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sexta-feira, 18 de maio de 2018

A comédia desumana


Fui baleado. Tudo muito rápido, muita dor e agonia. Mais agonia do que dor. A visão embaçou, mas notei um grupo correndo, em desabalada carreira em direção à Glória, saltando por sobre meu corpo, estirado e ensanguentado numa calçada suja. Agonizava em frente à Igreja do Carmo da Lapa do Desterro, igrejinha simpática onde nunca entrei. Minha barriga queimava, mas conseguia distinguir pessoas gritando, mulheres chorando e muita algazarra. Senti raiva daqueles curiosos que param para apreciar a morbidez. Nem na porra da morte eu teria sossego, tudo que eu sempre quis. Mentira, almejei muito mais, mas me contentaria com um pouco de paz, nem que fosse apenas para a minha cabeça atormentada. Sim, como ambicionei o sossego no meu dia a dia, ausente mesmo no meu apartamento onde reina o silêncio. Nunca o tive, porém. Não bastasse o barulho que minha cabeça fazia diariamente, precisava agora ouvir o alheio, que era irritante. Onde estaria o respeito por um moribundo? É certo que eu não me encontrava em um hospital, cujas placas indicavam aos motoristas que não buzinassem, mas ainda assim era de bom tom me deixar quieto. Não é na hora da morte que o homem atinge sua maior sabedoria, como dizia o alemão? É certo que jamais fui sábio e não seria agora que transmitiria algo de importante ou relevante para alguém. Vivi solitário toda a minha vida miserável. Afinal, que morresse como vivi, sem companhia nem espetáculo. Como um cão, sem processo. Quis gritar, mas não obtive forças para mandar todo mundo pra puta que pariu. Me resignei, era o que restava, e mentalizei Deus. Pois é, ateu até o momento do grande final. Sempre sonhei com uma morte glamorosa, se é que há glamour em morrer. Pedi a Ele mais uma chance, mentalmente fiz promessas que eu jamais cumpriria e tive vontade de rir, mas ao invés do riso de escárnio, a tosse agônica. Com ironia desejei presenciar a morte de Richard Dawkins. A dor crescia e as forças evadiam-se. Buzinas reclamavam passagem, gritavam para os carros seguirem caminho, que paravam para me contemplar. Perturbavam meu juízo. Ou a falta dele, pouco importa. No tumulto do meio-dia, finalmente ouvi bem longe a sirene que me salvaria. Certamente não era a providência divina, apenas um telefonema desesperado de um anônimo qualquer a clamar por socorro. Pelo menos me tiraria dali, daquele anfiteatro improvisado, privando as pessoas do inesperado e devolvendo-as à mesmice do cotidiano. Teria histórias para contar, toda aquela corja, de volta a casa, à noite, a entreter suas famílias e a aumentar o lamento aparvalhado diante do caos em que vivemos. Gentalha! A sirene continuava longe. Foi então que duas velhas carpideiras abriram espaço e contra a luz do sol vi um padre. Nada de ambulância ainda. As carolas foram mais pragmáticas que eu, trouxeram consigo um dos ministros do Pai. Viera para me dar a extrema-unção. Questionei-me se estava realmente tão mal assim, mas, incapaz de emitir juízo algum e empapado em sangue, novamente me resignei. O velho da batina se inclinou e perguntou se eu queria me confessar. Sorri. Fiz, com muita dificuldade, um gesto para ele se aproximar e, com um sorriso safado, confessei que meu único pecado foi transmitir a lindas criaturas o legado de nossa miséria.
Não me recordo de mais nada. Devo ter desmaiado, perdido os sentidos. Que sentido há na vida, afinal? Quando voltei a mim, estava num leito de hospital. Fui informado que a cirurgia correu bem e que em poucos dias voltaria para casa. Apenas escutei, sem pronunciar palavra. Me perguntei por que isso acontecera logo comigo para em seguida responder: por que não? Jamais realizei algo notável e nada de bom nunca me visitou. Nesse momento, vi se aproximarem do leito minhas filhas. Pois bem, ali estava a prova da minha estupidez. Passei adiante meus genes, todos inúteis, que viveriam além de mim e, de certa forma, me manteriam vivo. Lamentei por elas e quis me desculpar. Não sabia exatamente o motivo, mas a vida por si só já é um fardo pesado demais a dar a outro ser humano. Fosse juiz do meu caso, jamais me absolveria. Elas não concordavam comigo e isso me entristeceu. Eram cheias de vida e de sonhos, que eu desconfiava que nunca virariam realidade. Seria a ingenuidade da mocidade ou, ao contrário de mim, eram felizes? Possuíam fé, decerto, que devem ter herdado da mãe, mulher que há pelo menos duas décadas não me olhava na cara nem me dirigia palavra.
As três puseram-se a me mirar com amor, mas para mim parecia pena. Devia ser isso, pena. Por que me amar? O que fiz de bom para elas? O silêncio era constrangedor, até que a mais velha, talvez por se achar na obrigação de porta-voz, disse que logo logo estaria em casa. Sozinho novamente, pensei. No meu apartamento não tinha sequer plantas para não me dar o trabalho de cuidar de outra vida. Já era bastante penoso cuidar de mim mesmo. Minhas filhas não me visitavam e nem eu a elas. Ali estavam por obrigação, certamente. Contrato social. Contentava-me com a vida que vivia por empréstimo dos personagens dos livros que lia. A arte imita a vida é uma grande falácia. Livros são interessantes, ricos, complexos, eternos. Se eu destruísse meu exemplar de Dom Quixote, a obra permaneceria. Li isso em algum lugar, não me recordo onde. Por outro lado, se eu expirasse na calçada em frente à igrejinha da Lapa, não sobreviveria em memória alguma. Os vermes me roeriam e só. Para isso existimos, para dar utilidade aos vermes, que roem porque roem. A natureza não é fantástica? Diante de minha prole, tive uma epifania. Nasci para cumprir a cadeia alimentar.
Covarde, faltou-me coragem para expor meu raciocínio. Solicitei um cigarro, a única coisa que saiu dos meus lábios. Elas se entreolharam e nada responderam, algo constrangidas e impacientes. Esforcei-me por sorrir, como a dizer que estava tudo bem e feliz com a notícia de que voltaria, vivo, para casa. O horário da visita terminou e elas partiram, com a promessa irrealizada de que voltariam. Passei mais alguns pares de dias naquele hospital inóspito. Para mim, muito familiar, com a exceção de haver gente em demasia. Meu passatempo era ouvir os gemidos dos demais pacientes e me esforçar para criar narrativas que justificassem a presença deles ali. Imaginava o quão infelizes eles eram. Pessoas felizes não param em um hospital público, evidentemente.
Chegou a hora de receber do médico a alta. Precisei informar-lhe que ninguém me buscaria e que seguiria para casa como nasci e vivi: sozinho. Tomei um táxi e encontrei meu apartamento como o deixei. Resolvi telefonar para minhas filhas, mas ninguém atendeu. Talvez pela brevidade da vida e por ter flertado com a morte, decidi ligar para minha ex-mulher, havia muito a dizer: caixa postal. Melhor assim, pois eu não teria assunto e estava indisposto a ouvir a descompostura de sempre. Raramente nos falamos desde a separação, mas em todas as poucas vezes que tive esse desprazer, ouvia quieto toda sorte de impropérios. Lá se vão longos e distantes anos... Abri a geladeira, peguei uma cerveja, desimportando-me com cuidados médicos, e me sentei com dificuldade na sala, ainda com dor. Na mesinha ao lado, meu maço de cigarros. Uma bela tragada pode ser redentora. A janela deixava entrar meu silêncio companheiro e um pedacinho do céu azul, além de um diminuto trecho da Baía de Guanabara, aberto entre um vão entre dois edifícios. Com os pulmões renovados, abri ao léu um volume de A comédia humana e retomei minha vida ordinária.