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domingo, 11 de maio de 2014

Encontros e desencontros entre mim e minha mãe - à luz de Adorno

Mirei a estante. Meus olhos procuravam livros que auxiliassem meu arcabouço teórico. Rapidamente encontrei alguns títulos. Ainda não lidos. Há tempos na fila de espera. Ótima oportunidade para finalmente lê-los. Me perguntei por qual começar. Acendi um cigarro. Traguei. Respirei fundo. Concluí que essas leituras, ao menos por ora, são dispensáveis. Não porque sejam improdutivas. Ao contrário. Toda leitura, a priori, é profícua. Mas meu objetivo é escrever sobre a teoria estética de Adorno. Livro suficiente para render muita discussão. Ademais, aproveitando o próprio Adorno e a leitura que ontem fiz de Agamben, convenço-me de que tenho na minha memória, no meu tempo, na minha contemporaneidade, todo o conhecimento de que preciso para registrar possíveis caminhos a trilhar e desenvolver na escritura da tese. Ela é minha. Serão meus pensamentos, minhas ideias, meus devaneios que a tornarão autoral. Singular. Não quero uma colcha de retalhos. Vício acadêmico. Boa tese, dizem, é aquela que demonstra erudição, citações, filósofos e teóricos em voga. Eu estou em voga. Eu escrevo. Eu defenderei. Não serão os autores presentes nas referências que sustentarão meus argumentos. Serei eu. A criticá-los, inclusive. A relê-los e discuti-los. Minha tese visa problematizar o cânone. Sim, defendo que os blogs são literatura. A publicação impressa e editorial não é chancela de qualidade literária. Há arte boa e ruim. O mesmo ocorre textualmente. Literatura, o que vem a ser isso, afinal? Existe resposta? Alguma que a conceitue dentro da própria literatura como uma forma de arte? Minha paixão sempre foi pelo texto. Graduado em Letras, sou doutorando em Literatura Comparada. Não fiz Ciências Sociais. A Literatura não se presta a responder questões sociais, políticas, culturais. Estudo a Literatura para entender a Literatura. Tarefa inglória. Muito difícil. Meu mais novo desafio. Agradeço a Adorno, que alargou meu horizonte. A arte é autônoma. Eu sou sujeito. Ela precisa de mim e eu dela.
Aqui, minha gratidão à minha mãe. Ela me ajudou a ser quem eu sou. A construir meu passado e alimentar meu presente. A apreciar a arte. Socióloga por formação, dedicou-se às artes plásticas e à literatura. Nunca exerceu a sociologia. Viveu para a arte. Nas minhas paredes, suas telas. Guardados e ainda não lidos, seus diários. Secretos. Dizia que só poderiam ser lidos depois de morta. Seus escritos a fazem viva, sob determinado ângulo. Ainda não tive tempo, ou coragem, de folheá-los. Uma vez apenas abri ao acaso e li um poema. Lindo. O julgamento é crítico, não filial. A arte encontra-se no mundo, ou melhor, o constrói. Não necessita, obrigatoriamente, de museus. De editoras. De crítica, enfim. O crítico, a propósito, muitas vezes presta um desserviço à arte. Sou filho dessa mulher, dessa artista, falecida há dois anos. Sua arte ainda vive. Ainda fala. Dialoga comigo. Às vezes a entendo; outras tantas, emudeço-me. Assusto-me. Sou fruto da maior herança materna - subjetivo-me. Meu presente é a sucessão de tempos pretéritos. Sou contemporâneo. Entenda como melhor lhe aprouver. Explicações demasiadas pouco esclarecem. Em arte.
Estremeço ao me dar conta, enquanto escrevo essas linhas, que fiz o caminho inverso de minha mãe. Sempre estudei Literatura sob um viés sociológico. A sociologia que ela abandonou. Não preciso, pelo menos no dia de hoje, de novas leituras teóricas para embasar minhas reflexões. Preciso da Literatura. Agradeço à minha mãe, que também, amadoramente, tocou acordeão e piano. Eu estudei violão clássico. Na ocasião do vestibular, Literatura falou mais alto. A música foi solapada. Refugia-se em minha memória. Meu tempo. Meu eu. Agradeço, mãe, pelo que eu sou. Você foi decisiva. Também agradeço a Adorno. Me repôs nos trilhos. Eu estava em rota de colisão. Acabaria por me tornar mais um crítico sem nada entender de arte, de literatura.
Outro cigarro. Um copo d'água. Uma volta pela sala para esticar as pernas. De volta ao escritório, vejo sobre a mesa a máquina fotográfica. Procuro e acho. Fotografias de digitais sobre o quadro-negro. E pensar que a arte sempre esteve presente. Ali. À espreita. Enquanto Adorno, espiritualmente, sorria satisfeito.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crônica de um pai de terceira viagem - há sim bruxaria

Há tempos não narro minhas desventuras relacionadas ao convívio com três jovens Marias e com a mãe, a cabeça da gangue, pessoa perigosa e ardilosa. Quando ela conseguiu dois trabalhos em hospitais de Campo Grande, há muitos e muitos quilômetros daqui, finalmente pensei que Deus existe e que Ele resolveu sorrir para mim. São dois plantões de 24 horas, ausentando-a de casa por bastante tempo. Inicialmente, pensei que isso era uma espécie de castigo, pois ficaria a sós com três crianças endiabradas que não dão sossego a nenhum ser humano. Com o passar do tempo, porém, descobri que finalmente poderia educar minhas filhas de uma maneira mais tranquila, longe do exemplo maligno e indisciplinar da chefe das pequenas. Verdade em parte.
Todo santo dia que ela sai para o plantão, acorda às quatro horas da manhã para chegar em tempo hábil a seu destino. Assim, só a veria no dia seguinte, após as dez horas. Ledo engano. Não satisfeita em madrugar, ela dá sempre um jeito de me acordar igualmente. Minhas olheiras assumiram dimensões tamanhas que transfiguraram meu rosto. Se Gregor Samsa metamorfoseou-se em inseto, eu transformei-me no homem-olheiras. E isso é somente o início do longo dia que vem pela frente.
Uma vez acordado, ziguezagueio pela casa de modo a ordenar minha mente - nunca em ordem. Quando me sinto finalmente desperto e pronto para iniciar minhas atividades, as três Marias vão, uma a uma, acordando, com reivindicações diferentes e, muitas vezes, enlouquecedoras. Mas não falarei das pequenas hoje. O que importa nesta crônica é a descoberta que fiz de que há sim bruxaria e que Deus, se existe, é um grande zombeteiro, para não expressar adjetivo mais ofensivo à tamanha divindade.
Limitarei esta crônica ao que me aconteceu hoje, prova indelével de que a cabeça da gangue é uma bruxa. Ontem, dia 30 de abril, consegui fazer com que as três Marias dormissem muito tarde na esperança de que acordassem igualmente tarde neste dia do trabalho, feriado para todos os trabalhadores do país. Bem, quase todos, uma vez que, para mim, a labuta seria maior, pois creche e colégios não funcionariam. Ao menos acordaria mais descansado, pensava eu. Ledo engano. Em algum momento da madrugada, que, pela escuridão, deduzi ser umas três horas, Maria Antônia, a segunda, me acorda aos prantos devido a um pesadelo que tivera, soluçando que só conseguiria dormir na minha cama. Não me recordo o que respondi, mas ela se aninhou ao meu lado e, para tornar as coisas mais delicadas, imediatamente roubou meu edredom. Cansado como e estava, limitei-me a me encolher e a pegar no sono. Sonhava com Baco quando a Maria Cecília, a terceira, veio chorando com a fralda a ser trocada. Vi as horas. Quatro e meia. Respirei fundo, sequei uma lágrima que teimava em escorrer, e troquei a fralda da pequenininha. Naturalmente, já seca, alojou-se em minha cama e imediatamente adormeceu. Encaminhei-me para o sofá e acabei dormindo feliz, esperançoso de não ser acordado antes das dez.
Deitado no sofá, me senti feliz, dormiria até cansar, retomaria o sonho com Baco e as bacantes, descansaria, finalmente. O sonho não veio, mas dormi e não me importo se ronquei alto e vergonhosamente. Estava dormindo, e assim permaneceria com há muito desconhecia. Os prazeres de um homem pai de três pestes tornam-se algo simples, banal, comum - um direito a todo ser humano. Não para mim. Pelo menos até o dia de hoje. Apesar das duas interrupções e de ser expulso da minha própria cama, estava dormindo. As crianças não tiveram culpa do pesadelo e do xixi em demasia. Dormiria e acordaria no dia do trabalho revigorado. 
Mas existe bruxaria e sou casado com uma bruxa. Não digo que seja feia, ao contrário, mas detém poderes empregados sem pudor. Às 7 horas da manhã em ponto, o interfone inicia um chamado em alto e bom som. Era impossível ignorá-lo. Virei para um lado, para o outro, cobri minha cabeça com o travesseiro, mas tudo isso só fazia aumentar o volume. Levantei-me.
- Alô.
- Senhor Bruno Lima?
- Acho que sou.
- Entrega para o senhor.
- Mas eu não pedi nada.
- É da ***
- Puta que pariu, só um minuto.
Procurei uma bermuda, esforcei-me em vesti-la e finalmente abri a porta ao carteiro cheio de olheiras. Trazia-me uns sapatos comprados pela cabeça da gangue. Sapatos! Para ela e para as crianças. Por um momento pensei em Gregor Samsa e me perguntei se não tinha uma ninhada de centopeias em casa. Sapatos! Muitos. Todos os sapatos do mundo estavam à minha porta. 
- Assina aqui, senhor.
- Cara, você sabe que dia é hoje?
- Quinta-feira.
- Eu estava dormindo.
- Desculpa, senhor.
- Hoje é dia do trabalho, você não deveria estar em casa?!
- Ah senhor, sou casado com uma bruxa, feriado para mim é horrível, nada melhor do que trabalhar.
Respirei fundo. Assinei o recibo, sentei no sofá e imaginei a minha bruxa rindo da minha cara. Resignado, escovei os dentes, lavei o rosto, fui preparar meu cappuccino e, quando acendi meu cigarro, parte de meu ritual matutino, uma a uma das três bruxinhas levantou. E as reivindicações começaram, do "mamá" ao "faz meu toddy". A sorte, se há sorte, foi que viram a caixa com os sapatos e se entretiveram com a novidade. Mulheres, todas iguais, desde a mais tenra idade. Quase às 11, uma hora depois do que de costume, "ela" chega em casa, com um sorrisinho irônico que dizia tudo.