectativas profissionais é a manutenção de um blog na internet onde posto, regularmente, algumas impressões de meu dia a dia. Desiludido, escrevo comentários sarcásticos sobre tudo aquilo que a vida me negou. Não poupo nada nem ninguém. Nem mesmo meus (poucos) leitores, meia dúzia de quatro ou cinco fiéis seguidores. Às vezes, até publico alguma coisa mais lírica, a depender do humor. E assim vou vivendo no meu conjugado aqui na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Sem dinheiro, sem mulheres, sem aventuras.
O alvo predileto de minhas críticas internáuticas é o número elevado de pessoas que acreditam na profecia de que a Terra vai acabar. Como assim? Quer dizer que a vida se extinguirá, que todos sucumbiremos, que não mais haverá amanhã? Idiotice, pensava eu. Agora, porém, acho que posso confessar que a implicância com os crédulos do fim do mundo se dava justamente porque a minha vida de glórias nunca começou, que dirá terminar. Como posso encerrar minha existência se eu simplesmente não iniciei nada. Não tive filhos, não plantei uma árvore e muito menos escrevi um livro. Quer dizer que a minha presença neste planeta foi completamente infrutífera?! Não realizei nenhum dos meus sonhos, não comi nem a metade das mulheres que eu desejei, não tive sucesso, dinheiro, status. Mas parece que agora sim eu vou para o espaço, a hora chegou. Inexoravelmente.
Sim, o mundo vai acabar. Hoje. Na verdade já começou o fim, resta-me apenas esperar que a onda gigante que começou a destruir tudo no Japão e na Oceania atinja o Brasil e o resto do mundo. Lá fora, ouço as buzinas, os gritos, o desespero. Muitos pretendem subir a serra para se refugiar da fúria advinda do oceano, mas a angústia da população só tornará o fim mais agônico. A televisão, que vai segundo a segundo noticiando o fim ao vivo, foi devidamente desligada. Aguardo a minha hora com resignação. Até com uma inesperada paz. Ao meu lado, o Marlboro, a cerveja e o desejo de deixar alguma coisa para a posteridade, para tornar menos vazia minha passagem pelo planeta. Cheguei a me perguntar, entre uma tragada e outra, que diferença isso faz agora, no meu último dia de vida. E a resposta que me dei é que possuo a derradeira oportunidade de fazer alguma coisa que valha a pena; que posso me redimir de mim mesmo enquanto espero a onda avassaladora chegar e me engolir; que posso fazer a cesta de três pontos no último segundo da final das Olimpíadas que não se realizarão.
Não deixarei a oportunidade escapar. Sentado diante de meu laptop, escrevo um conto autobiográfico que dará conta do que eu (não) fui em 33 anos de vida. Afinal, quem sabe se um único casal conseguirá resistir à fúria da natureza e repovoar o mundo, como um dia fizeram Adão e Eva? Ou se, num futuro distante, uma nave interplanetária não aterrissa aqui numa missão exploratória e descobre que um de seus nativos, depois de sonhar em conquistar o espaço, se conforta em deixar um conto que valha a pena ser lido?
Na verdade, mais do que tudo isso, o que me motiva a escrever este conto não são meus futuros leitores alienígenas, muito menos uma raça mutante, oriunda da maior e última hecatombe da humanidade, que poderá vir a descobrir a subjetividade de um de seus ancestrais, mas um acerto de contas comigo mesmo. Eu, que vivi de maneira inútil e desapercebida; que nada deixei de legado para as possíveis futuras gerações; que estive longe de meus planos mais sinceros, puros e imaculados; eu, para não morrer como um cão, no meu Processo; para fugir do nada da morte apregoado por Sartre, venho aqui não para escrever um texto, mas fazer uma reparação comigo mesmo. Este conto, escrito a poucos minutos de meu fim, será minha redenção. Poderei, depois do ponto final, partir em paz. Mamãe me dizia que eu poderia ser o que quisesse. Tudo o que quero agora é concluir esta miniautobiografia. Engenheiro das obras inacabadas, me dou agora a oportunidade de finalizar alguma coisa digna de nota. Ou que pelo menos mereça ser lida por alguém – se alguém houver para lê-la.
Vou me lembrando de todos os livros que comecei e não terminei de ler, mais preocupado que estava em curtir a vida e, por isso mesmo, não me dando conta de que as coisas que realmente valem a pena não são fugazes, mas perpassam gerações. É isso! A literatura é algo que desde Homero permanece, sejam as epopeias clássicas, os poemas líricos ou os romances burgueses. Uma vez escrito e registrado, o texto não é mais do autor, é do futuro, é da humanidade. Finalmente, à espera de meu fim iminente, percebo que o que almejei sempre esteve dentro de mim. Que importância teriam hoje os produtos com meu nome e rosto? Alguém se lembraria de um astronauta tupiniquim, que teria vivido provavelmente nos Estados Unidos, longe de sua terra e sua gente? As inúmeras mulheres com quem teria dividido a cama chorariam a minha morte? Certamente não. Mas este conto me redime. Com ele transcendo e alcanço a imortalidade. Agora autor, coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou mais um Zé Ninguém. Agora, eu escrevo porque preciso, como sempre ouvi os escritores de verdade dizerem. Há em mim uma necessidade de me expressar, de externar meus sentimentos, de não permitir que a minha vida se finde junto com o meu corpo, condenado à espera da onda gigante.
Vou morrer em breve. A internet continua, segundo a segundo, atualizando a população sobre o avanço incontido da onda. Ilhas e mais ilhas do Pacífico desapareceram. Falta muito pouco. E mal comecei a escrever. Mamãe sempre se orgulhava das minhas redações, mas agora não consigo progredir, não posso escrever sobre minhas realizações. E me dou conta de que não as tive. Vivo solitário num bairro superpovoado, mas sem nenhum amigo, com mulheres fáceis que ocasionalmente aceitam vir ao meu apartamento.
Uma vez quase me casei. Ela era uma mulher bonita, gostosa, inteligente e interessante, mas muito pragmática e objetiva. Se cansou do meu jeito doidivanas, desleixado e irresponsável. Disse-me que iria em busca de um futuro estável, com alguém disposto a crescer em sua companhia. Nunca mais a vi. Preferi ficar em casa e sofrer em silêncio, ou melhor, optei por anestesiar minha dor e solidão com sexo fácil, comprimidos e cerveja, esta sim companheira inseparável. Hoje ela deve ser uma mulher de sucesso, casada quiçá com um advogado ou médico, e deve ter uma prole linda e comportada, autêntica família Doriana. Que se dane, eles também vão morrer, e, provavelmente, sem nada legar para a posteridade. Eu posso ser um louco solitário e leviano, com pouco mais na geladeira do que água, mas sou um autor, deixarei um legado, ainda que inédito. Ainda que apenas literatura.
As Cordilheiras dos Andes agora estão completamente submersas, vejo na internet. Falta muito pouco, enfim. Recordo-me, com um sorriso irônico, que sempre acreditei que o mundo acabaria com as águas. Mas achava que isso aconteceria na virada do milênio. Justificava-me dizendo que toda vez que o mundo acabava era desse jeito: lembrava-me da Arca de Noé, das Metamorfoses, de Atlândida, o continente perdido. Com o aquecimento global e o derretimento das geleiras polares, nada mais convincente para a minha crença no fim do mundo que ele se desse pelo oceano. Mas jamais previ que uma onda gigante, sem precedentes na história, ocasionada por um meteoro, fosse nos sepultar. Sinto-me agora como um pirata morto no navio, atirado ao mar para o eterno descanso.
Mas de que vou descansar? Deste texto. Ele não é fruto de inspiração, jamais a tive. Só eu sei o esforço que é concluir uma frase, quantos cigarros são fumados antes de finalizar um parágrafo. Não podia ser diferente. É justo que a obra da minha vida demande tempo e suor. Só assim me sentirei realizado. Sempre busquei as coisas mais fáceis, nunca gostei de trabalho, tarefas, responsabilidades. Agora, à espera do fim próximo, me dou pela primeira e última vez um trabalho dignificante. E até que estou gostando da experiência. Se pudesse voltar atrás, muitas coisas faria diferente em minha vida. Acho que é este o sentimento que os bons católicos devem nutrir na hora da morte – o arrependimento. Mas não é exatamente isso o que sinto, mas um vazio indelével, eloquente mesmo. Talvez preenchido quando der o ponto final, a conclusão, pela primeira vez na minha vida, de alguma coisa.
Acendo mais um cigarro e abro a última cerveja da geladeira, a saideira de minha existência. Lá fora, pânico, gritos, sirenes, buzinas, estrondos. Aqui dentro, uma paz indefectível. E a certeza de que estou próximo do ponto fin

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

As Três Marias

A primeira que chegou
me deu um enorme susto
Não estava esperando
Virar um papai robusto
Ela é hoje uma moça
A artista da família
Navega no Facebook
É a minha maravilha

Me pegou desprevenido
Mas encheu meu coração
Elevei-me sustenido
Na mais forte emoção

A segunda que chegou
Veio toda planejada
Eu estava esperando
Ansioso com a chegada
Parecia debutante
Pai de primeira viagem
Não sabia necessário
Ter toda essa coragem

Mas quando a peguei no colo
E olhei o seu rostinho
Vi seu voo sendo solo
Enchendo-me de carinho

A terceira que chegou
Quase me enlouqueceu
Não sabia mais meu Deus
Como isso me nublou
Ser pai de três menininhas
Todas três lindas Marias
A caçula tão fofinha
Seja noite, seja dia

Ela tem oito dentinhos
Numa boca bem risonha
Já dá logo seus passinhos
Para um mundo sem vergonha

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Pretérito Imperfeito de Bruno Lima - resenha de Flávio Corrêa de Mello*


Bruno Lima lançou seu primeiro livro há alguns meses, o Pretérito Imperfeito. Não se trata de um escritor novato, um poeta que se perca pelas armadilhas do ego ou que ainda viceja os primeiros passos na artimanha da escrita poética. Também não é um poeta cansado, curvado nas estruturas que dão certo, fato que denota-se na apresentação datada da recolha de poemas que vai de 1993 à 2011, sem obedecer um índice cronológico.

Percebe-se na abertura do livro que a escolha da seleta valorizou o diálogo reflexivo do ato criativo e indica o caráter obreiro de Bruno: "traçar uma linha dentro de um caderno espiral (...)", "as traça dão certeza (...)", "texto tecido tem tempo (...)", "que é traça, que é gasta, que é menos / imprensa ou pergaminho / máquina ou mão." Estes apontam igualmente o vórtice espiralar da poesia de Bruno, sem uma  unidade temática preferencial, mas com o artifício de retomada dos versos e de palavras que aparecem aqui e acolá (o caso de "traça") sugerindo diversos itinerários. Neste ponto me aventuro a identificar na traça o ato que se quer devorador das palavras e dos sentidos múltiplos reservados a poiesis e ao refastelar-se  de cansaço pelo ato constante de reescrever, como podemos visualizar no poema Palavras Operárias:

Palavras Operárias
06/03/2006

Conto o conto com palavras operárias
Tralhas exatas para cada momento
Que é todo, que é aura, que é sempre
Biblioteca ou panfleto
Poeira ou vento.

Leio o texto tecido sem tempo
Pêndulo em compasso com a tradição
Que é traça, que é gasta, que é menos
Imprensa ou pergaminho
Máquina ou mão.

Escrevo e me atrevo com rascunhos garranchos
Hieróglifos conflitos de um instante
Que é curto, que é muito, que é tanto
Limpo ou rasura
Borracha ou estante. 


No poema acima podemos ver os recursos de repetição entremeados nos terceiros versos de cada estrofe. Além de ondular o ritmo do poema marcado pelas repetições há o realce dos enjambements que permitem uma unidade corpórea ao poema sem perder a abertura de sentidos propostos no conjunto do poema: o diálogo com a tradição e os rascunhos, garranchos, de quem se atreve a buscar o seu próprio caminho. Esta parte inicial do livro em que se dialoga com a metaliteratura, a metacriação compreende os poemas Espiral,Palavras operáriasPulsa pulsoRedondilhas à toa e Pensando em João Cabral

Os poemas que seguem o livro descortinam o olhar do poeta sobre diversos temas e assuntos: família, trabalho, amor, sensações e visões são garatujas moto-contínuas que nos levam por um passeio na admissão de nossas imperfeições da lida do cotidiano. Diferente do pretérito perfeito, o imperfeito é o tempo de um passado durável que lida com a constância e a permanência em tempos remotos ou recentes. Nos poemas, traduzem-se, no meu modo de perceber o livro e a poética do Bruno, na pluralidade de sujeitos temáticos nas quais o eu poético quase se insere, quase é partícipe dos acontecimentos do entorno. No poema curto Exílio podemos distinguir melhor essa silenciosa marca:

Exílio 
(25/11/1993) 

Cala-se em mim
a mais estrondosa
explosão.
A grande nuvem cinza
empoeirada sufoca
meu grito.
Atrás das grades neon
minha luz agora
é cega.

Talvez o poeta tenha se exilado de nos apresentar sua obra há mais tempo. Talvez, só agora, ele reuniu o escopo necessário para por-se ao deleite de seus leitores, nos quais prazeirosamente me incluo. Há na distensão do tempo, nestes quase 20 anos, vários caminhos, sentidos, trilhas, tralhas e possibilidades de leitura de Pretérito Imperfeito. Esses múltiplos horizontes caem perfeitamente bem com o blog do autor, o identidade de um eu

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* Flávio Corrêa de Mello é poeta, autor dos livros Poemas Suíços e Rio Movediço. Mantém o blog Rio Movediço, que pode ser acessado aqui.

domingo, 21 de julho de 2013

Não via mais motivo algum para seguir em frente; Esperança aguardava pacientemente a expiação.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Leitura comparada entre O seminarista de Bernardo Guimarães e O Seminarista de Rubem Fonseca

Em 1872, Bernardo Guimarães publica seu romance O seminarista. Nem o livro nem o autor figuram no primeiro escalão do cânone literário brasileiro, mas este texto apresenta algumas questões que merecem ser discutidas, entre outros motivos, porque é retomado dialogicamente, neste século, por Rubem Fonseca, em romance homônimo.
Na segunda metade do século XIX, Bernardo Guimarães escreve um romance que pode ser lido de duas formas: a primeira e mais ingênua, como um enaltecimento da religião católica; a segunda e mais oportuna, justamente como uma crítica a essa mesma religião, em especial ao celibato clerical.
Nada melhor do que uma história de amor para dar curso à trama, bem de acordo com o estilo demasiado romântico do romance. Mas o amor recíproco entre Eugênio e Margarida não poderá ser consumado, pois os pais do menino Eugênio determinaram que ele será padre e, para tanto, irá estudar no seminário - José, narrador de Fonseca, também foi seminarista atendendo o desejo de sua mãe, mas não chega a se ordenar padre. Aqui, há outra importante diferença entre Eugênio e José: aquele é religioso, servil e amedrontado, ao passo que este é ateu, forte e destemido. A construção de caráter dos personagens obedece à lógica do temor a Deus, mas não me aprofundarei sobre isso.
Para a construção da história de um amor condenado, há, ao longo de todo o romance, referência ao pecado original, de maneira a não apenas repudiar a pureza do amor de Eugênio e Margarida, mas, principalmente, problematizar alguns dogmas da Igreja. No segundo capítulo, uma cena é exemplar: Margarida, ainda aos dois anos de idade, brincava no quintal longe de cuidados, quando Eugênio deu por sua falta e, ao encontrá-la, aterrorizou-se com a jararaca que se enrolava ao redor da menina. A serpente não atacou a indefesa criança, ao contrário, brincava, lambia e beijava o rosto da pequena. Eugênio gritou por socorro e sua mãe e Umbelina (mãe de Margarida) correram ao seu auxílio e perceberam que nenhum mal lhe havia acontecido. A senhora Antunes, muito devota, "teimava em ver naquilo um sinistro prenúncio, que ela mesma não sabia explicar". Para Umbelina, os receios da senhora Antunes eram infundados, uma vez que a cobra não fizera nenhum mal, ao que esta respondeu que a serpente também não mordera Eva, mas a tentara, o que era muito pior. Já no início do romance, Margarida está intimamente associada à serpente e à causa da perdição da humanidade, que desobedecera às ordens de Deus. "Se o Gênesis não nos apresentasse esse terrível réptil como cheio de astúcia e malícia seduzindo a primeira mãe da humanidade e fazendo-a perder para si e para toda a sua descendência as delícias do paraíso terreal, dir-se-ia que até a serpente tem seus impulsos generosos e também sabe respeitar a fraqueza e a inocência da infância", afirma o narrador, que costuma intervir dubiamente: por um lado seu discurso afiniza-se com os preceitos católicos, mas, por outro, nas entrelinhas, o critica severamente. 
Já no seminário, Eugênio não consegue esquecer Margarida. E é justamente a pureza deste amor que mais o aproxima de Deus. O jovem seminarista não conseguia entender por que havia de sacrificar um amor em nome de outro, por que não era possível coexistirem o amor a Deus e o amor a uma mulher. "Amor e devoção se confundiam na alma ingênua e cândida do educando, que ainda não compreendia a incompatibilidade que os homens têm pretendido entre o amor do criador e o amor de uma das suas mais belas e perfeitas criaturas - a mulher". Uma possível interpretação deste trecho é o ataque direto à misoginia da Igreja, que desde sempre colocou a mulher em segundo plano, sem jamais usufruir dos mesmos direitos dos homens. Lembremo-nos que as mulheres ainda hoje não podem se ordenar. Se quisermos aprofundar a dicotomia entre gêneros, havemos rapidamente de colocar Deus como masculino e a serpente como feminino, bem como Eva, a responsável pelo pecado original, mas fiquemos por aqui. 
José, o seminarista de Rubem Fonseca, não sabia o que era amar. Suas relações com as mulheres restringiam-se ao sexo. Não confiava em suas parceiras, como não confiava em ninguém, em função de sua atividade de matador de aluguel, até que um dia ele conhece, casualmente, Kirsten (etimologicamente "cristã") e passa a amá-la como nunca amara antes. É o amor que nutre por Kirsten que faz com que ele queira abandonar sua vida de crimes e levar uma vida normal e pacata, pois "o amor é a essência da vida", ele diz, referindo-se ao sentimento por Kirsten, não por Deus, ser em quem ele não acreditava. José - nome bíblico, diga-se de passagem, o pai de Jesus - emprega todos os seus esforços para proteger Kirsten do perigo de vida que ela corre, mas, no fim das contas, ela é assassinada, levando consigo a tentativa frustrada de José de iniciar uma nova vida. Desiludido, ele retoma sua vida de crimes, já que o amor, que seria sua redenção, lhe foi roubado - e justamente por D.S., seu amigo de seminário, que não era senão Deus, mas voltaremos a isso mais adiante. Como D.S. matara Kirsten, José, por sua vez, mata D.S. (Deus), e sentencia: "a pessoa não deixa de ser o que é: dos cabelos até as unhas, da cabeça ao pés (...) eu continuava sendo o que sempre fui, ainda que tivesse mudado de nome". Esta afirmativa, ao final do romance, é contrária ao ensinamento de que podemos mudar e alcançar o perdão através do arrependimento e da confissão. 
Em ambos os romances, o amor é subtraído dos seminaristas. Em Fonseca, é o próprio Deus quem se encarrega de assassinar a amada de José; em Guimarães, é em nome de Deus que ardis são cometidos para preservar a carreira eclesiástica de Eugênio. Ora, mas se Deus é amor, por que a Igreja o reprime tanto? Ou um padre ama Deus ou ama uma mulher; pessoas do mesmo sexo não podem se amar; aparentemente o amor, para a Igreja, é condicional, ou restritivo, e nem toda forma de amor vale a pena...
Longe de Margarida no seminário, Eugênio não consegue deixar de pensar nela. Através de versos (de ficção, em última instância), o seminarista exprime seu amor recluso, dá a este amor uma espécie de catarse, até que seus escritos amorosos são descobertos e confiscados pelos padres superiores. E, no seminário, paradoxalmente, sua vida se transforma num inferno. Eugênio é submetido a uma semana de jejuns, enclausuramento, penitências etc. etc. "À força de trabalhos e insônias, de orações, jejuns e mortificações continuadas, caiu em tal estado de prostração, de atonia física e moral, que embotando-se-lhe de todo a sensibilidade e quase extinto o lume da inteligência, o rapaz ficou como que reduzido a um autômato (...) Eis como uma educação fanática e falseada, abusando de certas predisposições do espírito, lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de toda a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia divina dele não se amercear". Aqui o narrador interfere explicitamente contra as arbitrariedades da Igreja.
É interessante observar que foram os versos amorosos os responsáveis pela desventura de Eugênio, ou melhor, por seu desmascaramento, do mesmo modo que José também era um leitor voraz de poesia. Pode-se fazer uma equivalência entre Deus e ficção, não no sentido de provar ser Deus uma mentira, mas tão-somente uma verdade construída discursivamente; uma mitologia, no final das contas. José também era leitor de Deus, um delírio, de Richard Dawkins, obra no mínimo inusitada para um ex-seminarista. O romance de Guimarães fornece ótimos subsídios para que Dawkins ataque as religiões como um mal a ser combatido. Haveria melhor exemplo, neste livro, de homens bons fazendo coisas ruins apenas e exclusivamente em nome da religião, como no caso da mentira perpetrada pelos padres de que Margarida havia se casado, a fim de convencer o pobre Eugênio a finalmente esquecer-se dela e aceitar o celibato? Para Eugênio, "religião, amor, poesia, eis os elementos que bastavam para encher aquela existência e torná-la a mais feliz do mundo. Eram como três anjos de asas de azul e ouro que esvoaçavam de contínuo em torno dessa alma infantil e cândida e a arrebatavam aos céus em gozos inefáveis". Esses três elementos não poderiam caminhar juntos, no entanto. É fácil compreender por que a poesia (ficção) não pode caminhar ao lado da religião. De acordo com Karlheinz Stierle, com o surgimento do cristianismo, passou-se a ter uma única verdade, a verdade de Deus, e a ficção é posta no banco dos réus. 
Eis outra interferência do narrador de Guimarães bastante direta: "O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos faz na sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre". Isso aconteceu com Eugênio, em mais de uma cena, como naquela em que ele mente ao seu pai para ir a uma festa na casa de Margarida e é afrontado por um pretendente de sua amada sem conseguir defender-se, sendo socorrido pela própria Margarida, sentindo-se covarde e humilhado. Não é assim, porém, que age José, no romance de Fonseca. Muito mais culto do que Eugênio, José possui vasta leitura de poesia e de filosofia, além de conhecer cinema e arte em geral e ser capaz de falar com desembaraço sobre qualquer assunto, seja com homens ou com mulheres. Uma interpretação possível é que o seminarista do século XXI não tinha nada mais a aprender espiritualmente, restando-lhe a erudição oriunda do seminário. Daí tantas citações em latim da parte de José. Eugênio, por sua vez, idiotizado, sai do seminário não apenas padre, mas detentor de uma religiosidade ausente em José. No século XIX, apesar dos equívocos, a religião ainda possuía força espiritual; no XXI, restaria-lhe apenas a cultura secular, sem qualquer espiritualidade - Deus está morto. 
Eugênio lutou o quanto pôde para fugir ao compromisso filial de acatar o desejo de seus pais de se tornar padre, mas, na verdade, ele não era forte o suficiente. Vivia num tempo em que era mais difícil se insurgir contra a família e contra o status quo, não podemos ser tão duros com o rapaz. Mas, mesmo buscando ser condescendente com ele, é flagrante que fora muito mais fraco do que Margarida. Esta, após ser procurada, a conselho dos padres, para que casasse, obstinadamente se recusou, não restando opção ao senhor Antunes senão a expulsão de suas terras. Os pais de Eugênio, naturalmente, creditaram a resistência da moça a dois fatores: primeiro, ao contato com a serpente que se deu no início do romance, que fazia com que ela estivesse sob influência do mal; segundo, recusava-se a contrair matrimônio interessada que estava no dinheiro de Eugênio, denotando a dificuldade do amor vencer, também, barreiras sociais - Umbelina e Margarida eram agregadas nas terras do senhor Antunes. Ela, porém, mesmo sendo mulher, isto é, mais fraca física e moralmente e culpada pelo pecado original, portanto, pelo destino da humanidade, manteve-se fiel ao compromisso firmado com Eugênio. Este, já padre, soube que fora enganado por seu pai e pelos padres, mas nada mais podia fazer. Apenas resignou-se: "Que ideia infernal de sacrificar o destino de duas pessoas por meio de uma mentira!" Finalmente, resolve se tornar "um padre sacrílego, um padre infame, como tantos outros, que todos os dias profanam com mãos impuras os vasos do altar e a hóstia sacrossanta. (...) Ah, celibato!... terrível celibato!... ninguém espere afrontar impunemente as leis da natureza!" Esta fala de Eugênio é preciosa porque, apesar de contida numa obra ultra-romântica, já prenuncia o naturalismo que irá surgir em poucos anos, afora a crítica explícita à Igreja.
O romance de Guimarães termina com a morte de Margarida no momento que padre Eugênio vai rezar sua primeira missa. Ele, em frente ao altar-mor, arranca todas suas vestes eclesiásticas e sai correndo pela porta principal. "Estava louco... louco furioso".
O fim do romance de Bernardo Guimarães é um excelente mote para O seminarista, de Rubem Fonseca. O seminário transformou o jovem Eugênio em um louco furioso, mais um ponto dialógico ente os dois romances. José, narrador e protagonista de Fonseca, não concluiu o seminário, e sua profissão é matador de aluguel, o melhor que há. Algumas interfaces entre os dois textos já foram apontadas, mas restam alguns breves comentários a serem feitos. Narrado em primeira pessoa, o seminarista do século XXI não possui a intervenção de um narrador alheio à história. O que é narrado o é sob o ponto de vista do personagem. Mas que narrador é este? Quem é este seminarista e quais são suas motivações? 
Ele é um matador profissional que não quer saber nada a respeito de suas vítimas ou, como prefere chamar, seus clientes. Poderia ser um personagem sem qualquer ética, mas, por outro lado, afirma que "matar passarinho é pior que matar gente má". De acordo com certa visão religiosa, matar gente má é desígnio de Deus; seria o Todo Poderoso o responsável por punir os pecadores. Não digo com isso que José é Deus, mesmo porque ele é ateu, apesar de dizer, em mais de um momento, que D.S. era seu melhor amigo nos tempos de seminário, e que não pode dizer seu nome completo, por isso apenas as iniciais. Eu disse anteriormente que D.S. era Deus e agora preciso me justificar. Uma interpretação possível é a impossibilidade de se dizer o seu nome em vão, daí a utilização apenas da primeira e da última letras, como fazem os judeus. Outra foi dada pelo professor Gustavo Bernardo Krause, ao se referir ao manual de heresias do século XIX intitulado Enchiridion Symbolorum et Definitionum, de Heinrich Deizinger, posteriormente atualizado por Adolf Schönmetzer, daí a sigla DS. A meu ver, essas duas interpretações são convincentes, mas, textualmente, encontramos outras.
Antes, porém, cabe observar que, ao retomar o romance do século XIX, cujo protagonista termina sua participação louco e furioso, torna plausível a loucura de José que, mesmo sem acreditar em Deus, conversa com Ele, evocando a aposta de Pascal: "Porque estou envelhecendo você acha o que, D.S.? Que vou ficar amedrontado e concluir que é melhor acreditar em Deus, porque se estiver certo tenho uma chance de escapar do inferno e se estiver errado não tenho nada a perder, é isso? Essa esperteza usada por todos os velhos?" José também faz comentários irônicos, como dizer que D.S. era um ano mais velho que si próprio ou que saíra do seminário por ser libidinoso.
Enfim, uma outra interpretação possível para equiparar D.S. a Deus: José recorre a D.S. quando se vê sem saída para resolver o mistério no qual se vê envolvido. Quem melhor do que Deus, onisciente, para lhe dar as respostas que ele busca? Mas se ele é ateu... Bem, talvez José tenha abandonado o seminário por ter conhecido mais amiúde Deus e não tenha gostado nada do que conheceu. Em Guimarães, são os padres e o pai de Eugênio que maltratam o protagonista; em Fonseca, há uma referência de que são os homens novamente os responsáveis pela barbárie, e que Deus não teria nenhuma responsabilidade, posto que está morto, mas por motivos diversos dos encontrados em Guimarães: "D.S. estava muito estranho. Sugerindo que eu matasse alguém que ele conhecia. Mas, enfim, a mente humana era muito complicada, pensei em Zoroastro, Aristóteles, Platão, Kant, Freud, Nietzsche - se esses putos todos nada sabiam sobre a mente humana, o que saberia eu?" Ao dialogar com D.S., José humaniza Deus, afirmando ser a mente humana complicada - ao contrário do incognoscível Deus.
Em Fonseca também encontramos uma crítica aos preceitos católicos - o arrependimento e a consequente absolvição: "Se eu fosse religioso, arrependido como estava, bastava me confessar, rezar alguns padres-nossos e ave-marias que seria perdoado e tiraria aquele peso do meu coração". O que parece estar nas entrelinhas é o absurdo que é uma vida inteira dedicada a crimes hediondos, a matar pessoas com um tiro na cabeça e, para entrar absolvido no reino dos céus, bastar se arrepender, confessar e rezar. 
Para finalizar, chamo a atenção de que José - nome do pai de Cristo - tem apenas mãe, cujo desejo era ver o filho padre. Sem uma figura paterna e sem acreditar em Deus, não abdica, contudo, de seu primeiro nome, já que ele trazia recordações de sua mãe o chamado carinhosamente quando criança. Uma leitura que eu proponho é que, atualmente, vivemos um momento sem Deus, restando a cada um de nós suprir este papel da melhor forma possível, nem que seja apenas autonomeando-se José.
Ambos os romances fornecem mais problematizações e críticas a Deus e à religião, mas, para não tornar este texto ainda mais extenso, convido à leitura de ambos, pois são bons textos, com muito a dizer, cada qual respeitando seus respectivos "ismos".

sábado, 15 de junho de 2013

O debate sobre Deus

O excelente livro O debate sobre Deus, de Terry Eagleton, é o resultado das conferências que o professor de literatura inglesa na Universidade de Lancaster e de teoria cultural na Universidade Nacional da Irlanda proferiu a convite da Universidade de Yale em 2008. Poderia ser curioso ou mesmo incompreensível que um ateu se dispusesse a debater um assunto dessa natureza. No entanto, Eagleton, ao contrário de Richard Dawkins, por exemplo, faz parte do time de "ateus moderados", de acordo com denominação de Gustavo Bernardo Krause. Isso significa que, diferentemente de Dawkins, a religião não é, para Eagleton, um mal que necessita ser extirpado; ela tem sua importância e não encontra substituto para sua função na vida da humanidade, seja qual for a religião. 
Como professor de literatura, o conferencista é mais íntimo da ficção, ao contrário de Dawkins, homem das ciências e incapaz de fazer uma leitura alegórica dos livros sagrados. Para o primeiro, a equiparação entre Deus e ficção é mais natural e fluida, de modo a facilitar uma compreensão religiosa para além da literariedade contida nos Velho e Novo Testamentos e no Alcorão; para o segundo, esta tarefa torna-se nebulosa e inalcançável. Esta é apenas uma dentre várias críticas que Eagleton faz a Dawkins e aos "ateus ferozes". 
Neste livro, o autor evoca a religião como uma doutrina filosófica - e é este ponto um diferencial bastante inovador em se tratando de um ateu. Para ele, uma visão religiosa "trata-se, sim, de alimentar os famintos, abrir os braços para os imigrantes, visitar os doentes e proteger os pobres, os órfãos e os enviuvados da violência dos ricos. Espantosamente, não somos salvos por um aparato especial conhecido como religião, mas pela qualidade das nossas relações cotidianas uns com os outros. Foi o cristianismo, e não a intelligentsia francesa, que inventou o conceito da vida cotidiana". Esta citação equivaleria a dizer que, a despeito da crença ou não em um messias salvador, o que o cristianismo prega há mais de dois mil anos, além de ser extraordinariamente revolucionário - e duradouro -, é um modus vivendi a ser adotado por toda a humanidade, pois, assim agindo, tornaríamos o mundo melhor, mais justo, solidário, altruísta. Para alcançarmos esse estágio, a crença em Deus seria apenas um detalhe, isto é, o Todo Poderoso não deveria nos dizer como nos comportarmos, mas este deveria ser um comportamento intrínseco a todo ser humano. Qualquer semelhança com o socialismo não é mera coincidência. Em todo caso, como bem aponta Eagleton, o cristianismo teria sido a primeira "corrente filosófica" a apontar esse caminho.
Por que, então, é tão difícil que consigamos viver sob esses preceitos? Para o autor, o capitalismo tem contribuição decisiva, pois "o sistema capitalista avançado é inerentemente ateísta. Ele rejeita Deus em suas efetivas práticas materiais e quanto aos valores e crenças aí implícitos, independentemente do que possam asseverar alguns dos seus apologistas". Uma vida espiritual seria a antítese do acúmulo de bens materiais, ícone máximo da premissa capitalista. Quanto maior o poder de compra de um indivíduo e quanto mais capital ele conseguir acumular, mais ele será bem-sucedido. Dar aos pobres, ajudar quem necessita, acabar com a fome, dentre tantos outras atitudes altruístas e humanistas, parecem não se coadunar com o que prega o capitalismo. A própria religião, de acordo com Eagleton, se perdeu em meio à ostentação, como se a religião não fosse mais religiosa, ignorando os preceitos revolucionários de Cristo. Daí ser cada vez mais comum o surgimento de igrejas que visam apenas o lucro, explorando seus fiéis com contribuições muitas vezes exorbitantes e incentivando o ódio ao invés do amor, seja contra homossexuais ou contra qualquer pessoa que não se adeque àquilo que ela julgue correto. Para Eagleton, "o cristianismo há muito migrou do lado dos pobres e despossuídos para o dos ricos e agressivos". Para corroborar sua crítica ao capitalismo e sua contribuição para a "corrupção" da fé e da religião, o autor se pergunta: "qual o sentido da fé ou da esperança numa civilização que se vê como autossuficiente e basicamente tão boa quanto possível, ou, no mínimo, como um progresso retumbante em relação ao que existia antes?"
Ora, se Terry Eagleton iniciou um ataque crítico ao capitalismo como uma das causas do combate à religiosidade, ele precisaria aprofundar seus argumentos de modo a atingir seu maior responsável: os EUA e o mundo ocidental. E ele o faz de maneira direta, objetiva, contundente e destemida, numa universidade nos próprios EUA. Contra todo o terror advindo do ataque às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, ele afirma que, mesmo para os terroristas mais convictos de suas decisões assassinas - fique claro que o autor não compactua com elas -, seria necessário muitos anos de terror para igualar as mortes ocasionadas pelo "histórico bárbaro de guerra e imperialismo dos ocidentais". Dentre outros equívocos da política estadunidense, o autor cita o maior número de mortos no Chile, na ocasião da destituição de um governo democraticamente eleito, do que os mortos no 11 de setembro; menciona o apoio dos EUA ao regime da Indonésia, que exterminou igualmente um maior número de pessoas do que no atentado de 2001; também, em 1978, "com a assistência da CIA, o Irã passou de uma nação que incluía esquerdistas seculares e democratas liberais a um estado islâmico linha-dura". Eagleton responsabiliza os próprios EUA pelo estado de tensão em que vive após os atentados que chocaram o mundo. Segundo ele, "foi o Ocidente que ajudou o islamismo radical a florescer, quando o recrutou para lutar contra o chamado comunismo - rótulo usado para descrever qualquer país que ousasse esposar o nacionalismo econômico em detrimento do capitalismo corporativo ocidental".
O mundo islâmico, à luz do capitalismo, ficou completamente empobrecido, mais do que isso, excluído da bonança do capital e mutilado identitariamente, além de completamente ignorado pelo ocidente após perder sua serventia política. A respeito do islamismo, que seria a causa do terror vivido no mundo ocidental, ao contrário do que ficou tido como "verdade" no ocidente, Eagleton mostra que esta religião, em seus preceitos básicos, é contrária à barbárie, à violência, ao suicídio. Neste caso, o que motivaria os ataques extremistas e assassinos? Certamente a motivação não é religiosa, mas sim política. Nas palavras do autor, "o radicalismo islâmico, como o fundamentalismo cristão, acredita na substituição da política pela religião. Se a política fracassou na missão de emancipar o cidadão, quem sabe a religião funcionará melhor". Parece claro, a meu ver, que há aí um problema ontológico, pois a religião se deslocou para outra seara, alheia a sua origem primeira. Este deslocamento, porém, na visão do autor, não é exclusivo do islamismo, mas de toda religião em tempos atuais.
Este livro de Terry Eagleton merece ser lido com cuidado por religiosos ou não, teístas ou ateístas. Naturalmente, ele não restringe suas observações acerca de Deus e da religião a uma problematização do capitalismo e do mundo ocidental, mas é esta questão demasiada interessante e, a meu ver, inovadora, explicitando uma abordagem ignorada pela cultura ocidental. A política já demonstrou incapacidade de solucionar os problemas da humanidade, principalmente pós Guerra Fria e derrocada do comunismo. Para alcançar sua supremacia, os EUA e seus aliados utilizaram de todos os subterfúgios. Assim, "os fundamentalistas, em sua maior parte, são aqueles que o capitalismo deixou para trás, aqueles cuja confiança o capitalismo traiu, como trairá a de qualquer um e qualquer coisa que não gere mais lucro". A religiosidade, para Eagleton, é tão fortemente praticada - mesmo que por vias distorcidas - nos dias de hoje como uma forma de protesto, pois "sinalizam um problema para o qual não há solução".
Eagleton, apesar de ateu, compreende muito bem os preceitos religiosos e é defensor da religião, afinal, se a exterminássemos, como quer Dawkins, o que a substituiria? Não entrarei na questão dos enormes equívocos cometidos pela Igreja ao longo dos séculos, dos atentados extremistas em nome de um "Deus", ou mesmo da homofobia presente nos cultos evangélicos de um modo geral, dentre tantas outras desumanidades, mas, mesmo ao enumerar tais arbitrariedades, não é possível negar ações bastante positivas e genuinamente cristãs praticadas pelas religiões. Não à toa, talvez seja a instituição mais longeva do mundo, e isso não se dá sem um motivo sólido, sério e forte. 
Para finalizar, este livro de Terry Eagleton é leitura obrigatória porque aborda questões outras acerca de Deus e das religiões, todas muito bem embasadas e sob uma perspectiva materialista, sem, contudo, abdicar de uma visão profunda da religiosidade. Como marxista, ele dá uma compreensão para além do senso comum de que a religião é o ópio do povo.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Crítica de Maria Christina Rezende

Bruno,

Muito me sensibilizou sua dedicatória. Acompanhei sim sua trajetória de vida, de bons e maus momentos, e fico bastante envaidecida de ver você superando obstáculos e produzindo. E produzindo o quê? Poesia, versos, os mais sensíveis, belos e cativantes.
Observei que você datou as poesias e não pude deixar de notar a diferenciação de emoções dos anos assinalados ali.
Em 1993, você avisa que o barco está afundando, que com ou sem o marcapasso a vida está terminando. Em 1995, há um desejo de matar todas as pessoas e a agonia de esperar a morte  que será decidida por doutores, até se propondo a fazer "Guia Prático para se Chegar ao Fim". Você, em  2001, fala de berrar um grito visceral, algo em desarmonia, enquanto relata fazer força para ficar firme e, na mesma linha de angústia, em  2006 deseja a morte como libertação, querendo o nada.
Porém, em 2008, em contrapartida, enfoca a ternura de ter uma princesinha, assim como em 2011, com o segundo bebê ainda no berço.
Não sou poeta, e qualquer comentário que possa fazer seguirá também o meu sentido de "gostar mais ou menos", até porque, como você diz, "palavras não têm significado”. Discordo, pois para mim as palavras, quando ditas, podem ser enganosas e encobrir o que se oculta, entretanto, depende de como você é escutado e compreendido. Você fala com seus versos, o que é um falar muito potente. Você não usa o silêncio para se expressar.
Gostei do seu "Guia prático para se chegar ao fim". Também do "Pensando em João Cabral", e é pensando nele que me lembro que, quando um rio corta, corta-se de vez o curso do rio de água que este rio fazia, e a palavra, em situação dicionária, estanque nela mesma, com nenhuma outra se comunica.
Você se comunica e se comunica na sua dor e alegria, enfim, se comunica com sua essência, com o seu principal. Gosto mais do Bruno poeta do contundente, que pulsa, que se diz sem nexo, mas que consegue respirar fundo e se impulsionar para Pasárgada.
Enfim, um pretérito que você pode julgar imperfeito, contudo, foi e é produtor de um futuro, quem sabe perfeito.

Parabéns, Bruno, e não posso deixar de dizer o óbvio: Oci ficaria feliz.

Beijos,

Christina

domingo, 26 de maio de 2013

Deus, um delírio

Richard Dawkins é ateu convicto. E, naturalmente, nenhum problema há nisso. Mais do que ateu, porém, ele é um militante feroz e implacável contra toda e qualquer religião e, ipso facto, contra Deus. Na realidade, o delírio não está na crença em Deus, ou em deuses, mas, sim, na crença em qualquer fenômeno sobrenatural - e aí incluem-se Papai Noel, gnomos, fadas do dente, espíritos etc. etc. Em seu livro Deus, um delírio, Dawkins tem a pretensão confessa de converter seus leitores teístas em ateus, pois a (s) religião (ões) é (são) um mal que necessita (m) de um freio. Segundo o autor, as grandes maldades do mundo são cometidas em nome da religião. Para sustentar seu argumento, cita o prêmio Nobel Steven Weinberg, que diz que "a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião". Logo em seguida evoca Pascal, nessa mesma direção, que afirmou: "os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo quando o fazem por convicção religiosa". Evidentemente, a história documenta que coisas hediondas já foram e ainda são feitas em nome de Deus. Uma das razões pode ser atribuída ao monoteísmo, pois, se só há um Deus, o Deus da minha religião é o "verdadeiro", e qualquer um que professe uma fé divergente só pode ser um herege e, portanto, merece ser punido.
Para Dawkins, homem das ciências, é de certo modo fácil desconstruir a fé em um Deus sobrenatural porque todas as tentativas teológicas de provar sua existência são fracas, inconsistentes e, muitas vezes, ilógicas, paradoxais e contraditórias. Elas somente fazem sentido para quem tem fé, e fé é algo que se tem ou não. Ademais, a ciência já provou algumas coisas que, aos olhos de um religioso, são um absurdo, como por exemplo sermos fruto da evolução, e não do criacionismo. Não há o que se contestar a esse respeito, pelo menos de Darwin para cá. Por outro lado, a ciência nunca provou - e parece-me que jamais provará - a inexistência divina. 
Há, contudo, alguns senões na abordagem cientificista de Dawkins. Em primeiro lugar, ele inicia seu livro queixando-se do preconceito que os ateus sofrem apenas pelo fato de serem ateus, como se a ausência de fé ocasionasse um distúrbio moral - ou a falta de uma moral, que só poderia ser dada pela religião. Cita como exemplo a enorme dificuldade que um ateu teria para se eleger a algum cargo público. Segundo ele, seria mais fácil um homossexual ser eleito presidente dos EUA do que um ateu. E nesse ponto concordo com ele. Todavia, diferentemente dos homossexuais e das mulheres (para mencionar apenas duas lutas recentes da sociedade), que se organizaram em prol de uma liberdade, do reconhecimento pleno de seus direitos civis, sem com isso usar como arma o mesmo preconceito que os vitimizava, Richard Dawkins, ao longo de pouco mais de 500 páginas, demonstra a mesma indiferença e o mesmo descaso de que se sente vítima. Para ele, pessoas religiosas e teístas são menos favorecidas intelectualmente. A diferença residiria no fato de que o autor se vale de evidências completamente prováveis, ao passo que o religioso se vale apenas de sua fé, sem qualquer embasamento lógico e comprovável para tanto. No início do livro, ele diz que "a vida é curta demais para nos preocuparmos com a distinção entre os muitos produtos da imaginação". Ora, se Deus ou deuses são produtos da imaginação e não temos tempo a perder, por que razão escrever 500 páginas sobre isso? Poucas páginas adiante, ele desabafa: "Estou sinceramente farto de pregadores políticos em todo este país me dizendo que, como cidadão, se eu quiser ser uma pessoa moral, tenho que acreditar em A, B, C e D". Por que deveríamos, então, dizer às pessoas que elas não devem acreditar em A, B, C ou D? Porque, para o autor, a religião é um mal que precisa ser combatido.
Muita barbárie já foi cometida em nome de Deus e da religião, mas isso, a meu ver, não é problema nem da religião nem de Deus, mas sim dos homens, que utilizaram - como ainda utilizam -, em benefício próprio, a fé alheia. E eis que, nesse sentido, evidencia-se um dos problemas da abordagem de Dawkins: a ciência nos traz dia a dia muitas conquistas, é certo. Graças a ela temos conforto, bem-estar, descobrimos curas para doenças terminais e inúmeros outros benefícios. Mas não foi graças à ciência que a bomba atômica foi feita, destruindo Hiroshima e Nagasaki? O que o mundo assistiu horrorizado na Segunda Grande Guerra, nos campos de concentração alemães, não eram experimentações científicas? Os acidentes nucleares também não são, de certa forma, consequência dos avanços da ciência? Mas ninguém de bom-senso dirá que o problema é da ciência, e sim de como o homem a utiliza.
Um outro grave equívoco de Dawkins, na minha opinião, é que ele, apesar de estender sua crítica para todas as religiões, parece se concentrar apenas nas três religiões abraâmicas - judaísmo, catolicismo e islamismo. Com essa restrição, ele prende-se aos Velho e Novo Testamentos e ao Alcorão. E, para piorar, faz uma leitura literal desses livros. Não sou religioso, tampouco profundo conhecedor do tema, mas o espiritismo e as religiões afro-brasileiras não se enquadrariam no fundamentalismo que poderia advir das três religiões apontadas pelo autor. Além do mais, nem todo judeu, católico ou muçulmano leva a ferro e fogo, ao contrário do que ele acredita, o que consta nos livros sagrados. Dizer que todo muçulmano é um homem-bomba em potencial, por exemplo, incorreria na mesma falácia perigosa de qualquer generalização, como a de que todo ateu é imoral, dentre tantas outras.
Salvo engano meu, foi Rubem Alves quem disse que Deus não existe simplesmente porque a existência é uma condição humana. Se Deus é sobre-humano, Ele é - ou não - alguma outra coisa que fugiria à nossa compreensão. Dawkins, mais uma vez, equivoca-se ao humanizar Deus. Não raro, sempre que ele quer desconstruí-lo, desacreditá-lo, atribui a Deus condições humanas, de maneira a, assim, provar as suas contradições e suas idiossincrasias. Caro Richard Dawkins, não é você mesmo quem afirma não crer em nada sobre-humano? Esqueça, neste caso, seu intelecto para buscar lógica em um mundo que não é - ou não seria - físico. É apenas este mundo físico capaz de ser regido e explicado com propriedade pela ciência. Esta ocupa-se do que é natural e oferece hipóteses e teorias para o que há na Terra. Mas o que é sobrenatural é de outra ordem, não deveria inquietar tanto a um cientista, seja por indiferença, desinteresse ou inaptidão. 
A literatura - ficção por excelência - oferece-nos mundos outros muitas vezes inverossímeis se contemplados à luz da ciência. Todos sabemos ser impossível Gregor Samsa metamorfosear-se em um inseto, mas a leitura de Kafka ainda é indispensável, como tantas outras. Se Deus não "existe de fato", ainda assim passa a existir como construção discursiva e, portanto, como ficção. E que mal pode haver com as ficções? Elas são imprescindíveis para nós, que somos, em certo sentido, igualmente ficcionais. Ao aproximar Deus da literatura, Richard Dawkins fornece bons momentos em seu livro. Duas passagens são exemplares: "o principal motivo de a Bíblia ter de fazer parte de nossa educação é o fato de ela ser importante fonte de cultura literária. A mesma coisa aplica-se às lendas dos deuses gregos e romanos, e aprendemos sobre eles sem que ninguém peça que acreditemos neles". Pouco mais à frente ele diz: "Certamente a ignorância em relação à Bíblia empobreceria o apreço à literatura". Ademais, nossa cultura está repleta de signos religiosos, muitos dos quais nem sequer mais têm uma conotação realmente religiosa, stricto senso, mas já receberam um status social, como o casamento religioso, dentre outros. 
São muitas as questões apresentadas com complexidade por Richard Dawkins e seria difícil enumerar todas aqui. Mas, para finalizar, cito outra consideração, no mínimo, conflituosa de nosso autor. É com perplexidade que ele fala da educação religiosa ministrada para crianças, uma vez que elas não teriam, ainda, discernimento para seguir ou não, por sua própria vontade, a religião de seus pais. Apenas com idade suficiente para decisão de tal ordem é que se deveria falar de religião para elas. Ele se pergunta: "as próprias crianças não deveriam ter direito a uma opinião?" Mas se elas não têm condições emocionais e intelectuais para decidir crer ou não em Deus, teriam para não crer? Se Dawkins afirma que as crianças não têm maturidade para escolher, como exigir delas maturidade para opinar? Parece-me natural que os pais busquem para seus filhos o que julgam ser o melhor. Sendo este melhor uma vida religiosa, o que fazer? 
Dawkins, muito erudito, cita inúmeros autores em seu livro e demonstra possuir bastante domínio sobre o assunto de que trata. Não concordo com muitas de suas posições, mas, ainda assim, é uma leitura interessante sobre o tema, ao menos nos faz refletir bastante. De todas as citações de Dawkins, faltou uma, a de Voltaire: "Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de o dizer". Como falei anteriormente, não sou religioso, mas quem é tem o pleno direito de sê-lo, quer eu concorde com a escolha ou não. 
Finalmente, há, em nosso planeta, inúmeros problemas que merecem ser solucionados para que a humanidade prossiga de maneira a viver em harmonia. Talvez o eterno estado de alerta em que vivem os EUA, em função de relações belicosas com o mundo islâmico, e seus aliados, como a Grã-Bretanha (país natal de Dawkins), com episódios recentes de atentados que chocaram todo o mundo - a meu ver, a religião serve como uma forma de escamotear interesses escusos - tenham contribuído para a acusação da religião e de Deus como os grandes vilões a serem combatidos. Será?