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domingo, 26 de maio de 2013

Deus, um delírio

Richard Dawkins é ateu convicto. E, naturalmente, nenhum problema há nisso. Mais do que ateu, porém, ele é um militante feroz e implacável contra toda e qualquer religião e, ipso facto, contra Deus. Na realidade, o delírio não está na crença em Deus, ou em deuses, mas, sim, na crença em qualquer fenômeno sobrenatural - e aí incluem-se Papai Noel, gnomos, fadas do dente, espíritos etc. etc. Em seu livro Deus, um delírio, Dawkins tem a pretensão confessa de converter seus leitores teístas em ateus, pois a (s) religião (ões) é (são) um mal que necessita (m) de um freio. Segundo o autor, as grandes maldades do mundo são cometidas em nome da religião. Para sustentar seu argumento, cita o prêmio Nobel Steven Weinberg, que diz que "a religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, teríamos gente boa fazendo coisas boas e gente ruim fazendo coisas ruins. Mas, para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião". Logo em seguida evoca Pascal, nessa mesma direção, que afirmou: "os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo quando o fazem por convicção religiosa". Evidentemente, a história documenta que coisas hediondas já foram e ainda são feitas em nome de Deus. Uma das razões pode ser atribuída ao monoteísmo, pois, se só há um Deus, o Deus da minha religião é o "verdadeiro", e qualquer um que professe uma fé divergente só pode ser um herege e, portanto, merece ser punido.
Para Dawkins, homem das ciências, é de certo modo fácil desconstruir a fé em um Deus sobrenatural porque todas as tentativas teológicas de provar sua existência são fracas, inconsistentes e, muitas vezes, ilógicas, paradoxais e contraditórias. Elas somente fazem sentido para quem tem fé, e fé é algo que se tem ou não. Ademais, a ciência já provou algumas coisas que, aos olhos de um religioso, são um absurdo, como por exemplo sermos fruto da evolução, e não do criacionismo. Não há o que se contestar a esse respeito, pelo menos de Darwin para cá. Por outro lado, a ciência nunca provou - e parece-me que jamais provará - a inexistência divina. 
Há, contudo, alguns senões na abordagem cientificista de Dawkins. Em primeiro lugar, ele inicia seu livro queixando-se do preconceito que os ateus sofrem apenas pelo fato de serem ateus, como se a ausência de fé ocasionasse um distúrbio moral - ou a falta de uma moral, que só poderia ser dada pela religião. Cita como exemplo a enorme dificuldade que um ateu teria para se eleger a algum cargo público. Segundo ele, seria mais fácil um homossexual ser eleito presidente dos EUA do que um ateu. E nesse ponto concordo com ele. Todavia, diferentemente dos homossexuais e das mulheres (para mencionar apenas duas lutas recentes da sociedade), que se organizaram em prol de uma liberdade, do reconhecimento pleno de seus direitos civis, sem com isso usar como arma o mesmo preconceito que os vitimizava, Richard Dawkins, ao longo de pouco mais de 500 páginas, demonstra a mesma indiferença e o mesmo descaso de que se sente vítima. Para ele, pessoas religiosas e teístas são menos favorecidas intelectualmente. A diferença residiria no fato de que o autor se vale de evidências completamente prováveis, ao passo que o religioso se vale apenas de sua fé, sem qualquer embasamento lógico e comprovável para tanto. No início do livro, ele diz que "a vida é curta demais para nos preocuparmos com a distinção entre os muitos produtos da imaginação". Ora, se Deus ou deuses são produtos da imaginação e não temos tempo a perder, por que razão escrever 500 páginas sobre isso? Poucas páginas adiante, ele desabafa: "Estou sinceramente farto de pregadores políticos em todo este país me dizendo que, como cidadão, se eu quiser ser uma pessoa moral, tenho que acreditar em A, B, C e D". Por que deveríamos, então, dizer às pessoas que elas não devem acreditar em A, B, C ou D? Porque, para o autor, a religião é um mal que precisa ser combatido.
Muita barbárie já foi cometida em nome de Deus e da religião, mas isso, a meu ver, não é problema nem da religião nem de Deus, mas sim dos homens, que utilizaram - como ainda utilizam -, em benefício próprio, a fé alheia. E eis que, nesse sentido, evidencia-se um dos problemas da abordagem de Dawkins: a ciência nos traz dia a dia muitas conquistas, é certo. Graças a ela temos conforto, bem-estar, descobrimos curas para doenças terminais e inúmeros outros benefícios. Mas não foi graças à ciência que a bomba atômica foi feita, destruindo Hiroshima e Nagasaki? O que o mundo assistiu horrorizado na Segunda Grande Guerra, nos campos de concentração alemães, não eram experimentações científicas? Os acidentes nucleares também não são, de certa forma, consequência dos avanços da ciência? Mas ninguém de bom-senso dirá que o problema é da ciência, e sim de como o homem a utiliza.
Um outro grave equívoco de Dawkins, na minha opinião, é que ele, apesar de estender sua crítica para todas as religiões, parece se concentrar apenas nas três religiões abraâmicas - judaísmo, catolicismo e islamismo. Com essa restrição, ele prende-se aos Velho e Novo Testamentos e ao Alcorão. E, para piorar, faz uma leitura literal desses livros. Não sou religioso, tampouco profundo conhecedor do tema, mas o espiritismo e as religiões afro-brasileiras não se enquadrariam no fundamentalismo que poderia advir das três religiões apontadas pelo autor. Além do mais, nem todo judeu, católico ou muçulmano leva a ferro e fogo, ao contrário do que ele acredita, o que consta nos livros sagrados. Dizer que todo muçulmano é um homem-bomba em potencial, por exemplo, incorreria na mesma falácia perigosa de qualquer generalização, como a de que todo ateu é imoral, dentre tantas outras.
Salvo engano meu, foi Rubem Alves quem disse que Deus não existe simplesmente porque a existência é uma condição humana. Se Deus é sobre-humano, Ele é - ou não - alguma outra coisa que fugiria à nossa compreensão. Dawkins, mais uma vez, equivoca-se ao humanizar Deus. Não raro, sempre que ele quer desconstruí-lo, desacreditá-lo, atribui a Deus condições humanas, de maneira a, assim, provar as suas contradições e suas idiossincrasias. Caro Richard Dawkins, não é você mesmo quem afirma não crer em nada sobre-humano? Esqueça, neste caso, seu intelecto para buscar lógica em um mundo que não é - ou não seria - físico. É apenas este mundo físico capaz de ser regido e explicado com propriedade pela ciência. Esta ocupa-se do que é natural e oferece hipóteses e teorias para o que há na Terra. Mas o que é sobrenatural é de outra ordem, não deveria inquietar tanto a um cientista, seja por indiferença, desinteresse ou inaptidão. 
A literatura - ficção por excelência - oferece-nos mundos outros muitas vezes inverossímeis se contemplados à luz da ciência. Todos sabemos ser impossível Gregor Samsa metamorfosear-se em um inseto, mas a leitura de Kafka ainda é indispensável, como tantas outras. Se Deus não "existe de fato", ainda assim passa a existir como construção discursiva e, portanto, como ficção. E que mal pode haver com as ficções? Elas são imprescindíveis para nós, que somos, em certo sentido, igualmente ficcionais. Ao aproximar Deus da literatura, Richard Dawkins fornece bons momentos em seu livro. Duas passagens são exemplares: "o principal motivo de a Bíblia ter de fazer parte de nossa educação é o fato de ela ser importante fonte de cultura literária. A mesma coisa aplica-se às lendas dos deuses gregos e romanos, e aprendemos sobre eles sem que ninguém peça que acreditemos neles". Pouco mais à frente ele diz: "Certamente a ignorância em relação à Bíblia empobreceria o apreço à literatura". Ademais, nossa cultura está repleta de signos religiosos, muitos dos quais nem sequer mais têm uma conotação realmente religiosa, stricto senso, mas já receberam um status social, como o casamento religioso, dentre outros. 
São muitas as questões apresentadas com complexidade por Richard Dawkins e seria difícil enumerar todas aqui. Mas, para finalizar, cito outra consideração, no mínimo, conflituosa de nosso autor. É com perplexidade que ele fala da educação religiosa ministrada para crianças, uma vez que elas não teriam, ainda, discernimento para seguir ou não, por sua própria vontade, a religião de seus pais. Apenas com idade suficiente para decisão de tal ordem é que se deveria falar de religião para elas. Ele se pergunta: "as próprias crianças não deveriam ter direito a uma opinião?" Mas se elas não têm condições emocionais e intelectuais para decidir crer ou não em Deus, teriam para não crer? Se Dawkins afirma que as crianças não têm maturidade para escolher, como exigir delas maturidade para opinar? Parece-me natural que os pais busquem para seus filhos o que julgam ser o melhor. Sendo este melhor uma vida religiosa, o que fazer? 
Dawkins, muito erudito, cita inúmeros autores em seu livro e demonstra possuir bastante domínio sobre o assunto de que trata. Não concordo com muitas de suas posições, mas, ainda assim, é uma leitura interessante sobre o tema, ao menos nos faz refletir bastante. De todas as citações de Dawkins, faltou uma, a de Voltaire: "Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de o dizer". Como falei anteriormente, não sou religioso, mas quem é tem o pleno direito de sê-lo, quer eu concorde com a escolha ou não. 
Finalmente, há, em nosso planeta, inúmeros problemas que merecem ser solucionados para que a humanidade prossiga de maneira a viver em harmonia. Talvez o eterno estado de alerta em que vivem os EUA, em função de relações belicosas com o mundo islâmico, e seus aliados, como a Grã-Bretanha (país natal de Dawkins), com episódios recentes de atentados que chocaram todo o mundo - a meu ver, a religião serve como uma forma de escamotear interesses escusos - tenham contribuído para a acusação da religião e de Deus como os grandes vilões a serem combatidos. Será?

terça-feira, 14 de maio de 2013

Passeando com o cão

Precisava escrever um texto para amanhã, o editor me mataria se eu descumprisse novamente o prazo. Já ouvi alguém dizer que os prazos foram feitos para serem descumpridos, mas a reincidência, no meu caso, já seria provocação demasiada. Com essa preocupação levantei-me da cama às dez da manhã. Após uma xícara de café e dois cigarros - meu desjejum habitual -, fui dar uma volta no quarteirão com o Cão, que sempre me mostra o caminho a seguir, me dá calma e direção em momentos difíceis.
Fui direto ao ponto. Não tenho ideias nem sequer assunto para mais uma crônica, estou cansado disso. Escrever antes era um prazer, agora se tornou um ofício, chato e cansativo como trabalhar em uma repartição pública. Tenho horror de compromissos, de labuta, sirvo para isso não. E mais, escrever para quem, se ninguém lê os malditos textos que escrevo! Pra que continuar insistindo nisso? Que o editor se foda!
O Cão me ouviu em silêncio, com seu habitual sorriso. Finalmente me disse que me transformaria em escritor consagrado mundialmente, com milhões de títulos publicados e traduzidos para diversos idiomas. Eu passaria a ser requisitado para dar palestras e seria premiado mundo afora. Está interessado, perguntou. Claro, respondi prontamente. Mas qual é sua condição, concluí em seguida. Tá vendo aquela mulher ali, disse o Cão aos risos. Sim. Pois case-se com ela.

A cantada ideal

Estava há alguns meses na fossa após minha separação. Foram alguns bons pares de anos casado, vivendo numa monogamia e acostumado a uma vidinha caseira. Nossos programas ou eram a dois ou eram na companhia de outros casais. Um tédio só. Sempre a mesma coisa. Mas não nego que fui feliz e que ela me fez e ainda me faz falta. Penso como ela estará agora. Me desespero ao imaginar na companhia de quem. Será que ela já arranjou alguém? Não, ela não faria isso comigo. Por que não, pergunto de mim para mim mesmo. Claro que ela está com alguém. Mulher bonita, gostosa, inteligente, independente e... desimpedida. Sou um idiota. Sofrendo esse tempo todo enquanto ela deve estar dando por aí. Feliz da vida com sua nova vidinha de solteira. Piranha, é o que ela é. 
A raiva e o despeito me motivaram. Não vou mais ficar aqui sofrendo enquanto aquela vagabunda se diverte pelos motéis da cidade. Chega de inércia. Se eu reclamava de nossas noites sempre na companhia tediosa de seus amigos ora cults ora caretas, agora seria diferente, vou sair sozinho. A noite será minha. Será? Acho que a vida de casado me desaprendeu a paquerar. Pra onde ir? O que procurar? Sexo casual? Início de um relacionamento mais sério e maduro? Somente um beijo na boca me satisfaria, convenço-me. Preciso parar de pensar e agir afinal. Preciso chutar minha baixa autoestima para longe.
Coloco no mais alto volume London Calling para tocar enquanto tomo um banho. The Clash sempre fez meu sangue ferver. Sim, agora sou outro. Destemido. Determinado. Calça jeans e camiseta, par de tênis e meu Marlboro. Não preciso de mais nada. Bato a porta de casa e fraquejo à espera do elevador. Tomo as escadas, tenho que chegar logo na rua. 
Flanando pela noite carioca, vou andando em direção à Lapa. Sim, a Lapa. Estaria fervilhando a esta hora. Entro num bar nem tão cheio nem tão vazio, ainda é cedo. Um chopp por favor. Observo as pessoas. Nada que me chamasse atenção. Não me deixo desanimar, porém. A necessidade de fumar me faz trocar de mesa e sentar numa das mesas dispostas na calçada. Ar livre. Acendo meu cigarro, recebo meu segundo chopp e eis que a vejo. Linda. De uma beleza discreta, do jeito que eu gosto. Cabelos lisos presos a um rabo de cavalo, duas argolas nas orelhas, pouca maquiagem. Sua camiseta preta oferece um decote generoso, mas nem um pouco exagerado. Calça jeans e sandálias igualmente pretas compõem seu visual. Fiquei apaixonado. E convencido dela estar esperando alguém voltar do banheiro, não poderia estar sozinha. 
Mais um cigarro e ninguém aparece. Ela já percebeu que eu a encaro ostensivamente e dá um leve sorriso. Sabe-se gostosa. E agora sei que ela está sozinha. O que dizer a ela, eis minha questão. Destreinado em matéria dessa natureza, começo a me inquietar. Seus olhares eventuais me convidam à sua mesa, mas me sinto pregado à cadeira. Preciso agir, fazer algo, dizer a primeira besteira que vier à minha cabeça, qualquer coisa. Mas que coisa? Não conseguiria me olhar no espelho novamente se não falasse com ela. Mesmo que tomasse um fora. Seria indigno de viver se voltasse pra casa sem ao menos ter tentado.
Vasculho em minha mente toda sorte de referências possíveis. Evoquei Vinícius, mas achei inconveniente para a ocasião. Ela, com seus vinte e sete anos aproximadamente, provavelmente riria de mim. Nenhuma cena de filme me acudia naquele momento. Só me vinham títulos de suspense à cabeça. E eu que sempre menosprezei as comédias românticas. A literatura! Sim, a literatura deveria fornecer minha cantada ideal, me faria conquistar aquela mulher. Esvaziei mais uma tulipa, acendi mais um cigarro e fui em sua direção. Sem pedir permissão, me sentei ao seu lado e disse, olhos nos olhos, quer me ler?

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Carta aberta para o poeta Luiz Otávio Oliani

Prezado Luiz Otávio,

acabei de ler seu terceiro livro de poesias A eternidade dos dias e fiquei muito bem impressionado, não podendo me furtar do desejo de lhe escrever. Este blog serve-me, dentre outras coisas, para eu resenhar livros lidos e apreciados, servindo-me também como uma maneira de exercitar minha escrita e de me disciplinar. A ideia da carta nasceu ao ler a fortuna crítica que você elencou ao final do livro, com comentários mais do que elogiosos de escritores já consagrados sobre seus dois primeiros livros - que infelizmente ainda não tive o prazer de ler. Mas pelo que li nesta sua obra, acredito que tal fortuna crítica, apesar de bastante estimulante e incentivadora para você, é desnecessária, pois suas poesias se bastam, elas são. Em entrevista recente que dei para a revista A Cadeira, da Academia Niteroiense de Letras, a ser publicada em julho próximo, me foi perguntado se a vida urbana seria a matéria-prima para os meus escritos, em especial para os poemas de Pretérito Imperfeito, recém-lançado pela Multifoco. Acredito que a matéria-prima para qualquer escritor é a língua, a imaginação, a capacidade de reinvenção, de maneira a não limitar sua criação. E foi exatamente isso, Luiz Otávio, que vi neste seu livro. 
Seus poemas causaram-me profunda admiração pela sua capacidade de se alimentar de palavras e, assim, alimentar igualmente seus leitores, afinal, "o poema também alimenta". Ao ler "Posologia para um poema", lembrei-me de Wanderlino Teixeira Leite Netto, a meu ver um dos maiores nomes da poesia contemporânea. Sei, querido Luiz Otávio, que não sou e jamais serei um escritor consagrado, mas é esta aproximação com a poesia de Wanderlino o maior elogio que eu poderia lhe fazer. 
O seu trabalho com a palavra pareceu-me ímpar e obstinado, uma vez que você faz isso com uma concisão cirúrgica, pois "ao corte/ das nervuras/ o poema/ em seu hábitat" está. Poemas enxutos, sem nervuras desnecessárias, aproximam o operário do poeta, pois "se um usa espaçador de piso/ espátula roldana/ o outro opera em silêncio/ na construção do poema". E o silêncio que há em seus versos - o seu não-dito - também é poesia, também é a sua "Fala".
Sabe, Luiz Otávio, sempre tive um imenso pudor em publicar meus poemas, talvez por excessiva autocrítica, pois me parecia demasiada arbitrariedade me autointitular poeta. Como eu poderia ser poeta, pensava eu, se poetas são Bandeira, Drummond, João Cabral, Rimbaud, Baudelaire, etc. e, entre os contemporâneos, Wanderlino Teixeira Leite Netto, Lena Jesus Ponte, Leila Mícollis, Chacal e tantos outros? A esta lista interminável de Poetas incluo você agora, meu amigo. E agradeço a leitura, o prazer e o aprendizado que ela me trouxe. 
Sabe, a prosa e a poesia contemporâneas possuem uma gama vasta de estilos e direções, o que é muito salutar. Ter essa consciência me é importante porque posso acreditar que, apesar de ser privado de talento poético, posso continuar escrevendo, mesmo porque não poderia deixar de fazê-lo. 
E é isso que publicamente peço a você - continue com sua poética, ela é linda! Que você continue se alimentando e nos alimentando de palavras, pois a "Colheita" é certa e madura e "a poesia pede passagem".
Para finalizar, Luiz Otávio, humildemente percebi certa afinidade temática entre nossas poesias. O grande e querido amigo e ensaísta Leonardo Davino certa vez me falou que sentiu certas reincidências em meus poemas, como "escrever sobre o ato de escrever", tema que sempre me inquietou. Percebi isso em seu livro e, para regozijar-me um pouco, termino essa nossa conversa com essa aproximação que, para mim, é extremamente honrosa. 

Cordial e poeticamente,

Bruno Lima

terça-feira, 7 de maio de 2013

Defunto autor

Era realmente imponente. Bonito. Feito de madeira de pinus. Coisa de qualidade. Aos preocupados com o desmatamento e toda a baboseira desse mundo politicamente correto que ora deixo, asseguro-lhes que se tratava de árvore de reflorestamento. Não acabemos com a vida, não é mesmo? Em toda a minha existência nunca estive em local tão confortável. Parecia feito sob medida. À minha espera. Só poderia ser meu. Seus dois metros de comprimento eram mais do que suficientes para meu corpo, e ainda sobraria espaço caso desejasse me espreguiçar, vai saber! Sempre muito expansivo, preocupei-me na verdade com os sessenta centímetros de largura e com os trinta e cinco de altura. Seria penoso mudar de posição. Em minha antiga cama, minha mulher sempre se queixava do meu sono inquieto. Agora ela teria bastante espaço, pelo menos até outro vir ocupar o meu lugar ao seu lado. Não me importo mais a essa altura dos acontecimentos. Por dentro, ele era bastante acolchoado. Cetim branco e rendas douradas forravam seu interior. Um luxo só, desnecessário para um homem que, em vida, comeu o pão que o diabo amassou. Ironias do além. Deram-me também um travesseiro pequeno, mas igualmente confortável, bastante fofo. Um mimo. Não gostei da tampa. Havia nela um crucifixo, detalhe inútil para mim, que nunca fui chegado a religiões. Tiraria enfim a prova dos nove e agora veria se Ele realmente existe. Se sim, diria poucas e boas para o Criador. Se não, abraçaria o silêncio. Em cada lateral, três alças douradas. Haveria ao menos seis amigos para me levar ao meu túmulo? Desgostei quando me ornamentaram com um mundo de flores brancas, mas me diverti com a ideia de espirrar e bagunçar toda aquela ornamentação. Sem falar no susto que daria nos viventes. A tampa enfim foi fechada e encerrou meus pensamentos traquinas. Não ouvi mais a ladainha. O silêncio me abraçou.