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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Esse tal de fim de mundo

Lembro vagamente de ter me acabado no dia anterior. Precisava enfim me despedir dos meus. Me despedir da vida. Deitei e dormi profundamente, como há muito não dormia. Acho que dormi uma eternidade. Não lembro de sonho algum. Abri um olho. Depois outro. Nenhum barulho de crianças. Não ouvi nenhum tipo de som. Eu estava envolto pelo mais absoluto silêncio. Respirei fundo. Me espreguicei com um leve sorriso nos lábios. Finalmente, após uma vida penando e expiando neste planeta, teria chegado ao paraíso. Resolvi levantar. E como a rotina é um vício, fui à cozinha preparar meu café. Um café preto, apenas, é o que me apetece nas minhas manhãs. Enquanto a água fervia, me perguntei onde estaria o espírito evoluído que deveria me receber e me explicar como funciona o outro mundo e me parabenizar pelo meu desempenho enquanto encarnado. Havia finalmente chegado o dia D. Eu desencarnara como toda a humanidade e iria de uma vez por todas pôr à prova as lições umbandistas. Que fosse meu anjo da guarda, alguém, sei lá. Na falta de companhia, dei de ombros, tomei meu café e acendi um cigarro, sentado à mesa da cozinha, com a sensação de dever cumprido. Ainda não ouvira nenhum barulho. Talvez os anjos tivessem organizado uma festa surpresa para um espírito evoluído como eu ou, o mais plausível, é que estivessem atarefados cuidando daqueles mais necessitados. No banho frio, já livre das irradiações de Morfeu, comecei a sofrer influências de São Tomé e pela primeira vez, apesar de todo silêncio que reinava ao meu redor, achei estranho esse tal de fim do mundo. Tudo bem, estava tudo muito quieto e eu sentia uma paz incrível, mas, por outro lado, o café e o cigarro eram indícios de um fim do mundo ainda não muito santificado, bastante terreno e apegado à matéria. E por que diabos o outro mundo era tão igual a minha casa de espírito encarnado? Será que era isso? A paz de que eu sentia tanta falta em um apartamento superpovoado por mulheres viria agora com todo o espaço apenas para mim? Viveria sozinho, sem a bagunça das crianças e as chatices da vida responsável e careta de um homem casado e chefe de família? A rotina finalmente desapareceria? As contas continuariam a chegar? Nessa hora eu ri. Certamente com as contas eu não precisaria me preocupar, o mundo acabou. Os Maias não errariam sua previsão. A não ser que eu estivesse, sem dúvida, no inferno. Me impacientei. Cadê o meu amigo espiritual que deveria me receber? Ou eu estaria num lugar menos favorecido, entregue a minha própria sorte? O calor insuportável me remeteu ao inferno. E, convenhamos, era mais verossímil eu ir para o inferno do que para o céu. Sem falar que devia ser mais animado também, vai saber. Rever toda sorte de pulhas com quem convivi nos meus 38 anos de vida antes do fim do mundo. Saí do banho frio com a pulga atrás da orelha sem saber o que queria. Céu ou inferno. Santidade ou expiação. Característica, aliás, que me acompanhou a vida inteira. Ambivalência foi a última palavra que a minha terapeuta me disse em minha última sessão. Finalmente saí do banho e já suava num calor horrível. Estava no inferno, não restavam dúvidas. Mais um cigarro para arrumar os pensamentos. E entre uma tragada e outra, vi um papel sobre a mesa da sala. Parecia um recado. "Estou com as crianças na praia. Não houve Cristo que te acordasse. Lugar de sempre. Vê se não demora. Beijos, Mô". Olhei pela primeira vez pela janela e vi gente. Mandei Morfeu, São Tomé, Anjo da Guarda, santos e diabos e, principalmente, os Maias para a puta que os pariu e fui me entregar a Iemanjá.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Entrevista

No dia 19 de julho de 2011, eu postei aqui uma croniquinha bem despretensiosa sobre um encontro casual que eu tive com um poeta no centro do Rio. Quase nove meses depois, em abril deste ano, recebi um e-mail inesperado de um repórter do Jornal O Dia, Rodrigo Cabral, me convidando para uma entrevista motivada pela tal crônica, intitulada Poesia Marginal. Segundo o repórter, meu texto veio a calhar porque ele estava organizando uma matéria sobre pessoas que vendem poesia nas ruas e queria, a partir dele, me fazer umas perguntas. É claro que prontamente aceitei e respondi as perguntas por e-mail. Como até hoje não obtive nenhuma notícia sobre sua publicação, resolvi postar aqui a entrevista. Relendo hoje minhas respostas, deduzi o porquê da não publicação, mas, em todo caso, vamos a ela.

Rodrigo Cabral: Bom, primeiro gostaria que você contasse um pouco mais sobre esse seu primeiro contato com o poeta no centro do Rio... O que acha de haver pessoas vendendo poesia dentro de toda essa agitação do centro?

Eu: O meu contato com o Alexandre foi totalmente casual. Eu fui ao centro da cidade resolver um assunto particular e, quando voltava, em frente ao Odeon, ele me abordou. Acho que ele veio até mim porque eu estava parado em frente ao cinema, que é um local de tradição no Rio de Janeiro ligado à cultura. Neste dia, particularmente, eu estava de muito bom humor e, por isso, me permiti conversar um pouco com ele sobre a sua poesia. Por um lado, tenho certa reticência com pessoas que vendem seus poemas nas ruas, por considerar que, via de regra, os poemas, esteticamente, são muito pobres; mas por outro, sob certo ponto de vista, é interessante que estes poetas saiam às ruas para vender seus trabalhos, de maneira a encontrarem leitores para textos que, de outro modo, permaneceriam guardados e inéditos em alguma gaveta. É interessante pensar também que uma pessoa que se dispõe a vender poesia no centro da cidade - reconhecidamente um local de grande agito, de negócios e de dinheiro - vai justamente na contramão do que representa, em termos financeiros e ideológicos, o centro da cidade. Onde se pensa em trabalho de forma incansável, como espécie de "ilhas de resistência" estes poetas procuram resistir de maneira artesanal ao agito empresarial do centro. A partir de uma simples tentativa de divulgação de sua poesia, no entanto, outras questões podem ser levantadas, como a dificuldade que um escritor encontra em adentrar no mercado editorial etc.

RC: No texto, você admite que chegou a sentir um certo preconceito. Isso foi quebrado ao ler o material? Como avalia a qualidade estética dele - e de outras poesias vendidas na rua que já tenha lido?

Eu: Sim, como falei, normalmente reajo mal a este tipo de abordagem. Ao ler os poemas do Alexandre, no entanto, minha intuição se mostrou verdadeira. Seus poemas, a meu ver, eram muito ruins. Todas as vezes que encontrei por acaso um poeta me oferecendo seus poemas na rua, tive uma má impressão. Não quero dizer com isso, de maneira nenhuma, que todos os poetas que se submetem à divulgação de seu trabalho nas ruas não tenham qualidade, apenas os poucos com quem travei contato não me entusiasmaram. Acho que isso se dá porque a poesia, muitas vezes, é considerada tão-somente o alinhamento de um monte de versos, quando na realidade não é isso o que ocorre. Para um poema ser bom, não basta enumerar um monte de frases uma embaixo da outra. O caráter subjetivo pertinente à poesia também é, muitas vezes, mal interpretado. Poesia é coisa muito séria e difícil. Para ser um bom poeta, é necessário estudo, dedicação, leitura, suor e uma pitada de talento.

RC: Poderia apontar as semelhanças entre eles e a geração mimeógrafo?

Eu: Na minha opinião, a maior semelhança se dá no modo de divulgação, uma espécie de Do it yourself.

RC: Nicolas Behr afirma que "a geração mimeógrafo é, antes de mais nada, uma atitude". E você falou em coragem e maluquice, no bom sentido. O que acha desse contato direto com o autor? Isso assusta os leitores, acostumados a colocar escritores no pedestal?

Eu: Acho que já existiu mais, da parte do público leitor, um "endeusamento" do autor, como se ele fosse diferenciado por ser capaz de criar novas realidades, como se estivesse em outro nível. Mas não acho que os leitores se assustam diante de um escritor, ao contrário. Cada vez mais a figura do autor vem sendo mais humanizada, deixando para trás sua mitificação. Há hoje, na Academia, inúmeros estudos acerca do "retorno do autor", que deixou de ser um "ser de papel" e assumiu contornos mais humanos. E isso é, a meu ver, muito bom. A profissão de escritor é uma profissão como qualquer outra, e a proximidade com o público é bastante salutar. Com a nossa cultura midiática, os escritores se midiatizam em programas de televisão, de rádio, em lançamentos de livro, palestras, blogs e etc. E isso os aproximam bastante de seus leitores. Há décadas atrás, havia um distanciamento muito maior entre o escritor e seus leitores, distanciamento que só se quebrava via leitura de suas obras. Hoje, alguns escritores são conhecidos por pessoas que, possivelmente, nunca leram uma página sequer sua, ou seja, conhece-se o escritor como celebridade, mas não sua literatura.

RC: Você diz, no texto, que chamar de poesia a poesia dele seria petulância, pois poesia ou poema não ganham as ruas. Considera que os artistas precisam, cada vez mais, fugir dos meios de divulgação tradicionais, no caso, o mercado editorial?

Eu: Rodrigo, aqui houve um engano. Eu também me atrevo a escrever poemas, mas não tenho nem a coragem nem a maluquice que o Alexandre teve, por exemplo. E foi me referindo aos meus textos que disse que seria petulância considerá-los poesia, não os poemas do Alexandre, talvez por excesso de modéstia, sei lá. Como eu não divulgo meus poemas como o Alexandre e tantos outros fazem, disse que os meus poemas não ganham as ruas e que, por isso, seria petulância considerar-me um poeta. Agora uma coisa é fato: é muito difícil um escritor novato, sem nenhum conhecimento dentro do mercado editorial, conseguir sua primeira publicação. Mesmo assim, acho que eles devem persistir e continuar tentando uma publicação impressa, mas, devido a esta dificuldade, novos meios de publicação vêm surgindo, como os blogs, por exemplo. A internet é um excelente refúgio para os escritores que têm o que dizer, mas não conseguem publicar por meio de alguma editora, seja de pequeno, médio ou grande porte. Cada vez mais os blogs aparecem como uma alternativa para estas pessoas. É comum também escritores profissionais, com boas tiragens, manterem seus blogs na internet. A Academia já percebeu isso e é crescente o número de estudos a este respeito, de maneira a buscar entender a literatura na era da internet. Há inúmeras questões que merecem um estudo mais sistemático a este respeito, desde questões como a subjetividade, até uma nova categorização do narrador, por exemplo.

Caso alguém se interesse pela crônica que motivou a entrevista, basta clicar aqui.