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sábado, 8 de dezembro de 2018

Cadeira de Balanço


           
            Sentado em uma cadeira de balanço, velha, mas confortável, miro e vejo, à minha frente, uma bela paisagem. A grama verde parece se perder no horizonte, onde encontra o azul do céu. Árvores oferecem abrigo do sol, mas a sombra é solitária, pois não há alma alguma que a aproveite. Eu mesmo sinto apenas desejo de lá ir, mas, velho e indisposto, afundo-me mais na cadeira de balanço, com seu pequeno ranger no ir e vir que ela proporciona. Todo movimento de que preciso. Ou melhor, o único que consigo. O silêncio é o meu confidente e a ele rememoro minha história. Os enfermeiros que se obsequiam a me oferecer um fim de vida menos insuportável não imaginam que, jovem, teria potencial para construir algo diferente daquilo que hoje é o meu presente se obtivesse os meios necessários para isso.
            Na realidade, desconfio se de fato esse potencial existiu ou se é apenas fruto da caduquice. Jamais me senti normal, mesmo quando criança. Aliás, convenhamos, ser normal é, no mínimo, lastimável, senão impossível. Sempre desconfiei da alegria infantil nos jogos de bola na rua, dos meninos a empinar pipas ou das garotas a pular amarelinha. Havia uma divisão clara entre meninos de uma lado e meninas de outro. Nunca se cruzavam, exceto quando juntavam-se para brincar de pique e na subserviência à autoridade dos adultos. Obediência tola. Lembro-me que já naquele tempo eu me esquivava do contato humano e punha-me a salvo de todos sob uma árvore solitária no fundo do quintal. Como eu. Agora, as árvores permanecem solitárias, pois faltam-me força nas pernas para até lá ir e preguiça de abandonar o vai-vem da cadeira de balanço. A infelicidade e a inadequação, porém, são as mesmas de outrora.
            Não havia papel para mim. Incapaz de atuar como uma criança alegre; inverossímil assumir o papel de adulto; inábil para estar na coxia do palco do mundo − nem coadjuvante, que dirá protagonista. Observava tudo e todos e me angustiava com o por vir. A vidinha que eu conhecia daqueles que me cercavam era intolerável. A realidade era tudo que eu conhecia e desgostava. Eu residia no universo da fantasia, mas insuspeitava ser possível dar a volta ao mundo em 80 dias, afinal de contas, 24 horas já era um tempo infindável. As letras, para mim, resumiam-se ao abecedê do colégio, espaço de rigidez, disciplina e obediência. Como eu odiava vestir o uniforme que me tornava igual a todas as outras crianças. Logo eu, que sempre me senti diferente. Nada em mim era remotamente parecido com quem quer que seja. Cumpria pontualmente a obrigação diária e, na hora do recreio, aquietava-me isolado a observar as demais crianças se divertirem. Nenhuma jamais veio a mim, nunca recebi convite para participar dos brinquedos, o que, é bom dizer, agradecia. Tudo me era estranho, exceto a imaginação, a criar uma realidade que me privaria do cinturão de meu pai. Assim se passaram meus verdes anos, que narro, aqui, cronologicamente porque não tenho capacidade para um estilo mais galante, tampouco é minha intenção.
            Os anos da meninice se passaram e, quando vi, pela primeira vez, o Zeca e a Rosinha se beijando atrás da igreja, quis morrer. Não que eu nutrisse algum sentimento por ela ou por ele, mas imaginei que seria esse também o meu destino. Acreditava em tudo que via, e o que eu via era repugnante. A realidade era demasiadamente fastidiosa aos meus sentidos e a escola prendia-me a ela, pois as letras que se somavam umas às outras não estetizavam nada para além da vida cotidiana; elas apenas formavam em mim a obrigatoriedade de adquirir um senso prático para a vida; eram funcionais, pragmáticas. Era necessário aprender as primeira letras, conseguir ler e escrever meia dúzia de sentenças, e somar as contas que certamente um mercadinho qualquer me daria. O beijo flagrado, do percurso da igreja para casa, arrepiava-me, fazia-me prever o futuro próximo, positivista, de estar abraçado com outra pessoa, trocando saliva e percorrendo com as mãos o corpo alheio. Não viveria em um cortiço. Nem as surras que eu levava continham contato direto entre minha carne machucada e a mão do agressor. Era sempre o cinturão que me castigava. Asqueroso e ultrajante permitir que outro ser humano tocasse em mim com toda aquela volúpia. E era isso que me aguardaria, pois já notava mudanças incompreensíveis e indesejadas em meu corpo. Apareciam alguns pelos, a voz tornara-se menos esganiçada, diferenciava-me das crianças menores a olhos vistos e me vi a caminho de virar adulto. Apavorei-me e quis morrer. Nasci covarde por natureza e jamais tentaria me matar.
            Durante toda minha vida adolescente e adulta, esgueirei-me do contato humano como pude. A humanidade é repugnante e cada indivíduo igualmente, com seus odores e hábitos odiosos. A solidão foi um refúgio, um porto seguro. A ninguém precisava dar explicações ou satisfação. A vida fechada ao redor de mim carecia apenas de algo que me alheasse da realidade, ou melhor, que criasse outra, menos dolorosa ou com mais fantasia. Tosco, não concebia criar nada ao correr da pena. Não criei família e meus pais findaram-se com o tempo. Nada do meu sangue ainda resta no universo. O silêncio, meu confidente, se extenuaria a ouvir-me as recordações de uma vida vazia. Nada fiz ou produzi. Dia após dia, acordava com as galinhas, tomava apenas um café preto e saía para trabalhar no armazém, com o qual me mantive graças ao letramento e as contas de somar e diminuir aprendidas no colégio. Voltava para casa, fazia uma refeição ordinária e esperava o sono a imaginar alguma coisa diferente da realidade. Mas o que poderia haver para além das galinhas, dos raros clientes que compravam víveres no armazém ou das pessoas indesejadas? Assim adormecia. Nunca sonhei, pelo menos de sonhos não possuo lembranças. Para encurtar a história, se é que há algo de interessante em ler a minha, posso arrematar dizendo apenas que o tempo foi implacável, me envelheceu e adoeceu e que uma alma caridosa me trouxe para essa cadeira de balanço, velha, mas confortável. Justamente um ser humano, raça que eu sempre menosprezei, compadeceu-se de mim. E foi graças a essa pessoa que eu pude ouvir as primeiras leituras de realidades tão diferentes daquela que eu conhecia e odiava. Ora um estudante engomadinho e simpático, ora uma jovem de rabo de cavalo e óculos fundo de garrafa vinham ler histórias para mim. Velho e acabado, ouvia com regozijo toda aquela literatura que eu desconhecia. Nunca imaginei que as letras somadas umas às outras poderiam operar tamanha transformação em meu espírito. Até as vidas de pessoas de quem eu nunca ouvira falar pareciam interessantíssimas. Invejei um senhor que, tal como eu, também encontrava-se no cárcere, embora não fosse velho e não limitado a uma cadeira; ele sofreu bastante, mas ainda era jovem e instruído. Foi capaz de escrever lindas histórias e deixar para as gerações futuras suas memórias. Se a agonia dele podia ser tão interessante e linda − sim, o sofrimento pode se transformar em lindeza −, por que a minha não? Porque sou um velho sem nada de prestigioso ter feito em vida, mas vá lá. O registro de minha vida serve apenas a mim. Se houver cinco leitores a me lerem, ótimo; se não, amém. Poderia inventar um monte de coisa, criar aventuras que protagonizei, iludir o leitor, que acharia estranho não me encontrar em nenhuma enciclopédia e ainda acreditaria estar em mãos com um exemplar único. Tolice. Me falta capacidade e refestelo-me em ouvir as histórias dos outros. A minha é desinteressante.
            Hoje, sou uma uva passa, não passo de um velho; adoraria ter um corpo mais jovem, poder caminhar até as árvores, abandonar a cadeira de balanço e me livrar da higiene íntima à qual me submetia diariamente pelos cuidadores, a maioria, feminina. Nunca quis ser tocado, que dirá ser limpo após evacuar. Tamanha humilhação era suportável porque eu ouviria dos jovens que liam para mim a compensação de toda uma existência miserável. A literatura veio me redimir. Tornou menos sórdido meu fim. Operou em meu espírito de tal modo que lamentei não ter condições de buscar o tempo perdido da meninice e amaldiçoei  o destino que me impuseram com as lições de gramática e de conta: tudo que eu precisaria para ganhar o suficiente para viver. Ora! E a vida seria só aquilo? Os estúpidos dos meus pais não poderiam ambicionar coisa melhor para mim? Idiotas! Que Deus os tenha. Ou o diabo, pouco importa.
            Quando os ledores iam embora, ficava a sós comigo e com os personagens. Isso sim é importante. Pena que tal descoberta chegou tarde demais, quase póstuma. Engraçado aquele sujeito que escreveu suas memórias nessa condição. Quanta imaginação! E eu preso a uma vida seca... Foi então que olhei para o verde infinito e fiz a primeira analogia de minha existência: parecia que olhava diariamente para o silêncio respeitoso de um cemitério, mas sem aquele aspecto fúnebre que as lápides ostentam. Se houvessem que escrever alguma coisa na minha, que fosse apenas "A-deus".

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Réquiem

Órfão 
Sem pai nem mãe 
Sem mãe nem pai
Passo adiante o que aprendi 
Transmito a minhas filhas
Quem sou:
Meu pai e minha mãe
Minha mãe e meu pai

sexta-feira, 18 de maio de 2018

A comédia desumana


Fui baleado. Tudo muito rápido, muita dor e agonia. Mais agonia do que dor. A visão embaçou, mas notei um grupo correndo, em desabalada carreira em direção à Glória, saltando por sobre meu corpo, estirado e ensanguentado numa calçada suja. Agonizava em frente à Igreja do Carmo da Lapa do Desterro, igrejinha simpática onde nunca entrei. Minha barriga queimava, mas conseguia distinguir pessoas gritando, mulheres chorando e muita algazarra. Senti raiva daqueles curiosos que param para apreciar a morbidez. Nem na porra da morte eu teria sossego, tudo que eu sempre quis. Mentira, almejei muito mais, mas me contentaria com um pouco de paz, nem que fosse apenas para a minha cabeça atormentada. Sim, como ambicionei o sossego no meu dia a dia, ausente mesmo no meu apartamento onde reina o silêncio. Nunca o tive, porém. Não bastasse o barulho que minha cabeça fazia diariamente, precisava agora ouvir o alheio, que era irritante. Onde estaria o respeito por um moribundo? É certo que eu não me encontrava em um hospital, cujas placas indicavam aos motoristas que não buzinassem, mas ainda assim era de bom tom me deixar quieto. Não é na hora da morte que o homem atinge sua maior sabedoria, como dizia o alemão? É certo que jamais fui sábio e não seria agora que transmitiria algo de importante ou relevante para alguém. Vivi solitário toda a minha vida miserável. Afinal, que morresse como vivi, sem companhia nem espetáculo. Como um cão, sem processo. Quis gritar, mas não obtive forças para mandar todo mundo pra puta que pariu. Me resignei, era o que restava, e mentalizei Deus. Pois é, ateu até o momento do grande final. Sempre sonhei com uma morte glamorosa, se é que há glamour em morrer. Pedi a Ele mais uma chance, mentalmente fiz promessas que eu jamais cumpriria e tive vontade de rir, mas ao invés do riso de escárnio, a tosse agônica. Com ironia desejei presenciar a morte de Richard Dawkins. A dor crescia e as forças evadiam-se. Buzinas reclamavam passagem, gritavam para os carros seguirem caminho, que paravam para me contemplar. Perturbavam meu juízo. Ou a falta dele, pouco importa. No tumulto do meio-dia, finalmente ouvi bem longe a sirene que me salvaria. Certamente não era a providência divina, apenas um telefonema desesperado de um anônimo qualquer a clamar por socorro. Pelo menos me tiraria dali, daquele anfiteatro improvisado, privando as pessoas do inesperado e devolvendo-as à mesmice do cotidiano. Teria histórias para contar, toda aquela corja, de volta a casa, à noite, a entreter suas famílias e a aumentar o lamento aparvalhado diante do caos em que vivemos. Gentalha! A sirene continuava longe. Foi então que duas velhas carpideiras abriram espaço e contra a luz do sol vi um padre. Nada de ambulância ainda. As carolas foram mais pragmáticas que eu, trouxeram consigo um dos ministros do Pai. Viera para me dar a extrema-unção. Questionei-me se estava realmente tão mal assim, mas, incapaz de emitir juízo algum e empapado em sangue, novamente me resignei. O velho da batina se inclinou e perguntou se eu queria me confessar. Sorri. Fiz, com muita dificuldade, um gesto para ele se aproximar e, com um sorriso safado, confessei que meu único pecado foi transmitir a lindas criaturas o legado de nossa miséria.
Não me recordo de mais nada. Devo ter desmaiado, perdido os sentidos. Que sentido há na vida, afinal? Quando voltei a mim, estava num leito de hospital. Fui informado que a cirurgia correu bem e que em poucos dias voltaria para casa. Apenas escutei, sem pronunciar palavra. Me perguntei por que isso acontecera logo comigo para em seguida responder: por que não? Jamais realizei algo notável e nada de bom nunca me visitou. Nesse momento, vi se aproximarem do leito minhas filhas. Pois bem, ali estava a prova da minha estupidez. Passei adiante meus genes, todos inúteis, que viveriam além de mim e, de certa forma, me manteriam vivo. Lamentei por elas e quis me desculpar. Não sabia exatamente o motivo, mas a vida por si só já é um fardo pesado demais a dar a outro ser humano. Fosse juiz do meu caso, jamais me absolveria. Elas não concordavam comigo e isso me entristeceu. Eram cheias de vida e de sonhos, que eu desconfiava que nunca virariam realidade. Seria a ingenuidade da mocidade ou, ao contrário de mim, eram felizes? Possuíam fé, decerto, que devem ter herdado da mãe, mulher que há pelo menos duas décadas não me olhava na cara nem me dirigia palavra.
As três puseram-se a me mirar com amor, mas para mim parecia pena. Devia ser isso, pena. Por que me amar? O que fiz de bom para elas? O silêncio era constrangedor, até que a mais velha, talvez por se achar na obrigação de porta-voz, disse que logo logo estaria em casa. Sozinho novamente, pensei. No meu apartamento não tinha sequer plantas para não me dar o trabalho de cuidar de outra vida. Já era bastante penoso cuidar de mim mesmo. Minhas filhas não me visitavam e nem eu a elas. Ali estavam por obrigação, certamente. Contrato social. Contentava-me com a vida que vivia por empréstimo dos personagens dos livros que lia. A arte imita a vida é uma grande falácia. Livros são interessantes, ricos, complexos, eternos. Se eu destruísse meu exemplar de Dom Quixote, a obra permaneceria. Li isso em algum lugar, não me recordo onde. Por outro lado, se eu expirasse na calçada em frente à igrejinha da Lapa, não sobreviveria em memória alguma. Os vermes me roeriam e só. Para isso existimos, para dar utilidade aos vermes, que roem porque roem. A natureza não é fantástica? Diante de minha prole, tive uma epifania. Nasci para cumprir a cadeia alimentar.
Covarde, faltou-me coragem para expor meu raciocínio. Solicitei um cigarro, a única coisa que saiu dos meus lábios. Elas se entreolharam e nada responderam, algo constrangidas e impacientes. Esforcei-me por sorrir, como a dizer que estava tudo bem e feliz com a notícia de que voltaria, vivo, para casa. O horário da visita terminou e elas partiram, com a promessa irrealizada de que voltariam. Passei mais alguns pares de dias naquele hospital inóspito. Para mim, muito familiar, com a exceção de haver gente em demasia. Meu passatempo era ouvir os gemidos dos demais pacientes e me esforçar para criar narrativas que justificassem a presença deles ali. Imaginava o quão infelizes eles eram. Pessoas felizes não param em um hospital público, evidentemente.
Chegou a hora de receber do médico a alta. Precisei informar-lhe que ninguém me buscaria e que seguiria para casa como nasci e vivi: sozinho. Tomei um táxi e encontrei meu apartamento como o deixei. Resolvi telefonar para minhas filhas, mas ninguém atendeu. Talvez pela brevidade da vida e por ter flertado com a morte, decidi ligar para minha ex-mulher, havia muito a dizer: caixa postal. Melhor assim, pois eu não teria assunto e estava indisposto a ouvir a descompostura de sempre. Raramente nos falamos desde a separação, mas em todas as poucas vezes que tive esse desprazer, ouvia quieto toda sorte de impropérios. Lá se vão longos e distantes anos... Abri a geladeira, peguei uma cerveja, desimportando-me com cuidados médicos, e me sentei com dificuldade na sala, ainda com dor. Na mesinha ao lado, meu maço de cigarros. Uma bela tragada pode ser redentora. A janela deixava entrar meu silêncio companheiro e um pedacinho do céu azul, além de um diminuto trecho da Baía de Guanabara, aberto entre um vão entre dois edifícios. Com os pulmões renovados, abri ao léu um volume de A comédia humana e retomei minha vida ordinária.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Memórias de um segundo eterno


Eu morri.
Não padecia de mal algum. Tampouco foi morte violenta. Simplesmente morri. Findei. De uma hora para outra. Num segundo vivia, no outro, não mais. Ainda não houve sequer tempo para o primeiro verme vir roer as frias carnes do meu cadáver porque ainda estou quente.
E lúcido.
Como jamais em toda a eternidade estive.
Para onde quer que eu olhe, vejo apenas a imensidão, o infinito, a glória. Detenho sabedoria. Jamais a obtive em vida. Durante os anos em que perambulei pela miséria humana, busquei (re)conhecimento, aplauso, status. Sandice.  
Na vastidão de um segundo, sou e estou, pois o tempo agora é outro. Não há antes nem depois. O agora é. Pisco os olhos e nada muda. Esfrego-os incrédulo e o tempo é estático. Extático vivo a morte terrena. Recomeço. Na realidade, inicio a vida. Difícil falar em reinício porque não há cronologia. Mas eu, apenas eu compreendo. Nesse segundo infinito no qual me sinto preso e pleno, percebo que tudo o que sempre almejei é meu.
Miro e vejo meu corpo inerte e sinto compaixão por uma vida vazia, a inspirar oxigênio e espirar gás carbônico. Só. Demasiadamente desumano. Como todos o são. A Vida somente é vivida no segundo após a expiração. Eterna.
O que fazer, poderia me perguntar ainda encarnado num corpo sem sentido e limitador. Não é isso o que a humanidade está sempre a se perguntar? De onde viemos e para onde vamos? Simplesmente vivo e tenho clara a certeza de Ser. Não deliro. Delirei quando possuía um corpo. Sempre. Não leguei a nenhum herdeiro a condição miserável na qual me encontrava. Em um segundo, porém, sou pai de toda a humanidade. Possuo todas as respostas. Dúvidas não há. Muito menos razão.
A eternidade de um segundo distancia-me do tempo mundano. Afasto-me de toda a matéria e deixo aos homens a encenação de lastimarem o fim. Nada sabem e choram como atores canastrões. Peça mambembe, a vida. Fugaz. Vazia. Inútil. Distante.
A consciência que adquiri obriga-me a encerrar aqui. Aguardarei a visita dos tantos herdeiros que estão por chegar, afinal, a morte é implacável e a Vida, um segundo. A campa, para mim, autor-defunto, é outro berço.