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segunda-feira, 29 de julho de 2013

Pretérito Imperfeito de Bruno Lima - resenha de Flávio Corrêa de Mello*


Bruno Lima lançou seu primeiro livro há alguns meses, o Pretérito Imperfeito. Não se trata de um escritor novato, um poeta que se perca pelas armadilhas do ego ou que ainda viceja os primeiros passos na artimanha da escrita poética. Também não é um poeta cansado, curvado nas estruturas que dão certo, fato que denota-se na apresentação datada da recolha de poemas que vai de 1993 à 2011, sem obedecer um índice cronológico.

Percebe-se na abertura do livro que a escolha da seleta valorizou o diálogo reflexivo do ato criativo e indica o caráter obreiro de Bruno: "traçar uma linha dentro de um caderno espiral (...)", "as traça dão certeza (...)", "texto tecido tem tempo (...)", "que é traça, que é gasta, que é menos / imprensa ou pergaminho / máquina ou mão." Estes apontam igualmente o vórtice espiralar da poesia de Bruno, sem uma  unidade temática preferencial, mas com o artifício de retomada dos versos e de palavras que aparecem aqui e acolá (o caso de "traça") sugerindo diversos itinerários. Neste ponto me aventuro a identificar na traça o ato que se quer devorador das palavras e dos sentidos múltiplos reservados a poiesis e ao refastelar-se  de cansaço pelo ato constante de reescrever, como podemos visualizar no poema Palavras Operárias:

Palavras Operárias
06/03/2006

Conto o conto com palavras operárias
Tralhas exatas para cada momento
Que é todo, que é aura, que é sempre
Biblioteca ou panfleto
Poeira ou vento.

Leio o texto tecido sem tempo
Pêndulo em compasso com a tradição
Que é traça, que é gasta, que é menos
Imprensa ou pergaminho
Máquina ou mão.

Escrevo e me atrevo com rascunhos garranchos
Hieróglifos conflitos de um instante
Que é curto, que é muito, que é tanto
Limpo ou rasura
Borracha ou estante. 


No poema acima podemos ver os recursos de repetição entremeados nos terceiros versos de cada estrofe. Além de ondular o ritmo do poema marcado pelas repetições há o realce dos enjambements que permitem uma unidade corpórea ao poema sem perder a abertura de sentidos propostos no conjunto do poema: o diálogo com a tradição e os rascunhos, garranchos, de quem se atreve a buscar o seu próprio caminho. Esta parte inicial do livro em que se dialoga com a metaliteratura, a metacriação compreende os poemas Espiral,Palavras operáriasPulsa pulsoRedondilhas à toa e Pensando em João Cabral

Os poemas que seguem o livro descortinam o olhar do poeta sobre diversos temas e assuntos: família, trabalho, amor, sensações e visões são garatujas moto-contínuas que nos levam por um passeio na admissão de nossas imperfeições da lida do cotidiano. Diferente do pretérito perfeito, o imperfeito é o tempo de um passado durável que lida com a constância e a permanência em tempos remotos ou recentes. Nos poemas, traduzem-se, no meu modo de perceber o livro e a poética do Bruno, na pluralidade de sujeitos temáticos nas quais o eu poético quase se insere, quase é partícipe dos acontecimentos do entorno. No poema curto Exílio podemos distinguir melhor essa silenciosa marca:

Exílio 
(25/11/1993) 

Cala-se em mim
a mais estrondosa
explosão.
A grande nuvem cinza
empoeirada sufoca
meu grito.
Atrás das grades neon
minha luz agora
é cega.

Talvez o poeta tenha se exilado de nos apresentar sua obra há mais tempo. Talvez, só agora, ele reuniu o escopo necessário para por-se ao deleite de seus leitores, nos quais prazeirosamente me incluo. Há na distensão do tempo, nestes quase 20 anos, vários caminhos, sentidos, trilhas, tralhas e possibilidades de leitura de Pretérito Imperfeito. Esses múltiplos horizontes caem perfeitamente bem com o blog do autor, o identidade de um eu

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* Flávio Corrêa de Mello é poeta, autor dos livros Poemas Suíços e Rio Movediço. Mantém o blog Rio Movediço, que pode ser acessado aqui.

domingo, 21 de julho de 2013

Não via mais motivo algum para seguir em frente; Esperança aguardava pacientemente a expiação.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Leitura comparada entre O seminarista de Bernardo Guimarães e O Seminarista de Rubem Fonseca

Em 1872, Bernardo Guimarães publica seu romance O seminarista. Nem o livro nem o autor figuram no primeiro escalão do cânone literário brasileiro, mas este texto apresenta algumas questões que merecem ser discutidas, entre outros motivos, porque é retomado dialogicamente, neste século, por Rubem Fonseca, em romance homônimo.
Na segunda metade do século XIX, Bernardo Guimarães escreve um romance que pode ser lido de duas formas: a primeira e mais ingênua, como um enaltecimento da religião católica; a segunda e mais oportuna, justamente como uma crítica a essa mesma religião, em especial ao celibato clerical.
Nada melhor do que uma história de amor para dar curso à trama, bem de acordo com o estilo demasiado romântico do romance. Mas o amor recíproco entre Eugênio e Margarida não poderá ser consumado, pois os pais do menino Eugênio determinaram que ele será padre e, para tanto, irá estudar no seminário - José, narrador de Fonseca, também foi seminarista atendendo o desejo de sua mãe, mas não chega a se ordenar padre. Aqui, há outra importante diferença entre Eugênio e José: aquele é religioso, servil e amedrontado, ao passo que este é ateu, forte e destemido. A construção de caráter dos personagens obedece à lógica do temor a Deus, mas não me aprofundarei sobre isso.
Para a construção da história de um amor condenado, há, ao longo de todo o romance, referência ao pecado original, de maneira a não apenas repudiar a pureza do amor de Eugênio e Margarida, mas, principalmente, problematizar alguns dogmas da Igreja. No segundo capítulo, uma cena é exemplar: Margarida, ainda aos dois anos de idade, brincava no quintal longe de cuidados, quando Eugênio deu por sua falta e, ao encontrá-la, aterrorizou-se com a jararaca que se enrolava ao redor da menina. A serpente não atacou a indefesa criança, ao contrário, brincava, lambia e beijava o rosto da pequena. Eugênio gritou por socorro e sua mãe e Umbelina (mãe de Margarida) correram ao seu auxílio e perceberam que nenhum mal lhe havia acontecido. A senhora Antunes, muito devota, "teimava em ver naquilo um sinistro prenúncio, que ela mesma não sabia explicar". Para Umbelina, os receios da senhora Antunes eram infundados, uma vez que a cobra não fizera nenhum mal, ao que esta respondeu que a serpente também não mordera Eva, mas a tentara, o que era muito pior. Já no início do romance, Margarida está intimamente associada à serpente e à causa da perdição da humanidade, que desobedecera às ordens de Deus. "Se o Gênesis não nos apresentasse esse terrível réptil como cheio de astúcia e malícia seduzindo a primeira mãe da humanidade e fazendo-a perder para si e para toda a sua descendência as delícias do paraíso terreal, dir-se-ia que até a serpente tem seus impulsos generosos e também sabe respeitar a fraqueza e a inocência da infância", afirma o narrador, que costuma intervir dubiamente: por um lado seu discurso afiniza-se com os preceitos católicos, mas, por outro, nas entrelinhas, o critica severamente. 
Já no seminário, Eugênio não consegue esquecer Margarida. E é justamente a pureza deste amor que mais o aproxima de Deus. O jovem seminarista não conseguia entender por que havia de sacrificar um amor em nome de outro, por que não era possível coexistirem o amor a Deus e o amor a uma mulher. "Amor e devoção se confundiam na alma ingênua e cândida do educando, que ainda não compreendia a incompatibilidade que os homens têm pretendido entre o amor do criador e o amor de uma das suas mais belas e perfeitas criaturas - a mulher". Uma possível interpretação deste trecho é o ataque direto à misoginia da Igreja, que desde sempre colocou a mulher em segundo plano, sem jamais usufruir dos mesmos direitos dos homens. Lembremo-nos que as mulheres ainda hoje não podem se ordenar. Se quisermos aprofundar a dicotomia entre gêneros, havemos rapidamente de colocar Deus como masculino e a serpente como feminino, bem como Eva, a responsável pelo pecado original, mas fiquemos por aqui. 
José, o seminarista de Rubem Fonseca, não sabia o que era amar. Suas relações com as mulheres restringiam-se ao sexo. Não confiava em suas parceiras, como não confiava em ninguém, em função de sua atividade de matador de aluguel, até que um dia ele conhece, casualmente, Kirsten (etimologicamente "cristã") e passa a amá-la como nunca amara antes. É o amor que nutre por Kirsten que faz com que ele queira abandonar sua vida de crimes e levar uma vida normal e pacata, pois "o amor é a essência da vida", ele diz, referindo-se ao sentimento por Kirsten, não por Deus, ser em quem ele não acreditava. José - nome bíblico, diga-se de passagem, o pai de Jesus - emprega todos os seus esforços para proteger Kirsten do perigo de vida que ela corre, mas, no fim das contas, ela é assassinada, levando consigo a tentativa frustrada de José de iniciar uma nova vida. Desiludido, ele retoma sua vida de crimes, já que o amor, que seria sua redenção, lhe foi roubado - e justamente por D.S., seu amigo de seminário, que não era senão Deus, mas voltaremos a isso mais adiante. Como D.S. matara Kirsten, José, por sua vez, mata D.S. (Deus), e sentencia: "a pessoa não deixa de ser o que é: dos cabelos até as unhas, da cabeça ao pés (...) eu continuava sendo o que sempre fui, ainda que tivesse mudado de nome". Esta afirmativa, ao final do romance, é contrária ao ensinamento de que podemos mudar e alcançar o perdão através do arrependimento e da confissão. 
Em ambos os romances, o amor é subtraído dos seminaristas. Em Fonseca, é o próprio Deus quem se encarrega de assassinar a amada de José; em Guimarães, é em nome de Deus que ardis são cometidos para preservar a carreira eclesiástica de Eugênio. Ora, mas se Deus é amor, por que a Igreja o reprime tanto? Ou um padre ama Deus ou ama uma mulher; pessoas do mesmo sexo não podem se amar; aparentemente o amor, para a Igreja, é condicional, ou restritivo, e nem toda forma de amor vale a pena...
Longe de Margarida no seminário, Eugênio não consegue deixar de pensar nela. Através de versos (de ficção, em última instância), o seminarista exprime seu amor recluso, dá a este amor uma espécie de catarse, até que seus escritos amorosos são descobertos e confiscados pelos padres superiores. E, no seminário, paradoxalmente, sua vida se transforma num inferno. Eugênio é submetido a uma semana de jejuns, enclausuramento, penitências etc. etc. "À força de trabalhos e insônias, de orações, jejuns e mortificações continuadas, caiu em tal estado de prostração, de atonia física e moral, que embotando-se-lhe de todo a sensibilidade e quase extinto o lume da inteligência, o rapaz ficou como que reduzido a um autômato (...) Eis como uma educação fanática e falseada, abusando de certas predisposições do espírito, lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de toda a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia divina dele não se amercear". Aqui o narrador interfere explicitamente contra as arbitrariedades da Igreja.
É interessante observar que foram os versos amorosos os responsáveis pela desventura de Eugênio, ou melhor, por seu desmascaramento, do mesmo modo que José também era um leitor voraz de poesia. Pode-se fazer uma equivalência entre Deus e ficção, não no sentido de provar ser Deus uma mentira, mas tão-somente uma verdade construída discursivamente; uma mitologia, no final das contas. José também era leitor de Deus, um delírio, de Richard Dawkins, obra no mínimo inusitada para um ex-seminarista. O romance de Guimarães fornece ótimos subsídios para que Dawkins ataque as religiões como um mal a ser combatido. Haveria melhor exemplo, neste livro, de homens bons fazendo coisas ruins apenas e exclusivamente em nome da religião, como no caso da mentira perpetrada pelos padres de que Margarida havia se casado, a fim de convencer o pobre Eugênio a finalmente esquecer-se dela e aceitar o celibato? Para Eugênio, "religião, amor, poesia, eis os elementos que bastavam para encher aquela existência e torná-la a mais feliz do mundo. Eram como três anjos de asas de azul e ouro que esvoaçavam de contínuo em torno dessa alma infantil e cândida e a arrebatavam aos céus em gozos inefáveis". Esses três elementos não poderiam caminhar juntos, no entanto. É fácil compreender por que a poesia (ficção) não pode caminhar ao lado da religião. De acordo com Karlheinz Stierle, com o surgimento do cristianismo, passou-se a ter uma única verdade, a verdade de Deus, e a ficção é posta no banco dos réus. 
Eis outra interferência do narrador de Guimarães bastante direta: "O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos faz na sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre". Isso aconteceu com Eugênio, em mais de uma cena, como naquela em que ele mente ao seu pai para ir a uma festa na casa de Margarida e é afrontado por um pretendente de sua amada sem conseguir defender-se, sendo socorrido pela própria Margarida, sentindo-se covarde e humilhado. Não é assim, porém, que age José, no romance de Fonseca. Muito mais culto do que Eugênio, José possui vasta leitura de poesia e de filosofia, além de conhecer cinema e arte em geral e ser capaz de falar com desembaraço sobre qualquer assunto, seja com homens ou com mulheres. Uma interpretação possível é que o seminarista do século XXI não tinha nada mais a aprender espiritualmente, restando-lhe a erudição oriunda do seminário. Daí tantas citações em latim da parte de José. Eugênio, por sua vez, idiotizado, sai do seminário não apenas padre, mas detentor de uma religiosidade ausente em José. No século XIX, apesar dos equívocos, a religião ainda possuía força espiritual; no XXI, restaria-lhe apenas a cultura secular, sem qualquer espiritualidade - Deus está morto. 
Eugênio lutou o quanto pôde para fugir ao compromisso filial de acatar o desejo de seus pais de se tornar padre, mas, na verdade, ele não era forte o suficiente. Vivia num tempo em que era mais difícil se insurgir contra a família e contra o status quo, não podemos ser tão duros com o rapaz. Mas, mesmo buscando ser condescendente com ele, é flagrante que fora muito mais fraco do que Margarida. Esta, após ser procurada, a conselho dos padres, para que casasse, obstinadamente se recusou, não restando opção ao senhor Antunes senão a expulsão de suas terras. Os pais de Eugênio, naturalmente, creditaram a resistência da moça a dois fatores: primeiro, ao contato com a serpente que se deu no início do romance, que fazia com que ela estivesse sob influência do mal; segundo, recusava-se a contrair matrimônio interessada que estava no dinheiro de Eugênio, denotando a dificuldade do amor vencer, também, barreiras sociais - Umbelina e Margarida eram agregadas nas terras do senhor Antunes. Ela, porém, mesmo sendo mulher, isto é, mais fraca física e moralmente e culpada pelo pecado original, portanto, pelo destino da humanidade, manteve-se fiel ao compromisso firmado com Eugênio. Este, já padre, soube que fora enganado por seu pai e pelos padres, mas nada mais podia fazer. Apenas resignou-se: "Que ideia infernal de sacrificar o destino de duas pessoas por meio de uma mentira!" Finalmente, resolve se tornar "um padre sacrílego, um padre infame, como tantos outros, que todos os dias profanam com mãos impuras os vasos do altar e a hóstia sacrossanta. (...) Ah, celibato!... terrível celibato!... ninguém espere afrontar impunemente as leis da natureza!" Esta fala de Eugênio é preciosa porque, apesar de contida numa obra ultra-romântica, já prenuncia o naturalismo que irá surgir em poucos anos, afora a crítica explícita à Igreja.
O romance de Guimarães termina com a morte de Margarida no momento que padre Eugênio vai rezar sua primeira missa. Ele, em frente ao altar-mor, arranca todas suas vestes eclesiásticas e sai correndo pela porta principal. "Estava louco... louco furioso".
O fim do romance de Bernardo Guimarães é um excelente mote para O seminarista, de Rubem Fonseca. O seminário transformou o jovem Eugênio em um louco furioso, mais um ponto dialógico ente os dois romances. José, narrador e protagonista de Fonseca, não concluiu o seminário, e sua profissão é matador de aluguel, o melhor que há. Algumas interfaces entre os dois textos já foram apontadas, mas restam alguns breves comentários a serem feitos. Narrado em primeira pessoa, o seminarista do século XXI não possui a intervenção de um narrador alheio à história. O que é narrado o é sob o ponto de vista do personagem. Mas que narrador é este? Quem é este seminarista e quais são suas motivações? 
Ele é um matador profissional que não quer saber nada a respeito de suas vítimas ou, como prefere chamar, seus clientes. Poderia ser um personagem sem qualquer ética, mas, por outro lado, afirma que "matar passarinho é pior que matar gente má". De acordo com certa visão religiosa, matar gente má é desígnio de Deus; seria o Todo Poderoso o responsável por punir os pecadores. Não digo com isso que José é Deus, mesmo porque ele é ateu, apesar de dizer, em mais de um momento, que D.S. era seu melhor amigo nos tempos de seminário, e que não pode dizer seu nome completo, por isso apenas as iniciais. Eu disse anteriormente que D.S. era Deus e agora preciso me justificar. Uma interpretação possível é a impossibilidade de se dizer o seu nome em vão, daí a utilização apenas da primeira e da última letras, como fazem os judeus. Outra foi dada pelo professor Gustavo Bernardo Krause, ao se referir ao manual de heresias do século XIX intitulado Enchiridion Symbolorum et Definitionum, de Heinrich Deizinger, posteriormente atualizado por Adolf Schönmetzer, daí a sigla DS. A meu ver, essas duas interpretações são convincentes, mas, textualmente, encontramos outras.
Antes, porém, cabe observar que, ao retomar o romance do século XIX, cujo protagonista termina sua participação louco e furioso, torna plausível a loucura de José que, mesmo sem acreditar em Deus, conversa com Ele, evocando a aposta de Pascal: "Porque estou envelhecendo você acha o que, D.S.? Que vou ficar amedrontado e concluir que é melhor acreditar em Deus, porque se estiver certo tenho uma chance de escapar do inferno e se estiver errado não tenho nada a perder, é isso? Essa esperteza usada por todos os velhos?" José também faz comentários irônicos, como dizer que D.S. era um ano mais velho que si próprio ou que saíra do seminário por ser libidinoso.
Enfim, uma outra interpretação possível para equiparar D.S. a Deus: José recorre a D.S. quando se vê sem saída para resolver o mistério no qual se vê envolvido. Quem melhor do que Deus, onisciente, para lhe dar as respostas que ele busca? Mas se ele é ateu... Bem, talvez José tenha abandonado o seminário por ter conhecido mais amiúde Deus e não tenha gostado nada do que conheceu. Em Guimarães, são os padres e o pai de Eugênio que maltratam o protagonista; em Fonseca, há uma referência de que são os homens novamente os responsáveis pela barbárie, e que Deus não teria nenhuma responsabilidade, posto que está morto, mas por motivos diversos dos encontrados em Guimarães: "D.S. estava muito estranho. Sugerindo que eu matasse alguém que ele conhecia. Mas, enfim, a mente humana era muito complicada, pensei em Zoroastro, Aristóteles, Platão, Kant, Freud, Nietzsche - se esses putos todos nada sabiam sobre a mente humana, o que saberia eu?" Ao dialogar com D.S., José humaniza Deus, afirmando ser a mente humana complicada - ao contrário do incognoscível Deus.
Em Fonseca também encontramos uma crítica aos preceitos católicos - o arrependimento e a consequente absolvição: "Se eu fosse religioso, arrependido como estava, bastava me confessar, rezar alguns padres-nossos e ave-marias que seria perdoado e tiraria aquele peso do meu coração". O que parece estar nas entrelinhas é o absurdo que é uma vida inteira dedicada a crimes hediondos, a matar pessoas com um tiro na cabeça e, para entrar absolvido no reino dos céus, bastar se arrepender, confessar e rezar. 
Para finalizar, chamo a atenção de que José - nome do pai de Cristo - tem apenas mãe, cujo desejo era ver o filho padre. Sem uma figura paterna e sem acreditar em Deus, não abdica, contudo, de seu primeiro nome, já que ele trazia recordações de sua mãe o chamado carinhosamente quando criança. Uma leitura que eu proponho é que, atualmente, vivemos um momento sem Deus, restando a cada um de nós suprir este papel da melhor forma possível, nem que seja apenas autonomeando-se José.
Ambos os romances fornecem mais problematizações e críticas a Deus e à religião, mas, para não tornar este texto ainda mais extenso, convido à leitura de ambos, pois são bons textos, com muito a dizer, cada qual respeitando seus respectivos "ismos".