Pesquisar neste blog

sábado, 19 de janeiro de 2013

Crônica de um pai de terceira viagem - o retorno

Cinco meses se passaram desde que minha mulher finalmente pariu minha mais nova princesinha. Ela, naturalmente, é linda e graças a Deus é super saudável, só mama no peito, dorme a noite toda e não dá nenhum trabalho. Uma bebê maravilhosa. Dito isto, você poderia supor que minha vida agora já está mais tranquila, que as oscilações hormonais de minha querida mulher me deram uma trégua e que eu gozo de uma vida mais serena e pacata. Não é bem isso, porém, o que ocorre. Se eu fosse narrar toda a sorte de impropérios ocorridos nestes cinco meses, esta crônica se estenderia e viraria um romance, então, para permanecer restrito às poucas linhas, vou contar o que me aconteceu ontem, o último episódio sofrido por mim. Também deixo claro, para ser justo, que meu sofrimento não é mais exclusivamente sofrido pela doida de minha mulher, mas que agora ela conta com a colaboração de minhas duas filhas mais velhas, que aparentemente estão possuídas.
Enquanto eu trabalhava no escritório:
- Mô, vou ao banco.
- Tá bom, ficarei aqui, tenho um monte de coisa pra fazer.
- A propósito, eu deixei as crianças brincarem com tinta na cozinha.
- Mas, meu amor, toda vez que elas começam a pintar elas sujam a casa toda e depois você fica reclamando no meu ouvido. Além do mais, eu não posso ficar lá com elas, tenho que trabalhar.
- Bruno, eu sei o que estou fazendo. Elas estão de férias, querem pintar e eu não vejo nenhum problema nisso. Depois eu limpo o que elas sujarem.
- Você tem certeza?
- É claro que eu tenho certeza! Que pergunta...
Uma hora depois, fui à cozinha buscar um cafezinho e, se não enfartei, desse mal não morro mais. As duas estavam cobertas de tinta da cabeça aos pés, além do chão, das paredes, do fogão, da geladeira e do micro-ondas terem sofrido uma nova coloração. Sem dizer palavra, voltei ao escritório, sentei, acendi um cigarro e respirei fundo, imaginando, aflito, o que me esperava. Quinze minutos depois, toca o telefone.
- Oi, tô voltando, o banco tava um inferno de cheio, tô puta. Tá tudo bem aí?
- Deve estar, não levantei da minha cadeira um único minuto, elas ou ainda estão pintando ou estão vendo televisão na sala. Maria Cecília continua dormindo no berço.
Desliguei o telefone com uma gota de suor escorrendo pela testa e previ o pior, mas me convenci de que estava tudo bem, afinal ela disse que sabia o que estava fazendo. Mais dez minutos, ela chega.
- Bruno, posso te fazer uma pergunta?
- Claro, meu amor...
- O que diabos aconteceu na cozinha???
- Não sei, fiquei aqui o tempo todo, tenho que entregar esse trabalho segunda-feira e estou atrasado. Por quê?
- Porque as suas filhas pintaram a minha cozinha inteira!!!!!!!!
- Sério? Como assim?
- Não se faça de desentendido, elas contaram que o senhor meu marido foi na cozinha tomar café e não falou nada.
- E o que você queria que eu dissesse?
- O que eu queria que você dissesse??!! Você não viu que elas pintaram tudo??
- Vi, mas eu alertei que isso sempre acontece e você me garantiu que sabia o que estava fazendo.
- Eu sou uma mulher lactante!! Não posso ser responsabilizada pelas coisas que eu digo, além de não poder me estressar senão a Maria Cecília vai beber todo o meu estresse. E acho que você não quer um bebê estressado dentro de casa, não é mesmo!!!
- É, já basta você...
- O quê?
- Nada.
- Eu não sou uma mulher estressada, sou a mãe de três crianças, sendo duas pestes e uma outra que não larga meu peito. Eu sou lactante, tenho que ter tranquilidade!!!
- Olha só, você disse que sabia o que estava fazendo, que elas estão de férias, e que qualquer coisa você limparia tudo. Boa sorte, tenho que trabalhar.
Nesse momento, ela me lançou um olhar despeitado, virou as costas, bateu a porta e me deixou sozinho no escritório. Trinta minutos depois, em virtude do estranho silêncio, resolvi dar as caras e ver o que se passava.
- Que porra é essa, você está maluca??
- Você não queria que eu, a pobre mãe de três crianças e ainda lactante, limpasse tudo sozinha? Você não estava ocupado demais com o seu importantíssimo trabalho? Então, estou limpando tudo, S-O-Z-I-N-H-A.
- Mas com as minhas roupas????!!!!
- Ah, nem percebi... Deve ser por causa do estresse que você disse que eu tinha.
- Você é louca, devia se internar. Pelo menos tomou o remédio?
- Não sou louca!! Sou lactante!! Mãe de três crianças!!
E um copo foi arremessado em minha direção, um lembrete de que precisava sair pra comprar cigarro e dar um tempo na rua até as coisas se acalmarem.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Beijo na língua

Resolvi neste início de ano colocar minhas leituras em dia e diminuir a pilha de livros à espera de tempo para serem lidos. Melhor escolha não haveria do que começar pelos três livros do escritor e poeta Wanderlino Teixeira Leite Netto que há muito engrossavam a já empoeirada pilha. O primeiro, Beijo de língua, poderia ser catalogado como mais um livro de contos. Com suas narrativas curtas, cada texto, por mais que formalmente endossasse a nomenclatura de se tratar de contos, em muito se aproxima de uma outra obra-prima sua, Retrato sem moldura, esta sim já devida e saboreosamente lida há tempos. A proximidade se dá porque os contos trabalham, poeticamente, com o invisível do cotidiano, com as emoções e sensações alheias, muitas vezes, a um olhar menos atento, mas que não escapam do olhar arguto do poeta. Wanderlino consegue, em Beijo de língua, fazer da prosa poesia e, assim, render louros à nossa língua, beijá-la, respeitá-la, amá-la, venerá-la e cultuá-la. Seu texto não é apenas muito bem escrito academicamente, mas, sobretudo, captura com maestria a essência humana, sem com isso recorrer à grandiosidade dos grandes feitos; ao contrário, é justamente no aparentemente insignificante que ele encontra e explicita o belo, que dá ao simples o status de arte. Sou capaz de desafiar qualquer leitor a procurar, neste livro, as imperfeições que exaustiva e obsessivamente eram alvo de Lupércio, personagem de "Ponto Final", um dos últimos contos do volume. Neste, "pouco lhe interessava a trama, muito menos o destino dos personagens. Na poesia, desdenhava das rimas e das metáforas. Punha sempre de lado a perspicácia do cronista e a engenhosidade de quem tece um conto. Das notícias dos jornais, quase nada absorvia. O interesse de Lupércio concentrava-se nos erros". Pobre Lupércio... Pode parecer paradoxal que um livro que beije com tanto amor, tesão e ao mesmo tempo respeito a língua apresente um protagonista ávido por encontrar nela apenas erros. Mas se por um lado a língua nos capacita a construir o mundo, por outro "foram elas, as palavras, as responsáveis pelos abismos, pelos tantos desencontros", como escrito em "Arlete, Arlete...", ponto alto do livro, segundo Lena Jesus Ponte, sua prefaciodora. Aqui, o romance do protagonista com Arlete poderia ser outro caso ela "não me tivesse dito o que disse, a esta hora eu estaria ao seu lado. Se as palavras inexistissem, tudo teria sido diferente entre mim e Arlete. Mas há o verbo, maldito seja. (...) Nesses anos todos, Arlete nunca me afagou com palavras, só seus olhos me fizeram carinho". Ao contrário de Arlete, as palavras são a matéria-prima para um delicioso beijo de língua, a despeito de qualquer filosofismo acerca da linguagem.
O segundo livro lido foi Asas na pedra, seleção de haicais. Das narrativas em prosa curtas o autor passa para os poemas japoneses de três versos, capazes de dizer muita coisa com poucas palavras. Recordo-me que, ainda na graduação em Letras, o professor Paulo Bezerra dizia entusiasmado que um livro inteiro poderia ser escrito a partir de um único poema.  O próprio título leva-nos à prolixa contradição de objetos da natureza duros e imóveis capazes de se tornarem alados e ganhar altura. E isso só é possível graças à poesia. A primeira parte do livro, intitulada "Pedra", não apresenta a dureza deste signo, mas sim preciosidades como "Em busca de si,/ foi aos álbuns de retratos./ Total desencontro." A imobilidade de um passado registrado em fotografias encontra a mobilidade de um presente que se quer conhecer, embora o caminho escolhido tenha sido improfícuo. O poeta conseguiu, nestes três versos, dizer muito mais do que se diria em livros de psicanálise ou mesmo de filosofia. A segunda parte do livro chama-se "Asas". Aqui, "O vento é coreógrafo./ As folhas, as bailarinas./ Meus olhos, plateia." Este haicai serviria muito bem como epígrafe de Beijo de língua, pois indicia o olhar atento do poeta para a simplicidade/ complexidade da vida. Um último haicai como aperitivo: "Navego em poemas./ Misto de barco e de luz,/ os versos são velas." E como velas são capazes de nos conduzir para o infinito.
Com estas velas cheguei ao mais recente livro de Wanderlino Teixeira Leite Netto, lançado em 2012, intitulado Café pingado. Liberto dos versos formais de um haicai, em seu último lançamento o poeta entrega-se aos versos livres, pois "A poesia ousa, urde,/ em tudo pousa, a tudo alude." Sendo assim, fica fácil compreender o poema "Profissão de fé": "Aos doze anos, entre os muitos planos,/ sonhava em ser garçom./ Acreditava ter o dom de bem servir o alimento./ Há desejos submersos habitando em mim./ Sustento ainda aquele intento./ Sendo assim, faço versos." Cabe a nós nos servirmos do banquete oferecido por Wanderlino em Café pingado, que dialoga, dentre outros, com Fernando Pessoa, em "Danos da verdade", já que "o poeta é mesmo um fingidor..." Curiosamente, após em mais de um momento dizer-se adepto dos versos livres, ansioso por um encontro com algum modernista e avesso a Bilac, como no conto "Garçom, mais um pouco de água quente!", de Beijo de língua, o poeta de Café pingado encerra o livro com o "Soneto da colheita e da transformação", que nos faz pensar em quão fingidor ele de fato o é. Ou seria apenas a demonstração cabal de sua versatilidade? Mais do que qualquer palavra minha, vale mais a pena lermos este soneto: "Cabe ao poeta antes de tudo estar atento./ A poesia se desvela a todo instante,/ mas é preciso assimilar cada momento/ para extrair o seu detalhe relevante.// Uma palavra, uma atitude, um sofrimento,/ um riso franco, uma carência, um de repente,/ o pôr do sol, a chuva fina, o mar e o vento,/ para o poeta são o adubo da semente.// Mas o poeta deve ter sempre consigo/ que a poesia tem um quê de universal. Nada de atá-la fortemente ao próprio umbigo.// Poesia é o pão e o verso em muito lembra o trigo./ Cabe ao poeta ir apanhá-lo no trigal/ e transformá-lo na alimento que bendigo."
Ora, que nos alimentemos da poesia de Wanderlino, seja em prosa ou em verso. Para quem se interessar em conhecer um pouco mais a sua obra, basta clicar aqui.