Pesquisar neste blog

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A Inquisição

É de conhecimento comum as arbitrariedades cometidas pela Inquisição com a intenção de assegurar a hegemonia da Igreja Católica e "purificá-la", em nome de Deus, livrando-a de toda e qualquer manifestação herética, nem que para tanto fosse necessário o uso da força, da tortura e da morte, sem que os réus, acusados de heresia, tivessem sequer o direito de defesa. A Inquisição, livro de Michael Baigent e Richard Leigh, tem como mérito historicizar as barbáries da Igreja de forma crítica, porém imparcial. Com maior ênfase entre os séculos XII e o pontificado de João Paulo II - já que "a tortura e execução de hereges não eram nada de novo na história cristã. Ao contrário, tais práticas tinham amplos precedentes, que se estendiam para trás até o quarto século, pelo menos" -, os autores evidenciam que mais do que uma instituição religiosa, a Igreja é sobretudo política. Não à toa o catolicismo é a única religião que é reconhecida como Estado também. "Após o Concílio de Trento", por exemplo, "a Igreja tornou-se o equivalente a uma monarquia absoluta, com o Papa gozando do status de soberano". Ela só se desvincularia da Itália e se reduziria ao Vaticano tempos depois.
É possível que os exemplos de maus tratos cometidos pela Inquisição causem alguma revolta nos leitores, principalmente naqueles que não comungam do catolicismo. Dentre os inúmeros exemplos oferecidos, cito o caso de uma mulher acusada de bruxaria e que recebeu como pena ser atirada a um rio, sem qualquer julgamento prévio que pudesse "justificar" tal ato. Caso ela se afogasse, seria considerada inocente e sua alma seria perdoada; ao contrário, se ela conseguisse sobreviver, isto seria a prova cabal de que seu salvamento era obra de bruxaria, logo, de satanismo, e ela seria queimada viva. Num ou noutro caso, inocente ou culpada aos olhos da Igreja, sua morte era certa. De acordo com os autores, "a Inquisição logo criou uma metodologia de intimidação e controle de impressionante eficiência - tanto que se pode ver nela uma precursora da polícia secreta de Stalin, da SS e da Gestapo nazistas".
A Inquisição estava mais interessada em punir quantitativamente, ainda que para isso inocentes fossem mortos. Conrad Tors, inquisidor que viveu no século XII, afirmou que "queimaria cem inocentes se houvesse um culpado entre eles". É neste estado de constante pavor que os indivíduos viviam, e passaram a acusar qualquer pessoa que pudesse estar envolvida em atividades heréticas. O acusado, além de todas as sanções impostas - tortura, prisão, estigma e morte -, também teria seus bens confiscados pela Igreja, e seus familiares, não raro, morriam de fome. O papa Sixto IV, na segunda metade do século XV, emitiu uma Bula reprovando os abusos cometidos pela Inquisição espanhola. Segundo ele, "a Inquisição há algum tempo é movida não por zelo pela fé e salvação das almas, mas pelo desejo de riqueza", mas isto não foi suficiente para abrandar os inquisidores.
O poder e o medo perpretados pela Inquisição eram de tal ordem que quem soubesse de alguém envolvido em atos heréticos e não os denunciasse também seria igualmente punido. Como os denunicadores mantinham-se anônimos, passou a serem comuns acusações falsas, apenas para que inimigos se vissem livres dos falsos hereges, ou que comerciantes rivais sumissem com a concorrência.
A Inquisição espanhola, tida como a mais violenta, de acordo com os autores, mergulhou "num implacável programa de 'purificação' que antecipava a política nacional-socialista do século XX e a prática de 'limpeza étnica' aplicada nos Bálcãs na década de 1990. E aqui ainda estamos no século XV. Os métodos aplicados pelos inquisidores já prenunciavam o horror assistido no século passado. 
Baigent e Leigh, porém, não se restringem a enumerar as barbaridades cometidas pela Inquisição. Oferecem uma visão bem documentada e consistente das rixas políticas dentro da Igreja. Seu descentramento, como queriam os bispos, e a cada vez maior concentração de poder investida na figura do papa são muito bem apresentados no capítulo referente à Infalibilidade papal, que conferia ao sumo pontífice a autoridade final em assuntos refentes à Igreja Católica. É a partir de Pio IX, no final do século XIX, que conhecemos o papado como ele o é hoje.
Perdendo cada vez mais espaço e poder, a Igreja se viu obrigada a se adequar ao mundo moderno, mas aparentemente ela não vem conseguindo ajustar seus dogmas e tradições às necessidades dos fiéis dos séculos XX e XXI. A proibição de anticoncepcionais, dentre eles da camisinha em tempos de Aids, a recusa em abrir um debate mais amplo em torno do aborto, da eutanásia, do divórcio, da recusa em aceitar a ordenação de mulheres etc. têm feito com que a Igreja venha perdendo milhares de fiéis, aumentando muito o número de seguidores das Igrejas Evangélicas.
O último papa abordado pelos autores é João Paulo II, mas o ainda atual, pelo menos até o dia 28 próximo, é mencionado, então como braço direito de João Paulo II, apresentado como bastante conservador, um mal sinal em tempos em que a Igreja deveria se modernizar. A respeito do anúncio que a Igreja fez em finais do século passado de que pretendia se desculpar pelos erros cometidos no passado, em especial pelos abusos da Inquisição, os autores anotam que "tais medidas são bem-vindas e encorajadoras. Para sobreviver, é necessário adaptar-se. Para amadurecer, no entanto, é necessário mais que isso. É necessário enfrentar o passado, admiti-lo e integrá-lo numa nova unidade ou totalidade que corrija quaisquer desequilíbrios anteriores. Não se pode negar, ignorar, repudiar ou relegar brutalmente o passado ao esquecimento. Ele deve ser trazido a um novo tipo de acomodação com o presente; e os dois devem servir de fundação na qual se possa criar um novo e mais equilibrado futuro. Em épocas anteriores, a Igreja raras vezes reconheceu essa necessidade. Que pareça fazê-lo agora, é de fato louvável, e indica um pouco de verdadeiro amadurecimento". A renúnica de Bento XVI, que pegou o mundo todo desprevenido, seria um indício dessa mudança? Isso o tempo dirá, mas creio ser muita ingenuidade creditar sua renúnica a problemas de saúde, já que a Igreja é, sobretudo, uma entidade política.
Para os leitores que poderiam se horrorizar com os desatinos da Inquisição, os autores lembram que "a Inquisição - ou, para citá-la pelo seu nome atual, a Congregação para a Doutrina da Fé - não é, claro, toda a Igreja. É apenas um aspecto da Igreja, um escritório, um departamento". Este lembrete sugere aos leitores que há coisas positivas na Igreja - e de fato há, pelo menos para os seus fiéis - e que não devemos condená-la "apenas" pelos crimes e corrupções que perduraram séculos no seio da Igreja.
Para finalizar, a leitura deste livro me fez pensar em como a humanidade ainda precisa evoluir. Por que será que a intolerância ainda está em voga em pleno século XXI? Religiosa ou não, mas muito mais agravante se incentivada "em nome de Deus". O ódio aos homossexuais, aos negros, aos nordestinos nos grandes centros do país, aos judeus, a misogenia, aos norte-americanos pelos fundamentalistas islâmicos, aos seguidores de religiões afrodescendentes são apenas alguns exemplos do inaceitável em qualquer sociedade que se queira civilizada e espiritualizada. Isso sem falar em brigas entre torcidas organizadas de times rivais ou mesmo em postagens, em redes sociais, de que pessoas que não gostam de animais não merecem respeito. Por que tudo isso?