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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Carta aberta para Leonardo Davino

Querido Léo,


acabei de ler seu livro Domingou a pandemia e escrevo imediatamente após encerrá-lo. Recordo apenas de um ou outro texto ter lido no Facebook, mas como ando avesso a redes sociais, a maioria dos registros de seu diário pandêmico era ainda desconhecida. Durante a leitura, tive o desejo de escrever uma resenha mais acadêmica para publicar em algum periódico, mas, devido a nossa amizade e, sobretudo, ao meio pelo qual semanalmente você publicava, penso ser mais apropriado dizer no blog de forma menos formal o que seu livro despertou em mim.

Em primeiro lugar e antes de mais nada, seu receio confidenciado no dia do lançamento de que o livro poderia soar anacrônico é totalmente injustificável. Como disse naquele dia, você publicava ainda no calor da hora e com uma mesma temática, muito diferente do meu projeto de publicar os posts de meu blog. Seu livro é excelente e traça um panorama muito interessante da atualidade, afinal, ainda se morre de Covid-19 nos últimos dias do desgoverno do presidento.

Você sabe que pesquisei por um bom tempo escritas de si e cheguei a publicar algumas coisas a esse respeito. Mas essa não foi a única razão de me deliciar com seu mais recente livro. Do mesmo modo que os textos dos ex-exilados eram mais que uma escrita de si, mas de toda uma geração que vivenciou os horrores da ditadura militar, Domingou a pandemia também cumpre a função de um eu compartilhado com os outros, em um exercício de alteridade ímpar. Em vários momentos, inclusive, percebi certa monotonia, mas isso não é em absoluto uma crítica, justo o contrário (recorde-se que Mário de Andrade rotulou a literatura de Machado de monótona). A monotonia à qual me refiro diz respeito ao isolamento social, que nos fez a todos permanecer em casa nutrindo os mesmos hábitos diários em busca da sobrevivência. E resistimos, apesar do presidento.

Durante o primeiro ano da pandemia, reli Decamerão de Boccaccio e A peste de Camus, obras maravilhosas de dois momentos parecidos com o que (ainda) vivemos. Seu livro deu uma outra perspectiva literária para um momento tão difícil. E, posso dizer sem medo, que serviu, enquanto era escrito seriadamente no Facebook, como formação de irmandades e redes de solidariedade que você tanto preza e prezou. Da mesma maneira que havia quem se despusesse a cantar e a tocar instrumentos nas janelas, como alguns vizinhos meus e tantos outros por aí; que houve uma proliferação de lives das mais diversas; que se buscou alento nas artes em geral para suportar a dura realidade; seus posts cumpriram igualmente esse papel para quem os acompanhava domingo a domingo. E não se preocupe porque a reunião deles em livro é de uma forma tão coesa e bonita que em nada prejudica a publicação pela editora com a qual você manifestou desejo de publicar. A propósito, ótima iniciativa do editor responsável.

A leitura imediatamente anterior que eu havia feito foi A civilização do espetáculo, do Mario Vargas Llosa. Ele apresenta uma verve bastante crítica e ácida à espetacularização que vivemos hoje, à cultura de massas, de certa forma num tom bastante adorniano no clássico ensaio A indústria cultural. Confesso que partilho do pessimismo deles, talvez por isso, dentre outras questões, me ausente das redes sociais, embora reconheça que há vida inteligente em qualquer lugar, mas o que mais me incomoda é a patrulha ideológica que reina pelos feicibuques da vida. Como você escreveu uma escrita de si e adoto o formato de carta, falo de mim também e aproveito para reativar o blog, há muito desatualizado. 

O contraditório disso é que, por mais que me sinta propenso a concordar com Adorno e Vargas Llosa, é impossível hoje eu não me integrar também à cultura de massas. Eu a vivo diariamente e dela faço meu lazer. Como diria Machado, as contradições são desse mundo. E então não posso deixar de lembrar de Umberto Eco e de seu Apocalípticos e integrados. Não de trata de uma coisa ou outra, mas de um e. E não à toa você cita o italiano no seu livro. Pois é, sou apocalíptico e integrado. Talvez se Llosa lesse Domingou a pandemia, certamente faria críticas menos agudas aos escritos em redes sociais. Você demonstra uma articulação excelente de vários discursos, desde as canções, seu objeto de pesquisa, passando pela poesia, literatura, filosofia, artes plásticas, crítica. E de forma tão extraordinária que me lembrou seu projeto ainda inédito dos mashups. Já lhe disse que você deveria retomá-los e insisto. 

Léo, a pandemia irá acabar definitivamente, assim como o presidento está com suas horas contadas. Mas seu livro perdurará, não só como uma escrita de um eu que atravessou o confinamento social, mas igualmente como registro de uma época, uma crônica social que abarca todas as mazelas de um período a ser lembrado, com várias referências sociopolíticas importantes demais para serem esquecidas. Obrigado pela rede de apoio, antes, durante e para depois da pandemia.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

(Des)canonizar

Há alguns pouco anos, conversava com um amigo sobre minha pesquisa (acho que estava no final do doutorado, salvo engano) e mencionei o cânone. Como ele não é da área de literatura e é católico praticante, recordo-me perfeitamente da sua reação em função justamente do caráter inusitado: espantou-se com o emprego da palavra, pois, além de desconhecer que é um termo usual nos estudos literários, atribuía à palavra o atributo sacro. Pois bem, a literatura é feita por homens e para homens, não por divindade alguma. 

Relembro esse episódio anedótico porque já faz algum tempo que tenho me interessado em pesquisar e problematizar o cânone literário. Em 2021 publiquei dois ensaios sobre os romances Exaltação!, de Albertina Bertha, e O Coronel Sangrado, de Inglês de Sousa. Ambos são boas obras praticamente de todo olvidadas pela academia. Voltando mais um pouco no tempo, em 2013 iniciei o doutorado com a intenção de pesquisar blogs de diletantes amadores de modo a pesquisar os processos de autoficcionalização de pessoas comuns, ainda distantes do circuito literário. Ironicamente, abandonei o projeto inicial e defendi a tese, publicada também em 2021, sobre Machado de Assis, talvez nosso nome mais canônico, mas com a intenção de, dentre outras questões, evidenciar a importância dos quatro primeiros romances do bruxo considerados "menores" se comparados à excelência da produção romanesca a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. O cânone, enfim, há tempos tem sido motivo de minha inquietação como pesquisador.

Naturalmente, a partir dos estudos culturais, muito tem se discutido sobre o tema de forma bastante interessante e instigante. Obras de autores periféricos, negros, homossexuais, de autoria feminina mais e mais vêm à luz em estudos interessantíssimos e que se inquietam em consagrar ao cânone títulos comumente de homens brancos, afinal, o cânone é formado por homens e para homens. Além disso, talvez seja válida a afirmativa de que as histórias das literaturas nacionais sejam também grandes formadoras daquilo que se convencionou denominar como obras merecedoras de serem lidas, em um processo de retroalimentação: lemos porque está nos manuais de historiografia literária e se lá estão, temos que ler. 

Falando em historiografia, é comum a assertiva de que é difícil historiar o presente, muito embora isso seja cada vez mais relativizado. Se por um lado pensa-se que é necessários um distanciamento temporal para se olhar com atenção para o presente, por outro são muitos os escritores contemporâneos de certa forma canônicos, haja vista o número crescente de autores ainda vivos e produzindo estudados e pesquisados em teses, dissertações, ensaios. E a despeito de qualquer coisa, há cada vez mais publicações de autores e autoras de qualidade no século XXI. Por que apenas alguns recebem atenção crítica e alvíssaras de pesquisadores? Muitas são as hipóteses para essa seleção sem entrar no mérito da qualidade estética e literária dos mesmos. Tiragens por grandes editoras é apenas um dos vários exemplos que poderiam ser elencados aqui. E a facilidade de publicação por editoras de menor porte, normalmente com edições por demanda, pode servir como uma forma de deslegitimização das publicações de jovens autores ainda distantes de leitura atenta da academia.

Para quem tem interesse pelo tema, recomendo a leitura de Disciplina, Cânone: continuidade e rupturas, livro organizado por Jovita Norona, Maria Clara C. de Oliveira, Maria Luiza S. Pereira e Rogério Ferreira, resultado da sexta edição do simpósio internacional que o Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da UFJF, realizou em 2012. Para mim, certamente, foi de grande valia a leitura e já tenho mais alinhavada a construção argumentativa de alguns textos que irei escrever em breve. Além de uma entrevista com Marcelino Freire e Sérgio Vaz, possui cinco partes, a saber: os sistemas literários nacionais, o cânone literário e a crítica hoje; gênero e reconfigurações do cânone: escritas do eu; literaturas: (in)disciplinas; o sistema literário e a tradução; crítica literária, leitura e cultura. São vários os pesquisadores que assinam os capítulos e, como é comum em coletâneas como essa, é natural que determinado assunto interesse mais ou menos ao leitor, mas de todos os textos tira-se proveito.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Como se tudo estivesse normal...

Estamos há dois anos em pandemia, com o devido sucesso do presidente genocida, e agora, apesar de muitos já vacinados, vivemos nova onda graças às variantes do vírus. Minhas filhas estão de férias das aulas remotas e como todas as pessoas responsáveis, pouco saem de casa. Aqui somos todos sobreviventes, teimamos em continuar a viver e não nos deixaremos vencer pelo tirano fascista. Ontem minha caçula, Maria Cecília, foi finalmente vacinada. Ela, de todas as três filhas, é a que mais tem sofrido com o distanciamento. Aulas remotas, "prisão" domiciliar, furta-se de parques, praias, contato com amiguinhos e amiguinhas. Nenhum responsável permite sua visita, assim como Elisa e eu também não recebemos seus amiguinhos. Dos 7 aos 9 tem vivido acompanhada de televisão e youtoubers. Uma pena. Ao menos está viva, não virou estatística, como as centenas de milhares de mortos do projeto político em curso no Brasil.
Hoje, enfim, como se a vida fosse nesse início de 2022 normal, fomos Maria Eugênia, Maria Antônia, Maria Cecília e eu ao cinema. No bolso, o passaporte: carteiras de identidade e respectivos comprovantes de vacinação. A vestimenta a de sempre: máscara. Quando perguntei se Maria Cecília queria assistir a Sing 2, seu sorriso de felicidade foi capaz de dizer tudo aquilo que o verbo não dá conta de exprimir. Como criança me deixei acompanhar por minhas filhas, maior dádiva que um homem pode ter. Elas são maravilhosas, cada uma a seu jeito. Único. 
Confesso que não tinha muita expectativa quanto ao filme, apesar de adorar animações. Até a metade do filme, ainda não sabia se o longa dirigido por Garth Jennings me agradava ou não, apesar de me arrancar gostosas risadas. Mas o maior termômetro quando o assunto é uma obra destinada ao público infantil são as crianças, e elas se divertiam a valer. Eu, casmurro, só poderia me render ao fato do filme ser, portanto, bom. Do meio em diante, porém, além das gargalhadas, me peguei chorando emocionado com a animação. Pode ser porque o filme é de fato bom, pode ser porque estava finalmente no cinema com minhas Marias, pode ser porque estamos vivos e com saúde. O fato é que deixei de ser adulto por quase duas horas e virei criança, pois toda vez que o adulto balança a criança me dá a mão. Maria Eugênia adorou, Maria Antônia chorava copiosamente e Maria Cecília, encantada. Eu, o homem mais feliz do mundo. Agora, estão as três revendo o primeiro filme da série, ao qual não assisti. Para finalizar uma tarde encantadora, uma pizza.

sábado, 15 de janeiro de 2022

A propósito de poesia

No início de minha trajetória acadêmica, ainda graduando no curso de Letras da UFF, o professor Paulo Bezerra certa vez disse que é possível escrever um livro inteiro a respeito de um único poema. Noamtei, desde então, que a riqueza e a complexidade presentes na poesia de fato suscitam discussões várias capazes de preencher toda uma argumentação crítica em livro. Apesar de leitor de poesia e de ter publicado três livros de poemas (e ter mais dois prontos, ainda inéditos), jamais me dediquei a pesquisar poetas e suas respectivas poesias. Recordo-me que, na graduação, em curso oferecido por Célia Pedrosa, escrevi uma monografia sobre Manuel Bandeira. E só, se a memória não me trai. Desde sempre me concentrei na prosa, desde a graduação e em todo o meu percurso de pós-graduação. Nem mesmo os apelos de Elisa de Castro a que eu me dispusesse a trabalhar criticamente os versos surtiram efeito.

Talvez a razão para essa negação se deva em função de minha própria produção de poesia. Acredito que a poesia, ao menos para mim, é objeto a ser lido, escrito e internalizado, para dessa forma se externar como visão de mundo e de vivência. Teorizar acerca dela é demasiado difícil justamente por causa da sua infinitude. Ao contrário da prosa, ponto final não há na poesia.

É muito comum hoje afirmações tidas como certeiras sobre o fato de que ninguém lê poesia (se em comparação com os leitores da prosa), que publicar poemas é cada vez mais difícil etc. Adorno chegou mesmo a se questionar se ainda é possível escrever poesia depois de Auschwitz, como se após tamanha barbárie não restasse mais espaço para ela. 

A respeito das problematizações acerca da poesia, e aqui me refiro à contemporânea, parece unanimidade, entre críticos, afirmar que após o fim da ditadura militar vivemos um momento pós-utópico, termo cunhado por Haroldo de Campos e retomado por Flávio Carneiro. De modo bastante sintético, a poesia e a literatura a partir de então não teriam mais um denominador comum, um projeto estético definido, como até então havia. São várias as estéticas que se harmonizam e convivem pacificamente, dificultando a designação de um mesmo e comum ismo que aglutinasse todas sob o mesmo diapasão. 

Marcos Siscar, em Poesia e crise, propõe-se a refletir sobre essas "verdades" professadas à exaustão sobre o fazer poético. De forma bastante instigante, ele escreve sobre a crise da poesia em vários artigos anteriormente publicados autonomamente e enfim reunidos em livro. A leitura de Siscar descortina e desfaz certos chavões considerados inabaláveis pela crítica especializada e oferece uma rica teorização sobre o que seria a crise da poesia. Segundo o autor, a partir de Baudelaire a literatura "já não expressa seu amor pela 'verdade' (...) mas pela 'mentira', pela 'maquiagem'". Seria essa uma razão contrária à poesia? Ou não seria justamente algo a seu favor? Pensar a crise da poesia é um exercício retórico improfícuo, pois "'a poesia' não é exatamente aquilo que está em crise, mas é o nome da própria crise, daquilo que se impõe e explicita a experiência do impasse e dá forma ao escrito, a qualquer forma de escrito, inclusive o da crítica literária". A crise da poesia, surgida desde Mallarmé segundo Siscar, é fundamental para tudo o que se escreve portanto.

Não é factual, pois, que a poesia atual seja de menor importância estética, muito ao contrário. Qual a finalidade da poesia? Há finalidade? Que os críticos (em crise) se apressem em responder.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Crítica pós-colonial: panorama de leituras contemporâneas

A questão da nacionalidade permeia os estudos literários brasileiros. Todo manual de história da literatura brasileira inicia com a Carta de Pero Vaz de Caminha e prossegue com os sermões jesuítas, o Barroco e assim por diante, mesmo que ainda não fôssemos um Estado-nação independente. Apesar de o Arcadismo apresentar as epopeias de Santa Rita Durão e Basílio da Gama, que tematizam o indígena, ainda é pouco para se falar em literatura nacional. Lembremos que Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira, não considera o arcadismo como literatura genuinamente brasileira. 
Com os românticos indianistas, escrevendo pós independência, procura-se uma literatura desvencilhada da de Portugal e os índios figuram como os genuínos brasileiros em sua gênese. É demasiada conhecida a controvérsia dessa designação, portanto não me ocuparei em problematizá-la. 
Posteriormente, foram os modernistas de primeira hora, capitaneados por Mário de Andrade, que se autoproclamaram os fundadores de uma consciência nacional, criticando os românticos pelo academicismo que imperava em nossas letras. Nem mesmo "Instinto de Nacionalidade", antológico ensaio de Machado de Assis, defendendo o sentimento íntimo como premissa para uma literatura nacional, foi capaz de apaziguar a iconoclastia de Mário e Oswald de Andrade. A língua portuguesa necessitava dar lugar ao idioma brasileiro, conjugando as três raças responsáveis por nossa miscigenação, inclusive idiomaticamente, como necessárias para uma literatura de fato brasileira. Macunaíma, nesse sentido, é exemplar da tentativa marioandradina dessa constituição nacional. Igualmente são várias as problematizações a serem feitas nesse sentido e aqui não pretendo encetar essa discussão.
Seja no romantismo, seja no modernismo, por mais válidas que possam ter sido a inclusão de índios, no primeiro caso, e de negros, índios e brancos, no segundo, a pena era de homens brancos, europeizados (a descendência indígena de Gonçalves Dias é de pouca relevância no sentido de se pensar seus poemas como integrantes de uma poesia indígena; Oswald de Andrade, como é sabido, descobriu o Brasil em visita ao velho continente e Mário "copiou" seu romance-rapsódia de um germânico).
Que Brasil somos afinal? Para se pensar essa questão com mais profundidade, é necessário, finalmente, ler/ouvir a história de negros e índios sob a luz dos estudos pós-coloniais. É cada vez mais crescente textos literários escritos por índios e negros, assim como autores periféricos que conferem maior legitimidade ao que se convencionou chamar de lugar de fala. Crítica pós-colonial: panorama de leituras contemporâneas, organizado por Júlia Almeida, Adelia Miglievich-Ribeiro e Heloisa Toller Gomes, reúne excelentes ensaios sobre essa questão, escritos por pesquisadores de campos epistemológicos diversos, como sociologia, antropologia, história, literatura, ciências econômicas, ciências sociais.
O livro é dividido em quatro partes, de maneira a tornar o tema o mais diversificado possível. Assim, ao leitor pouco familiarizado com os estudos pós-coloniais, há uma rica e plural informação, de maneira a torná-lo mais íntimo sobre o assunto, muito em voga na contemporaneidade. O Brasil que de fato somos distancia-se daquela visão eurocêntrica e problematiza a forma como fomos catequisados, para utilizar expressão de Oswald, e oferece possibilidades críticas contra a colonização. 
Pensar o índio pré-colonização, como pretendeu Alencar em Ubirajara, por exemplo, talvez pouca serventia tenha, pois no momento em que os portugueses aqui aportaram houve uma inter-relação e aculturação impossíveis de serem negadas. Obviamente isso ocorre também com os negros. Por mais importantes que tenham sido, ainda no século XIX, os escritores antiescravagistas, como Castro Alves, para citar apenas um, ninguém melhor do que um negro para pensar e refletir sobre a negritude. Mas não basta ser negro. É preciso escrever sob essa ótica. Machado de Assis, por exemplo, dificilmente poderia ser incluído no rol de uma literatura escrita por negros, pois ele sofreu, mesmo em sua época, processo de embranquecimento além de pouco escrever sob essa condição. Naturalmente, o mesmo ocorre com toda a América. Pensar literatura, hoje, sem levar em conta o intercâmbio entre colonizadores e colonizados é primordial para se ter uma compreensão mais abrangente de como se fazem ouvir vozes sempre silenciadas. E, inclusive, repensar a estética cuja orientação é europeia.

domingo, 2 de janeiro de 2022

História da Música Brasileira em 100 Fotografias

Com curadoria de Hugo Sukman e Rodrigo Alzuguir, além de um time de redatores e fotógrafos que registraram momentos ímpares da música brasileira, História da música brasileira em 100 fotografias é uma leitura rica, importante, instrutiva e agradável do mapeamento da produção musical nacional. Os textos curtos, ao lado de fotos marcantes (infelizmente nem todas possuem o devido crédito), não pecam pela brevidade. Ao contrário, em uma página a concisão textual não peca pela desinformação. Um outro título bastante aceitável seria Dicionário ilustrado da música brasileira

Dividido em 5 partes - 1865-1930 (das matrizes ao samba, Segundo Reinado e Primeira República); 1930-1945 (entre modernização e a tradição, o erudito e o popular); 1945-1964 (expansão dos gêneros e dos gênios musicais); 1964-1985 (seguindo a canção: a consolidação da MPB); 1985-2021 (o país de todos os ritmos) - há a tentativa de ser o mais abrangente possível, buscando não negligenciar nenhum momento importante da nossa historiografia musical. Se por um lado todos os momentos estão presentes - do samba ao erudito, do pagode ao instrumental, da Bossa Nova ao funk, do sertanejo ao rock etc. -, por outro é impossível registrar todos os nomes importantes da música brasileira, um problema de qualquer livro dessa natureza. Certamente haverá algum leitor-fã a reclamar da ausência de um possível ídolo. Vale registrar, para ficar no âmbito da canção, que nem mesmo a excelente Paratodos, de Chico Buarque, é capaz de listar todos os nomes caros ao autor. Apesar disso, a leitura é rica e bem documentada, seja textualmente, seja fotograficamente. 

Se pode parecer arbitrária a decisão de iniciar pelo ano de 1865, é bastante atual, pois há registro até 2021, sem deixar de mencionar, portanto, os anos da pandemia de Covid-19 e como a música reagiu a esse infeliz momento da história.

Aos amantes da música e da leitura, fica a recomendação desse importante e atual livro, rico documento historiográfico e iconográfico da música brasileira.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Poucas e felizes testemunhas

27 de dezembro de 2021. 21h. Copacabana. Beco das Garrafas. No super povoado bairro de uma grande cidade, havia um grupo de felizes testemunhas de um show excelente e intimista, para poucos. Eduardo Braga reuniu um time de músicos de primeira linha para comemorar seu aniversário em grande estilo. 

Antes do show iniciar, dei dois dos meus mais recentes livros de presente a Eduardo, mas o grande presente quem recebeu fomos eu e os poucos felizardos que testemunharam a volta aos poucos do talentosíssimo Eduardo. 

Grande fã, entusiasta e conhecedor do Clube da Esquina, abriu os trabalhos com uma sessão de seu projeto Jazzin'Minas, com arranjos jazzísticos excepcionais para clássicos da turma de Bituca e companhia. Recordo que assisti a esse show anos atrás e saí maravilhado com a capacidade musical de releituras excelentes do já excelente Clube. O grande diferencial ao apresentar as músicas é justamente oferecer algo para além da excelência dos músicos mineiros, e isso Eduardo faz, fez e continuará fazendo com maestria. 

Eduardo não apenas recuperou seu projeto sobre o Clube da Esquina, mas festejou também tocando músicas de um novo projeto - infelizmente interrompido pela pandemia mas que em fevereiro retomará - com clássicos de grandes artistas dos anos 60, desde Beatles, passando por Dylan e outros. A MPB também se fez presente na releitura de ontem. 

Olhando para o palco, fiquei comovido não apenas pelo som, mas também pelo olhar de felicidade do aniversariante, ocupando um espaço que é seu por direito - o palco. 

Sinto-me grato por ter sido uma das poucas testemunhas do show de um artista singular porque plural. Aguardemos a chegada de fevereiro para mais música de qualidade. 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura, de Eurídice Figueiredo

Fui aluno de Eurídice Figueiredo no primeiro período da Faculdade de Letras da UFF em 1994. Então a disciplina era Francês Instrumental e não mais mantive contato com ela até o lançamento do livro O futuro pelo retrovisor, organizado por Stefania Chiarelli, Gionanna Dealtry e Paloma Vidal em 2013. Na ocasião, quando vi Eurídice entrando na livraria, me aproximei e iniciamos um bom papo. Eu estava no primeiro ano do doutorado e meu projeto era sobre autoficção. Ao comentar isso com ela, me disse que em poucos dias lançaria seu livro Mulheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Compareci ao lançamento e desde então sou leitor assíduo de Eurídice Figueiredo. Pouco depois estávamos em um congresso na UFBA, quando conheci os queridos amigos Luciano, Rodrigo, Anna e Laura. Formou-se então o melhor grupo de trabalho possível, acrescido posteriormente pela Inês. Ainda hoje nos reunimos regularmente. Costumo dizer que as amizades que construí ao longo do doutorado foram a minha maior e melhor herança que os anos de doutoramento me trouxeram.

A tese sofreu um desvio e não escrevi dobre autoficção, mas sim sobre Machado de Assis, cujo resultado é meu mais recente livro Bruxaria do início ao fim: o projeto filosófico-(meta)ficcional de Machado de Assis, recém-editado pele EdUERJ. É curiosa a forma como se deu a mudança do projeto inicial da literatura contemporânea para a obra do bruxo. Recordo-me que Ana Cláudia Viegas, minha orientadora do mestrado, cujo resultado foi meu segundo livro, Eu: itinerário para a autoficção (7 Letras), certa vez afirmou que eu não me encaixava na literatura contemporânea, pois minha predileção sempre foi pelos clássicos. E ainda é. Eu também tinha certa implicância com os Estudos Culturais, o que começou a desaparecer após a leitura dos livros de Eurídice, muito provavelmente porque passei a melhor compreender tanto a literatura contemporânea quanto os Estudos Culturais.

Acabei de ler Representações da etnicidade e estou maravilhado. A maneira como são construídas as análises culturais e literárias das questões pós-coloniais e das obras é extremamente rica e bem embasada, uma verdadeira aula de literatura. Aliás, essa é a tônica das publicações da Eurídice, pesquisadora arguta cuja perspicácia e erudição são exemplares. Ainda tenho maior apreço pela literatura clássica do que pela contemporânea, mas cada vez mais, influenciado pelas leituras da ex-professora e atual amiga, sinto-me instigado a ler com mais assiduidade a produção atual. Não é meu propósito aqui escrever uma resenha crítica sobre o livro, mas recomendo fortemente sua leitura. Questões como Estudos Culturais, Etnicidade, Memória dentre várias outras são muito bem trabalhadas. No meu caso, é como se houvesse um antes e um depois das leituras de seus livros.

Também registro que tive a honra e o prazer de revisar sua próxima publicação, A nebulosa do (auto)biográfico: vidas vividas, vidas escritas, a sair em breve pela Zouk.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Conceitos de literatura e cultura, de Eurídice Figueiredo

Recordo que na graduação em Letras na UFF meu amigo Júlio França certa vez disse que conhecimento não se nega a ninguém, há a necessidade de compartilhá-lo. Achei bastante madura a posição de Júlio, mas não lembro a propósito de que surgiu esse assunto à época. O fato é que ambos iniciávamos nossas vidas no caminho da literatura e lá se vão mais de 25 anos. É curiosa a forma como a memória surge. Eurídice Figueiredo, de quem fui aluno na UFF, mas lamento muito não ter sido em literatura, disse algo semelhante por mensagem quando da publicação da segunda edição de Conceitos de literatura e cultura, organizado por ela, que finalmente saiu em versão digital após anos do livro físico esgotado. Segundo a pesquisadora, todo livro deveria ter uma versão digital com acesso gratuito. E graças a isso o li com prazer. (Abro um parêntese para dizer que o mesmo se deu com Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura e cultura, lançado originalmente pela 7 Letras em 2010, e que será lido em breve).

É interessante observar que há quem procure dissociar literatura e cultura, isto é, se considerarmos a obra literária como uma forma de arte, ela não é necessariamente uma obra cultural, apesar de inserida na cultura. A teoria estética de Adorno caminha nessa direção, de situar a arte como uma forma de conhecimento único e intransponível, sem quaisquer vínculos com a cultura na qual ela esteja inserida. Eu mesmo, em recente livro publicado, defendi essa premissa, embora reconheça não ser a única, apenas procurei empregá-la na análise de Machado de Assis. De fato, é bastante difícil compreender uma obra literária completamente desvinculada, por exemplo, de referenciais historiográficos, culturais e outros. Arnold Hauser, em seu excelente História social da arte e da literatura, demonstra erudição e fôlego impressionantes para a composição social a que se propôs, em diálogo profícuo entre arte e suas dimensões sociais que a embasam. Se é possível fazer um senão ao livro de Hauser deve-se ao eurocentrismo, pois todo o universo abordado refere-se à arte europeia.

Por mais que a teoria estética de Adorno seja fascinante, havemos de concordar que é bastante delicado trabalhar a literatura do novo mundo sem considerar a cultura, haja vista vários aspectos serem possíveis de ser teorizados devido à colonização e à miscigenação dela decorrentes. Assim, é muito instigante a leitura do livro organizado por Eurídice Figueiredo, que assina também três artigos.

O livro de Eurídice é exemplar nesse sentido. Os artigos, assinados por nomes importantes dos estudos literários, tratam de questões inerentes às literaturas do novo mundo e suas especificidades ausentes naquelas estudadas por Hauser, por exemplo. A produção literária hispano-americana, a francófona e anglófona, e a brasileira são trabalhadas sob um viés que nos permite compreendê-las a contento sob a luz das perspectivas culturais que ao mesmo tempo as singularizam e as pluralizam. Escrever uma resenha apropriada requer um texto mais longo capaz de desenvolver as ideias centrais dos vinte capítulos distribuídos em quase 500 páginas, que vão desde americanidade e americanização, antropofagia, crioulização e crioulidade, identidade nacional e identidade cultural, indigenismo, pós-colonialismo e pós-colonialidade etc. etc. Todos temas possíveis em função do amálgama americano. 

Se fico a dever a resenha, deixo enfaticamente a sugestão de leitura. Quem quiser fazer o download gratuito basta clicar em http://www.eduff.uff.br/index.php/catalogo/livros/87-conceitos-de-literatura-e-cultura 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Em Terceira Pessoa e outros poemas, de Giovani Miguez

De certa forma, é lugar comum dizer que vivemos em um mundo individualista e, contraditoriamente, voyeurista. Cada vez mais nos interessamos pela vida alheia, seja em reality shows, autobiografias e autoficções, e sobretudo em redes sociais, do mesmo modo que exibimos nossa intimidade de forma massiva. Em um primeiro momento, é factível afirmar que esse interesse pela alteridade é apenas superficial, na medida que pouco se conhece, porque pouco se expõe, o eu mais recôndito. Foi justamente em uma rede social, o Instagram, que conheci Giovani Miguez, em live com meu querido amigo e poeta Cesar Garcia Lima. Meu interesse em poesia é público e então entrei em contato com Giovani, lhe enviei dois livros meus e recebi Em terceira pessoa

Na orelha, descobrimos que o livro foi escrito durante a pandemia ainda em 2020. Foi muito comum ouvirmos que durante o isolamento social a arte era a saída, seja como entretenimento, seja como companhia, seja ainda como forma de reflexão crítica. E em um momento que se isolar era (e ainda é, infelizmente) vital, não deixa de ser bem-vinda essa publicação, a começar pelo próprio título: sem contato social, convivendo conosco e apenas conosco, não é a primeira pessoa que surge no título, mas o ele, o outro, o externo, porque "É preciso / acertar no pronome / um conjugar preciso! / para que não / haja fome, / guerra, / autocracia", escreve o poeta no poema homônimo e que abre o livro. Somente assim, prossegue, pode haver um nós, "o pronome certo!".

Talvez seja em busca desse pronome certo que os primeiros poemas foram escritos, no sentido de que são versos de denúncia, como se o confinamento tornasse mais perceptível a necessidade do olhar para a alteridade. Claro que esse tipo de poesia corre o "risco" de se tornar panfletária, mas o poeta dá um passo além. E se panfletária fosse, compreendido o momento da escritura, com inúmeras pessoas morrendo sob o desgoverno genocida do Brasil, não seria nenhum despropósito. O poema "Cura", no entanto, rebate quaisquer possíveis críticas nessa direção, pois é de um lirismo certeiro.

Particularmente, tenho me interessado cada vez mais em poemas curtos. Meus dois mais recentes livros de poesia são prova disso e possuo dois outros prontos, ainda inéditos, com poucos versos. Acredito ser mais laborioso, interessante e poético dizer muito com poucas palavras. E isso observa-se também no livro de Giovani Miguez. Nem todos os poemas são curtos, mas vale registrar que muitos o são, o que, para mim, interessa bastante. "Verso Vazio" é exemplar nesse sentido.

A própria composição do livro é interessante ao observarmos os poemas "Bovid" e "Grato" justapostos. A revolta que o primeiro suscita é imediatamente após amenizada pela gratidão de não ser obediente às "ordens do fascista" e, sobretudo, pela valorização das pequenas coisas. 

É digna de nota a metapoesia presente Em terceira pessoa, algo que muito me interessa e que eu procuro praticar na minha própria poesia. "Imortalidade" é excelente exemplo, inclusive sugerindo uma boa compreensão teórica sobre o ofício poético e literário. Quincas Borba já ensinara a Rubião que se seu exemplar de Dom Quixote fosse destruído, a obra permaneceria eterna. Fica o convite para a leitura desse poema e de todo o livro.

Fechou-se o círculo. O confinamento fez com que Giovani Miguez escrevesse Em terceira pessoa. Em isolamento assisti à live dele com Cesar Garcia Lima. Em distanciamento me aproximei da primeira pessoa do poeta.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Comentário do poeta Gabriel do Monte Leão sobre Do amor e das suas (des)formas

Achei lúdico, leve, de uma poesia que chega a se diluir em sentimentos. Claro, conciso. Porém, por haver um forte teor afetivo no seu livro, por mais que seja diáfano, requer várias leituras. Parece uma única poesia que tenta sintetizar o que não pode ser sintetizado: o amor... Essa foi minha primeira leitura. Tem algo simbolista nele. Pelo menos, me parece. Gostei bastante.

Parabéns
.

terça-feira, 31 de agosto de 2021

terça-feira, 8 de junho de 2021

Comentário do poeta Wanderlino Teixeira Leite Netto sobre Do Amor e da suas (des)formas

Bruno, acabei de ler seu livro. É uma poesia que mais inquieta do que sublima, mas inquietar é também uma das funções da poesia. Eu achei muito interessante essa perfeita sintonia dos desenhos de sua mãe, aliás, belíssimos desenhos, com os poemas, ainda mais, como você explica na introdução, que eles não foram feitos para as ilustrações, ou melhor, as ilustrações não foram feitas para os poemas. Eles se encaixaram sem uma intenção de que isso acontecesse. Ficou muito bom, o livro está bonito, a capa muito boa.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Comentário do poeta Igor Fagundes sobre Do Amor e das suas (des)formas

 No fim de tarde, faço uma pausa no trabalho e recebo a seguinte mensagem do querido Igor Fagundes:

Bruno, desculpe a demora para dar um retorno sobre o livro. Ando fazendo muitas coisas e queria ler com carinho, atenção, como você e o livro merecem.
Em primeiro lugar, agradeço a dedicatória.
O livro é de uma delicadeza sem fim. Da arte de sua mãe ao seu verbo comedido, conciso, breve.
Tive enorme dificuldade com poemas curtos ou super curtos. Não é o meu forte e admiro quem se arrisca nessa forma e sai bem sucedido. A página fica cheio do branco, do espaço vazio que na verdade é um espaço de ar atravessando a palavra.
A sensação é de que a arte visual já nasceu para compor com sua arte verbal. É uma composição de amor, sem deixar de ser poética. E mais: nenhuma das artes é legenda da outra. Elas também sobrevivem sozinhas, o que é importante, para evitar a descrição, que não é seu objetivo, nem o da poesia, penso.
Marquei os poemas que mais me atravessaram:
"cena III", "cena V", "cena VI", "cena VII", "cena VIII", "cena XVIII", "cena XIX".
"cena XXI", "cena XXIII", "cena XXVIII", "cena XXIX", "cena XXX". Penso que estes estão muito bem realizados também.
Parabéns! Quem bom que ganhei um irmão nas Letras.

Igor Fagundes

sábado, 15 de maio de 2021

Comentário da poeta Lena Jesus Ponte sobre Do Amor e das suas (des)formas

Parabéns pelo livro. Muito bem cuidado. Tema eterno tratado de maneira inovadora. Grande homenagem a sua mãe. Belos desenhos! Destaco alguns poemas que mais me tocaram: IV, VII, XIV, XVIII, XX, XXVI, XXX, epílogo.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Meu mais recente livro, Do amor e das suas (des)formas, encontra-se à venda no link abaixo e em dias nas livrarias também.

https://7letras.com.br/livro/do-amor-e-das-suas-desformas/?fbclid=IwAR0N4chVdfHR3ZiqAWYPsVW5ZLQELKl_NZLE7neKoXHZzsx5tanCvHKRUjA 




terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Carta aberta para Igor Fagundes

 

Querido Igor,

meu próximo livro de poesia, Do amor e das suas (des)formas, sairá pela 7 Letras em 2021. É um livro curto, já no prelo, com 34 poemas, escritos em 2016, e em 2019 foram acrescentados 34 desenhos de autoria de minha mãe, Oci. Tal acréscimo serviu, dentre outras coisas, para me aproximar dela, que já está em outro plano, e porque esse diálogo entre poesia e desenho (uma coisa só - macumbança) exemplifica o amor incondicional de mãe-filho e filho-mãe. Digo isso não para me autopromover, mas para dar crédito a um grande e querido amigo, Seu Tranca-Rua de Embaré, que me disse no terreiro: "Escreva sobre o amor". Ao ouvir isso, nenhuma importância dei a ele, e gira após gira ele retornava imperativo e amigo com a mesma fala "escreva sobre o amor". Enfim me rendi e ainda em 2016 os poemas estavam prontos, esperando apenas os desenhos. Inicialmente não havia a intenção de unir nossas artes, mas que sei eu? Sei apenas sem saber por quê que demoro muito para publicar, e ele, que tudo sabe, deve estar a rir da união. 

Meu primeiro livro de poesias, Pretérito Imperfeito, contém poemas escritos entre 1992 e 2012, mas eu nunca pensei em publicá-los porque não me considerava poeta, apenas um diletante bobo e petulante. Foi Leonardo Davino, irmão de todas as vidas, quem leu e me encorajou a publicar. Naturalmente é dele a orelha, como é a ele que eu agradeço por conhecer você, ao sugerir que eu lesse Poética na incorporação. Foi uma leitura maravilhosa que me fez aprender muito, mas ainda necessitei de alguns anos até amadurecer mais: sou um espírito em evolução (perdoe a redundância) e carecia de mais espiritualidade. Como ainda necessito e muito. A macumba apareceu na minha vida em 2006 e escrevo, também, para lhe contar isso. Na verdade, mais do que falar contigo, falo comigo mesmo, é necessário.

Até 2006, eu era ateu convicto. Chato, diria, porque eu era daquele tipo de ateu que menosprezava a fé e a crença alheias e procurava, cheio de razão (?), provar a inexistência de qualquer coisa sobre-humana. Elisa de Castro, minha companheira há 17 anos e mãe de nossas três Marias, ao contrário, sempre esteve ligada à vida espiritual, mais que isso, à macumba. Ela convidou-me, naquele ano, a ir a uma festa de São Jorge na Tenda Espírita São Jorge, a sétima casa de umbanda aberta pelo Caboclo das 7 Encruzilhadas e que mantém-se com trabalhos ininterruptos até hoje. Obviamente, desdenhei do convite e ela seguiu macumbando sozinha. Diante da minha incredulidade e sobretudo da minha zombaria, Elisa contou para um amigo nosso em comum o meu ateísmo. Ele também é macumbeiro, mas eu desconhecia isso. Foi então que a magia ocorreu. Sem me dizer para onde íamos, e com o pretexto de que precisava da minha ajuda para resolver um problema, levou-me para o Grupo Umbandista Caboclo Rompe Mato. Era uma gira de Preto Velho. Recordo-me que, enquanto assistia a gira, mentalmente criticava a ingenuidade daquelas pessoas, encenando um teatro (macumbança). Enfim, chegou a vez de me sentar diante da Velha Maria do Rosário e, ao dar as mãos a ela, senti algo que jamais havia sentido. E ainda não consigo explicar, só sentir. A bondade e a sabedoria próprias dos Pretos Velhos me colocaram uma pulga atrás da orelha. Se a espiritualidade não existe, o que foi que senti? Se nada disso é real (!), como ela me disse coisas que mais ninguém sabia? Uma semana se passou com a inquietação gritando em mim, até que voltei com o Duda para a gira seguinte, de Exu. Ali me rendi e macumbancei. Comecei a trabalhar no terreiro e a me desenvolver como médium. Alguns anos fiquei no Rompe Mato até receber orientação do alto de que meu lugar era na Tenda Espírita São Jorge, onde trabalho até hoje.

Há muitos pormenores que mereceriam registro aqui, mas não é exatamente sobre mim que pretendo falar, muito embora sempre seja. Até o dia 15 desse mês, eu era um macumbeiro que não acreditava em Deus e que sempre duvidava de tudo. Sobretudo porque possuo uma doença séria que a macumba não dava jeito de curar. Dia 15, fui acometido por uma grave crise novamente e algo diferente ocorreu. Não há explicação. Também não houve cura. Mas houve cura macumbança. O mais próximo que a linguagem pode afirmar é que ocorreu um despertar espiritual. Sou um novo homem desde então. E lá se vão "apenas" 7 dias até o momento que lhe escrevo. Sete. Nada é à toa. 

Dia 16 fui com Elisa e nossas Marias nos refugiar na natureza após meses de isolamento social presos em casa. Era necessário estar próximo do verde, de Oxóssi, de Oxum (minha mãe) e de Omulu (meu pai). No meio da natureza, permanecemos em isolamento, mas não estávamos sozinhos porque nunca estivemos. A caminho de lá, me ocorreu escrever um Manifesto Autofágico, ainda a ser escrito. Na bagagem, Macumbança, único (?) livro que levei comigo. 

Em 2017 defendi minha tese de doutorado, Bruxaria do início ao fim, a ser publicada pela EdUERJ em 2021. Iniciei o doutorado com um projeto para pesquisar blogs, mas exatamente após dois anos, sentia-me insatisfeito com o corpus da pesquisa e não via razão para prosseguir. Exu então se manifestou. Durante uma gira, Dona Maria Padilha me disse para escrever o que eu quisesse, que não deixasse ninguém me impedir. E então a encruzilhada mostrou meu caminho, destrancou a pesquisa e mergulhei na obra do bruxo. Na minha modesta opinião, Machado de Assis é nosso maior nome literário, inigualável e penso que jamais alguém conseguirá escrever-dançar-dançar-escrever como ele. Propus uma tese que também contivesse ficção e busquei uma escrita-pastiche. Assim abro um dos capítulos centrais para a pesquisa, que, humildemente, em vários momentos se aproxima do que você escreve em Macumbança, mas sem o seu talento, ou melhor, o seu axé: "Meu caro leitor crítico, algumas páginas atrás afirmei, mais de uma vez, que a ficção é real. Talvez aches esse argumento absurdo, iludindo-se ou conhecendo-se um ente da realidade estabelecida; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer carecerá da colaboração de alguns teóricos e pensadores aptos a me auxiliar, ou melhor, a te ajudar a te reconhecer como um ente ficcional. Nesse ponto, assumo as contradições desse mundo e obedeço às exigências acadêmicas das quais pretendia fugir, pois valso no compasso da orquestra. Como requer a valsa, dividirei em três partes este capítulo, cada uma correspondendo a um movimento". A tese dança. Os leitores dirão se obtive êxito, mas ao menos a banca, meus cinco leitores iniciais, atingindo ao menos o desejo de Brás Cubas, que se contentaria com esse número, aprovou a tese. Se somarmos os dois suplentes, foram sete leitores. Sete. Ela é dedicada ao amigo-irmão Leonardo Davino, o melhor e mais luxuoso interlocutor que eu poderia ter durante a pesquisa.

Voltemos à natureza. No meio do silêncio, da floresta, do lago e da lua (rua), iniciei a leitura de Macumbança. Eu teria lido em um único dia simplesmente porque o livro é genial. Digo que é genial porque me falta palavra mais adequada para expressar o que senti. As palavras sempre a me faltar. O indizível sempre dando um jeito de se dizer. A magia sempre mágica. Não poderia terminar a leitura em um único dia porque passaria os demais sem outro (?) livro e preciso de livros. Assim, a cada dia lia um pouco e descobri que sou incapaz de dizer o que quer que seja de Macumbança porque nada que se diga é suficiente. Se há algo a dizer para elogiar seu trabalho é manter o silêncio, que contém todas as palavras. Fui capaz de escrever crítica e teoricamente sobre Machado de Assis, mas não tenho palavra alguma para resenhar, prefaciar, criticar Macumbança. Nenhuma. Isto é: todas. A ela (a você) só gratidão. Lisonjeio-me ao perceber afinidades entre o que escrevi e o que você escreve, mas se há diálogo, é conceitual, não estilístico. O seu é singular. Cogitei pinçar alguns trechos meus e seus para me engrandecer, mas fica o convite para a leitura. 

Desde que me entendo por macumbeiro fujo da espiritualidade, procurando viver sob o diapasão da razão, da teoria, da filosofia. Se na tese eu quincasborbeei, na vida eu agora macumbanço sem receio algum. A leitura foi sobretudo um aprendizado para a vida. Não mais nego quem sou. Sou poeta, escritor, crítico, professor, pai, marido, filho, macumbeiro. Sou o mesmo homem repartido por todos os homens, escrevo a poesia repartida por todas as poesias, vivo a vida vivida por todas as vidas. A teoria não explica o poético, antes o poético é. O curioso é que defendi isso na tese, mas não sentia, ou melhor, na encruza, apenas pensava. Agora sinto-me pleno. Macumbançar é verbo que não se conjuga no pretérito, sempre no presente.

Antes de regressar da natureza, olhei para o fundo do lago e vi a lua. Era dia claro e a lua estava no fundo das águas de Oxum. Imediatamente olhei para o alto e a vi. 

Eu vi chover eu vi relampejar / mas mesmo assim o céu estava azul / Firma seu ponto na folha da Jurema / Oxóssi é bamba no aracaju

Agora, de volta à cidade, à rua

Mas ele é, capitão da encruzilhada (Ele é) / Mas ele é, ordenança de ogum / Sua divisa quem lhe deu foi oxalá / Sua coroa quem lhe deu foi omulú / Ô salve o sol, salve a estrela, salve a lua / Saravá seu tranca rua, que é dono / Da gira no meio da rua

sábado, 2 de maio de 2020

Cantarola o Dia

Cantarola Cartola
Minha vida e convida
O compasso de meus passos
A seguir sem eira
Até a beira da Mangueira
Morro sambista da vista
Do amor à passarela
Aquela avenida 
Unida em harmonia
Pulsando na bateria 
No ritmo da passista baiana
Assista festa soberana
No rosto do povo
Refugiado na fantasia
Daquele dia sem fim
Arlequim distante 
Da verdade adiante
Ao sol nascente 
Quente e bamba
Como a gente que aguarda 
Em guarda à espera de um 
Único
Dia

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Doravante não olho pra trás 
Me compraz prosseguir adiante
Eis que sou ás do volante audaz
Palavra é matéria 
Sincera quimera
Performa o mundo 
fundo reverbera 
Sentido não tem
Convém sustenido 
Sentido amém 
Porém invertido

Palavra é falsa
Condiz com a verdade 
Metade desgraça 
A força nefasta 
Afasta o esboço
De moço poeta
Profeta sem verbo

Palavra é nada
Do todo ao tudo
Veludo absurdo
Incomunicável 
Afável beleza
Destreza feroz
A voz da palavra

É matéria toda
Ao nada diz tudo
Contudo a palavra
Lavra conteúdo 
Sem rima e desnudo
Algoz de si mesma
Concreta e feroz

terça-feira, 24 de março de 2020

PESADELO DE MIM

Dentro de mim vejo escuridão
O coração acelera
Taquicardia inútil
Nada sinto
No oco do peito

Cabeça é tormenta
Me atormenta
Em buscas inúteis
Presa fácil indócil agônica

As pernas iluminadas
Não se movem
Não há rota de fuga
Para fora de mim

Encarcero-me inteiro
Pesadelo de mim sem mim
Dentro do eu
Com vida além
Apesar de aquém

sábado, 18 de maio de 2019

domingo, 5 de maio de 2019

A NINGUÉM 
CONVÉM
QUE SE DIGA
AMÉM 
PORÉM 
HÁ QUEM 
PROSSIGA 
AQUÉM

SEM MAIS
ELE JAMAIS

quinta-feira, 28 de março de 2019

Por Vanusa Maria de Melo

Na terça, fui ao lançamento do livro Nuncas, do meu amigo Bruno Lima. É um livro de raikais. Gostei muito. Não sei se minha cabeça é que percebe uma narrativa em tudo ou se tem sentido em ter percebido isso nos textos. 
Os versos do Bruno são cheios de lindas referências do mundo da escrita e de tudo o mais, que também são coisas da escrita. Estão lá escritores, artes e também entidades e orixás. E sua relação rica e intensa com suas três filhas Marias, coisa pouco comum na escrita de homens (adorei isso!). Estou me alfabetizando em raikais...
Separei um dos raikais numa foto abaixo por identificação com minha realidade atual, cheia de obsessões literárias. 
De quebra, ganhei a leitura do "não-posfácio" do Luciano Moraes (que elegância e que profundidade, gente!). Né por nada não, só tenho amigo talentoso.
A imagem pode conter: Bruno Lima e Vanusa Maria de Melo, pessoas sorrindo, pessoas em péA imagem pode conter: texto

sexta-feira, 22 de março de 2019

DIA 26 DE MARÇO, LANÇAREI NUNCAS, MEU PRIMEIRO LIVRO DE HAICAIS, NO ESPAÇO MULTIFOCO, NA AVENIDA MEM DE SÁ, 126, DAS 18H ÀS 21H.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019