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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Esse tal de fim de mundo

Lembro vagamente de ter me acabado no dia anterior. Precisava enfim me despedir dos meus. Me despedir da vida. Deitei e dormi profundamente, como há muito não dormia. Acho que dormi uma eternidade. Não lembro de sonho algum. Abri um olho. Depois outro. Nenhum barulho de crianças. Não ouvi nenhum tipo de som. Eu estava envolto pelo mais absoluto silêncio. Respirei fundo. Me espreguicei com um leve sorriso nos lábios. Finalmente, após uma vida penando e expiando neste planeta, teria chegado ao paraíso. Resolvi levantar. E como a rotina é um vício, fui à cozinha preparar meu café. Um café preto, apenas, é o que me apetece nas minhas manhãs. Enquanto a água fervia, me perguntei onde estaria o espírito evoluído que deveria me receber e me explicar como funciona o outro mundo e me parabenizar pelo meu desempenho enquanto encarnado. Havia finalmente chegado o dia D. Eu desencarnara como toda a humanidade e iria de uma vez por todas pôr à prova as lições umbandistas. Que fosse meu anjo da guarda, alguém, sei lá. Na falta de companhia, dei de ombros, tomei meu café e acendi um cigarro, sentado à mesa da cozinha, com a sensação de dever cumprido. Ainda não ouvira nenhum barulho. Talvez os anjos tivessem organizado uma festa surpresa para um espírito evoluído como eu ou, o mais plausível, é que estivessem atarefados cuidando daqueles mais necessitados. No banho frio, já livre das irradiações de Morfeu, comecei a sofrer influências de São Tomé e pela primeira vez, apesar de todo silêncio que reinava ao meu redor, achei estranho esse tal de fim do mundo. Tudo bem, estava tudo muito quieto e eu sentia uma paz incrível, mas, por outro lado, o café e o cigarro eram indícios de um fim do mundo ainda não muito santificado, bastante terreno e apegado à matéria. E por que diabos o outro mundo era tão igual a minha casa de espírito encarnado? Será que era isso? A paz de que eu sentia tanta falta em um apartamento superpovoado por mulheres viria agora com todo o espaço apenas para mim? Viveria sozinho, sem a bagunça das crianças e as chatices da vida responsável e careta de um homem casado e chefe de família? A rotina finalmente desapareceria? As contas continuariam a chegar? Nessa hora eu ri. Certamente com as contas eu não precisaria me preocupar, o mundo acabou. Os Maias não errariam sua previsão. A não ser que eu estivesse, sem dúvida, no inferno. Me impacientei. Cadê o meu amigo espiritual que deveria me receber? Ou eu estaria num lugar menos favorecido, entregue a minha própria sorte? O calor insuportável me remeteu ao inferno. E, convenhamos, era mais verossímil eu ir para o inferno do que para o céu. Sem falar que devia ser mais animado também, vai saber. Rever toda sorte de pulhas com quem convivi nos meus 38 anos de vida antes do fim do mundo. Saí do banho frio com a pulga atrás da orelha sem saber o que queria. Céu ou inferno. Santidade ou expiação. Característica, aliás, que me acompanhou a vida inteira. Ambivalência foi a última palavra que a minha terapeuta me disse em minha última sessão. Finalmente saí do banho e já suava num calor horrível. Estava no inferno, não restavam dúvidas. Mais um cigarro para arrumar os pensamentos. E entre uma tragada e outra, vi um papel sobre a mesa da sala. Parecia um recado. "Estou com as crianças na praia. Não houve Cristo que te acordasse. Lugar de sempre. Vê se não demora. Beijos, Mô". Olhei pela primeira vez pela janela e vi gente. Mandei Morfeu, São Tomé, Anjo da Guarda, santos e diabos e, principalmente, os Maias para a puta que os pariu e fui me entregar a Iemanjá.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Entrevista

No dia 19 de julho de 2011, eu postei aqui uma croniquinha bem despretensiosa sobre um encontro casual que eu tive com um poeta no centro do Rio. Quase nove meses depois, em abril deste ano, recebi um e-mail inesperado de um repórter do Jornal O Dia, Rodrigo Cabral, me convidando para uma entrevista motivada pela tal crônica, intitulada Poesia Marginal. Segundo o repórter, meu texto veio a calhar porque ele estava organizando uma matéria sobre pessoas que vendem poesia nas ruas e queria, a partir dele, me fazer umas perguntas. É claro que prontamente aceitei e respondi as perguntas por e-mail. Como até hoje não obtive nenhuma notícia sobre sua publicação, resolvi postar aqui a entrevista. Relendo hoje minhas respostas, deduzi o porquê da não publicação, mas, em todo caso, vamos a ela.

Rodrigo Cabral: Bom, primeiro gostaria que você contasse um pouco mais sobre esse seu primeiro contato com o poeta no centro do Rio... O que acha de haver pessoas vendendo poesia dentro de toda essa agitação do centro?

Eu: O meu contato com o Alexandre foi totalmente casual. Eu fui ao centro da cidade resolver um assunto particular e, quando voltava, em frente ao Odeon, ele me abordou. Acho que ele veio até mim porque eu estava parado em frente ao cinema, que é um local de tradição no Rio de Janeiro ligado à cultura. Neste dia, particularmente, eu estava de muito bom humor e, por isso, me permiti conversar um pouco com ele sobre a sua poesia. Por um lado, tenho certa reticência com pessoas que vendem seus poemas nas ruas, por considerar que, via de regra, os poemas, esteticamente, são muito pobres; mas por outro, sob certo ponto de vista, é interessante que estes poetas saiam às ruas para vender seus trabalhos, de maneira a encontrarem leitores para textos que, de outro modo, permaneceriam guardados e inéditos em alguma gaveta. É interessante pensar também que uma pessoa que se dispõe a vender poesia no centro da cidade - reconhecidamente um local de grande agito, de negócios e de dinheiro - vai justamente na contramão do que representa, em termos financeiros e ideológicos, o centro da cidade. Onde se pensa em trabalho de forma incansável, como espécie de "ilhas de resistência" estes poetas procuram resistir de maneira artesanal ao agito empresarial do centro. A partir de uma simples tentativa de divulgação de sua poesia, no entanto, outras questões podem ser levantadas, como a dificuldade que um escritor encontra em adentrar no mercado editorial etc.

RC: No texto, você admite que chegou a sentir um certo preconceito. Isso foi quebrado ao ler o material? Como avalia a qualidade estética dele - e de outras poesias vendidas na rua que já tenha lido?

Eu: Sim, como falei, normalmente reajo mal a este tipo de abordagem. Ao ler os poemas do Alexandre, no entanto, minha intuição se mostrou verdadeira. Seus poemas, a meu ver, eram muito ruins. Todas as vezes que encontrei por acaso um poeta me oferecendo seus poemas na rua, tive uma má impressão. Não quero dizer com isso, de maneira nenhuma, que todos os poetas que se submetem à divulgação de seu trabalho nas ruas não tenham qualidade, apenas os poucos com quem travei contato não me entusiasmaram. Acho que isso se dá porque a poesia, muitas vezes, é considerada tão-somente o alinhamento de um monte de versos, quando na realidade não é isso o que ocorre. Para um poema ser bom, não basta enumerar um monte de frases uma embaixo da outra. O caráter subjetivo pertinente à poesia também é, muitas vezes, mal interpretado. Poesia é coisa muito séria e difícil. Para ser um bom poeta, é necessário estudo, dedicação, leitura, suor e uma pitada de talento.

RC: Poderia apontar as semelhanças entre eles e a geração mimeógrafo?

Eu: Na minha opinião, a maior semelhança se dá no modo de divulgação, uma espécie de Do it yourself.

RC: Nicolas Behr afirma que "a geração mimeógrafo é, antes de mais nada, uma atitude". E você falou em coragem e maluquice, no bom sentido. O que acha desse contato direto com o autor? Isso assusta os leitores, acostumados a colocar escritores no pedestal?

Eu: Acho que já existiu mais, da parte do público leitor, um "endeusamento" do autor, como se ele fosse diferenciado por ser capaz de criar novas realidades, como se estivesse em outro nível. Mas não acho que os leitores se assustam diante de um escritor, ao contrário. Cada vez mais a figura do autor vem sendo mais humanizada, deixando para trás sua mitificação. Há hoje, na Academia, inúmeros estudos acerca do "retorno do autor", que deixou de ser um "ser de papel" e assumiu contornos mais humanos. E isso é, a meu ver, muito bom. A profissão de escritor é uma profissão como qualquer outra, e a proximidade com o público é bastante salutar. Com a nossa cultura midiática, os escritores se midiatizam em programas de televisão, de rádio, em lançamentos de livro, palestras, blogs e etc. E isso os aproximam bastante de seus leitores. Há décadas atrás, havia um distanciamento muito maior entre o escritor e seus leitores, distanciamento que só se quebrava via leitura de suas obras. Hoje, alguns escritores são conhecidos por pessoas que, possivelmente, nunca leram uma página sequer sua, ou seja, conhece-se o escritor como celebridade, mas não sua literatura.

RC: Você diz, no texto, que chamar de poesia a poesia dele seria petulância, pois poesia ou poema não ganham as ruas. Considera que os artistas precisam, cada vez mais, fugir dos meios de divulgação tradicionais, no caso, o mercado editorial?

Eu: Rodrigo, aqui houve um engano. Eu também me atrevo a escrever poemas, mas não tenho nem a coragem nem a maluquice que o Alexandre teve, por exemplo. E foi me referindo aos meus textos que disse que seria petulância considerá-los poesia, não os poemas do Alexandre, talvez por excesso de modéstia, sei lá. Como eu não divulgo meus poemas como o Alexandre e tantos outros fazem, disse que os meus poemas não ganham as ruas e que, por isso, seria petulância considerar-me um poeta. Agora uma coisa é fato: é muito difícil um escritor novato, sem nenhum conhecimento dentro do mercado editorial, conseguir sua primeira publicação. Mesmo assim, acho que eles devem persistir e continuar tentando uma publicação impressa, mas, devido a esta dificuldade, novos meios de publicação vêm surgindo, como os blogs, por exemplo. A internet é um excelente refúgio para os escritores que têm o que dizer, mas não conseguem publicar por meio de alguma editora, seja de pequeno, médio ou grande porte. Cada vez mais os blogs aparecem como uma alternativa para estas pessoas. É comum também escritores profissionais, com boas tiragens, manterem seus blogs na internet. A Academia já percebeu isso e é crescente o número de estudos a este respeito, de maneira a buscar entender a literatura na era da internet. Há inúmeras questões que merecem um estudo mais sistemático a este respeito, desde questões como a subjetividade, até uma nova categorização do narrador, por exemplo.

Caso alguém se interesse pela crônica que motivou a entrevista, basta clicar aqui.

sábado, 20 de outubro de 2012

Considerações sobre a crítica no mundo digital

Entre os dias 16 e 19 de outubro, foram realizadas quatro mesas de debate na Caixa Cultural sobre os novos rumos da crítica cultural em tempos de internet. Com a provocação "Qual o papel da crítica cultural quando a internet dá a todo mundo direito de opinião?", o seminário Crítica da crítica: expansões e limites do pensamento 2.0 reuniu nomes conhecidos em quatro áreas específicas: música, artes visuais, cinema e literatura. Já que tenho um blog e portanto também posso dar a minha opinião, deixo aqui alguns comentários (im)pertinentes sobre o tema.
De início, impliquei de imediato com a questão central do seminário. Opinião e crítica não são sinônimos, portanto não entendi muito bem o que teria a ver o fato de muitas pessoas poderem publicar na internet suas opiniões sobre os mais variados temas com a nova função que a crítica desempenharia a partir disso. A crítica, a meu ver, deveria fazer o que sempre fez, isto é, a construção de um texto outro a partir de uma obra artística apontando novas possibilidades e direções. Em outras palavras, a crítica teria como uma de suas funções esmiuçar o objeto analisado de modo a construir uma nova obra, de aporte mais teórico-filosófico, capaz de lançar novas luzes sobre a arte. Não se trata, em absoluto, de uma análise mercadológica de modo a orientar o leitor se ele deve ou não consumir o alvo da crítica, ou seja, um texto que se limita a explicar porque o consumidor deve ou não assistir a um filme - se o bonequinho está dormindo ou aplaudindo, por exemplo - não é, a meu ver, um texto crítico, mas sim, quando muito, um texto tendencioso com finalidades outras, enfim, uma opinião, menos um texto crítico - a crítica não é julgadora, não compete a ela dizer se a obra é boa ou não.
Tenho consciência que essa "confusão" se dá porque o espaço destinado à crítica em jornais e periódicos acaba inibindo os limites entre uma resenha, uma crônica e uma crítica propriamente dita. É como se houvesse uma hibridização desta última, mais acentuada quando ela sai da publicação impressa e ganha o espaço virtual. Neste, os blogs, que geralmente mesclam as informações textuais com o empirismo do blogueiro, numa espécie de invenção de si, de exercício autoficcional, colaboram para misturar e condensar opinião, vida empírica, resenha, crônica e comentários críticos sem o devido aprofundamento por falta de espaço. Se por um lado torna-se mais difícil o surgimento de textos críticos na internet (e também em jornais), por outro o espaço virtual oferece uma altenativa criativa para quem quer se expressar e registrar a sua opinião. A efervescência e a democratização de blogs dos mais variados tipos e conteúdos colaboram para descentralizar a legitimidade outrora conferida apenas aos críticos dos grandes veículos midiáticos, espécies de donos da razão sobre seus campos de atuação. E penso que isso é bastante saudável. Lembremos que Benjamin já profetizava que na era da informação leitores também seriam autores.
Talvez a crescente publicação em blogs esteja demarcando um novo tipo de fazer crítico, mas ainda fico um tanto cauteloso em afirmar ser este um novo espaço para a crítica; isto porque ela é um texto complexo, incapaz de ser veiculada em textos curtos e rasteiros. Por outro lado, e isso é uma opinião minha, de um leitor acostumado e amante de livros, a leitura de textos extensos em blogs é desagradável e desestimulante, indiciando a dificuldade de textos mais complexos e elaborados na internet.
Ainda sinto-me reticente em concordar que os blogs são sim um espaço de prática crítica, mas, por outro lado, concordo facilmente que eles já são utilizados como novo espaço de labor literário. Se é possível que a literatura hoje sofra certas adequações devido ao meio em que ela é produzida, como, por exemplo, uma nova tipologia de narrador presente nos blogs, seria possível também concordar que a crítica também sofre as mesmas adequações? Se sim, talvez seja mais apropriado dizer que a crítica, mutatis mudandis, é outra coisa e, redefinindo-a, a acolhemo-na no espaço virtual.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Redenção

Quando criança sonhava em ser astronauta, ou piloto de Fórmula 1. Queria ser diferente, fazer alguma coisa que me distinguisse dos demais, ser manchete, reconhecido, invejado. Não podia me imaginar trabalhando num escritório qualquer, sem nenhuma emoção, vítima da mesmice do cotidiano. Não, eu seria diferente. Ou astronauta ou piloto de Fórmula 1.
Nada melhor para mim, que vivia com a cabeça no mundo da lua, do que fazer disso minha profissão. Sair da órbita terrestre, passar pela Lua, conhecer galáxias distantes e, quando voltar, ter aos meus pés todas as mulheres que eu quisesse. Do espaço, veria a Terra pequenininha, um ponto azul lindo e distante, capaz de caber no meu bolso. Sim, eu teria muito o que viver, inúmeras realizações, uma vida repleta de sucesso. Um planeta só seria pouco para mim.
Mas, não fosse isso, meu plano B estava assegurado. Viveria a 300km/h, sem tempo a perder, a cada semana em uma pista diferente. Após alguns poucos anos, certamente me transformaria no ídolo de milhões de pessoas, estaria em todos os lugares, em programas de televisão, outdoors, capas de revistas. Teria produtos com meu nome, com meu rosto na embalagem, seria exemplo para as crianças, e viveria a mil por hora, mesmo fora das pistas. Quando criança, sempre soube que havia muito o que fazer e que as minhas 24 horas diárias não seriam suficientes para todos os meus anseios. Pressa, eu tinha pressa para o sucesso, para viver a vida, para ser feliz, reconhecido e bem-sucedido.
À medida que eu fui crescendo, porém, minhas ambições infantis cederam espaço para metas mais plausíveis, realistas e comuns. Já não desejava conhecer o universo, tampouco correr num carro para atingir a fama e o estrelato. Viveria, agora, feliz com alguma profissão que me propiciasse uma boa qualidade de vida, que me permitisse algumas excentricidades, como viajar pelo mundo, pular de paraquedas, descer numa jaula submarina para ver, frente a frente, o grande tubarão branco, praticar esportes radicais – e sim, ter muitas mulheres. Poderia ser talvez um publicitário, roteirista ou quem sabe cineasta.
Mamãe me dizia que eu podia ser o que eu quisesse, que eu era um jovem talentoso, bom aluno, escrevia ótimas redações, que a Rede Globo me pagaria o que eu pedisse para me ter como um de seus redatores. Mamãe me dizia, enfim, que eu podia continuar sonhando, pois um dia meus sonhos se transformariam em realidade. Nesse caso, não tinha erro. Bastava aguardar e esperar a vida acontecer, tudo não passava de uma questão de tempo. E enquanto aguardava, enquanto esperava o início de meu final feliz, ia vivendo a vida sem grandes sobressaltos, sem preocupações, certo de que o meu destino estava traçado.
Mas o tempo passou e parece que mamãe se enganou. Não me tornei publicitário, cineasta, tampouco redator de televisão. O que mais me aproxima das minhas expectativas profissionais é a manutenção de um blog na internet onde posto, regularmente, algumas impressões de meu dia a dia. Desiludido, escrevo comentários sarcásticos sobre tudo aquilo que a vida me negou. Não poupo nada nem ninguém. Nem mesmo meus (poucos) leitores, meia dúzia de quatro ou cinco fiéis seguidores. Às vezes, até publico alguma coisa mais lírica, a depender de meu humor. E assim vou vivendo no meu conjugado aqui na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Sem dinheiro, sem mulheres, sem aventuras.
O alvo predileto de minhas críticas internáuticas é o número elevado de pessoas que acreditam na profecia de que a Terra vai acabar em 2012. Como assim? Quer dizer que a vida se extinguirá, que todos sucumbiremos, que não mais haverá amanhã? Idiotice, pensava eu. Agora, porém, acho que posso confessar que minha implicância com os crédulos do fim do mundo se dava justamente porque a minha vida de glórias nunca começou, que dirá terminar. Como posso encerrar minha existência se eu simplesmente não iniciei nada. Não tive filhos, não plantei uma árvore e muito menos escrevi um livro. Quer dizer que a minha existência foi completamente infrutífera?! Não realizei nenhum dos meus sonhos, não comi nem a metade das mulheres que eu desejei, não tive sucesso, dinheiro, status. Mas parece que agora sim eu vou para o espaço, a minha hora chegou. Inexoravelmente.
Sim, o mundo vai acabar. Hoje. Na verdade já começou o fim, resta-me apenas esperar que a onda gigante que começou a destruir tudo no Japão e na Oceania atinja o Brasil e o resto do mundo. Lá fora, ouço as buzinas, os gritos, o desespero. Muitos pretendem subir a serra para se refugiar da fúria advinda do oceano, mas a angústia da população só tornará o fim mais agônico. A televisão, que vai segundo a segundo noticiando o fim ao vivo, foi devidamente desligada. Aguardo a minha hora com resignação. Até com uma inesperada paz. Ao meu lado, meu Marlboro, minha cerveja e meu desejo de deixar alguma coisa para a posteridade, para tornar menos vazia minha passagem pelo planeta. Cheguei a me perguntar, entre uma tragada e outra, que diferença isso faz agora, no meu último dia de vida. E a resposta que me dei é que possuo a última oportunidade de fazer alguma coisa que valha a pena; que posso me redimir de mim mesmo enquanto espero a onda avassaladora chegar e me engolir; que posso fazer a cesta de três pontos no último segundo da final das Olimpíadas que não se realizarão.
Não deixarei minha última oportunidade escapar. Sentado diante de meu laptop, escrevo um conto autobiográfico que dará conta do que eu (não) fui em 37 anos de vida. Afinal, quem sabe se um único casal conseguirá resistir à fúria da natureza e repovoará o mundo, como um dia fizeram Adão e Eva? Ou se, num futuro distante, uma nave interplanetária não aterrissa aqui numa missão exploratória e descobre que um de seus nativos, depois de sonhar em conquistar o espaço, se conforta em deixar um conto que valha a pena ser lido?
Na verdade, mais do que tudo isso, o que me motiva a escrever este conto não são meus futuros leitores alienígenas, muito menos uma raça mutante oriunda da maior e última hecatombe da humanidade que poderá vir a descobrir a subjetividade de um de seus ancestrais, mas um acerto de contas comigo mesmo. Eu, que vivi de maneira inútil e desapercebida; que nada deixei de legado para as possíveis futuras gerações; que estive longe de meus planos mais sinceros, puros e imaculados; eu, para não morrer como um cão, no meu Processo; para fugir do nada da morte apregoada por Sartre, venho aqui não para escrever um conto, mas fazer uma reparação comigo mesmo. Este conto, escrito a poucos minutos de meu fim, será minha redenção. Poderei, depois do ponto final, partir em paz. Mamãe me dizia que eu poderia ser o que eu quisesse. Tudo o que eu quero agora é concluir este texto. Engenheiro das obras inacabadas, me dou agora a oportunidade de finalizar alguma coisa digna de nota. Ou que pelo menos mereça ser lida por alguém – se alguém houver para lê-la.
Vou me lembrando de todos os livros que comecei e não terminei de ler, mais preocupado que estava em curtir a vida e, por isso mesmo, não me dando conta de que as coisas que realmente valem a pena não são fugazes, mas perpassam gerações. É isso! A literatura é algo que desde Homero permanece, sejam as epopeias clássicas, os poemas líricos ou os romances burgueses. Uma vez escrito e registrado, o texto não é mais do autor, é da humanidade, da posteridade. Finalmente, à espera de meu fim iminente, percebo que o que sempre almejei esteve dentro de mim. Que importância teriam hoje os produtos com meu nome e rosto? Alguém se lembraria de um astronauta tupiniquim, que teria vivido provavelmente nos Estados Unidos, longe de sua terra e de sua gente? As inúmeras mulheres com quem teria dividido minha cama chorariam a minha morte? Certamente não. Mas este conto me redime. Com ele transcendo e alcanço a imortalidade. Agora autor, coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou mais um Zé Ninguém. Agora, eu escrevo porque preciso, como sempre ouvi os escritores de verdade dizerem. Há em mim uma necessidade de me expressar, de externar meus sentimentos, de não permitir que a minha vida se finde junto com o meu corpo, condenado à espera da onda gigante.
Vou morrer em breve. A internet continua, segundo a segundo, atualizando a população sobre o avanço incontido da onda. Ilhas e mais ilhas do pacífico desapareceram. Falta muito pouco. E mal comecei a escrever. Mamãe sempre se orgulhava das minhas redações, mas agora não consigo progredir, não consigo escrever sobre minhas realizações. E me dou conta de que não as tive. Vivo solitário num bairro superpovoado, mas sem nenhum amigo, com mulheres fáceis que ocasionalmente aceitam vir ao meu apartamento.
Uma vez quase me casei. Ela era uma mulher bonita, interessante, mas muito pragmática e responsável. Se cansou do meu jeito doidivanas, desleixado e irresponsável. Disse-me que iria em busca de um futuro estável, com alguém disposto a crescer em sua companhia. Nunca mais a vi. Preferi ficar em casa e sofrer em silêncio, ou melhor, optei por anestesiar minha dor e solidão com sexo fácil, comprimidos e minha cerveja, companheira inseparável. Hoje ela deve ser uma mulher de sucesso, casada quiçá com um advogado ou médico, e deve ter uma prole linda e comportada, autêntica família Doriana. Que se dane, todos vão morrer igualmente, e, provavelmente, sem um conto a ficar para a posteridade. Eu posso ser um louco solitário e irresponsável, com pouco mais na geladeira do que água, mas sou um autor, deixarei um legado, ainda que inédito. Ainda que apenas literatura.
As Cordilheiras dos Andes agora estão completamente submersas, vejo na internet. Falta muito pouco, enfim. Recordo-me, com um sorriso irônico, que sempre acreditei que o mundo acabaria com as águas. Mas achava que isso aconteceria na virada do milênio. Justificava-me dizendo que sempre que o mundo acabava era desse jeito: lembrava-me da Arca de Noé, das Metamorfoses, de Atlândida, o continente perdido. Com o aquecimento global e o derretimento das geleiras polares, nada mais convincente para a minha crença no fim do mundo que ele se desse no oceano. Mas jamais previ que uma onda gigante, sem precedentes na história, ocasionada por um meteoro que caiu no oceano, fosse nos sepultar. Sinto-me agora como um pirata morto no navio, atirado ao mar para o eterno descanso.
Mas de que vou descansar? Deste texto. Ele não é fruto de inspiração, jamais a tive. Só eu sei o esforço que é concluir uma frase, quantos cigarros são fumados antes de finalizar um parágrafo. Não podia ser diferente. É justo que a obra da minha vida demande tempo e esforço. Só assim me sentirei realizado. Sempre busquei as coisas mais fáceis, nunca gostei de trabalho, de tarefas, de responsabilidades. Agora, à espera do fim próximo, me dou pela primeira e última vez um trabalho dignificante. E até que estou gostando da experiência. Se pudesse voltar atrás, muitas coisas faria diferente em minha vida. Acho que é este o sentimento que ouvia no catecismo que os bons católicos devem nutrir na hora da morte – o arrependimento. Mas não é exatamente arrependimento o que sinto, mas um vazio indelével, eloquente mesmo. Talvez preenchido quando der o ponto final, a conclusão, pela primeira vez na minha vida, de alguma coisa.
Acendo mais um cigarro e abro a última cerveja da geladeira, a derradeira de minha existência. Lá fora, pânico, gritos, sirenes, buzinas, estrondos. Aqui dentro, uma paz indefectível. E a certeza de que estou próximo do ponto fin

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Crônica de um pai de terceira viagem - Epílogo

Anteontem minha pequenininha completou um mês. E um filminho passou pela minha cabeça. Revisualizei as quase 40 semanas de convívio insandecido com a mãe, grávida louca e perigosa; rememorei todas as vezes em que pensei em sair para comprar cigarro e nunca mais voltar; emocionei-me ao lembrar das minhas duas princesinhas mais velhas fazendo perguntas e planos sobre o bebê que iria chegar; e, naturalmente, revivi de alguma maneira a hora do parto.
Sim, eu dessa vez estive lá. Não pude assistir ao parto das mais velhas, mas deste eu participei, vi aquela coisinha miudinha sair de dentro da barriga da mãe e começar a chorar. Tirei fotos. Acompanhei a neopediatra ao berçário, vi minha filha sendo pesada, medida, limpa e arrumada. E simplesmente fiquei lá, de pé, ao lado da encubadora, olhando e amando aquele serzinho tão lindo e tão frágil. Passaria o restante da madrugada ali, mas fui convidado a me retirar.
E foi então que, já fumando em frente à maternidade, me lembrei de agradecer. Não sei bem a quem - Deus quiçá -, mas por quê. Agradeci e chorei muito por ser pai de mais uma princesinha, que certamente vai me encher de preocupação, vai me desobedecer, vai fazer bagunça, me levará, em conjunto com as irmãs, às raias da loucura, enfim, vai ser criança. Mas tenho a mais absoluta convicção de que vai valer a pena. Como tem valido a pena há oito anos, quando a mais velha nasceu. Nunca imaginei que uma coisa tão difícil quanto é ser pai pode ser, ao mesmo tempo, tão gratificante.
Quando amanheceu, pude pegá-la no colo, dar-lhe as boas-vindas e fazer o que me cabia - ficar babando. Só faço filha linda!
Não poderia finalizar estas crônicas de um pai de terceira viagem sem falar do principal, sem dar à luz a estrela do espetáculo, por isso este epílogo. E para encerrar de uma maneira mais lírica e paternal, não vou nem mencionar as loucuras de minha mulher a caminho da maternidade, mas que testemunhei quanto amor aquela louca de momentos antes tinha e tem para dar.
Finalmente, posso garantir que tenho um lugar reservado no céu, se ele realmente existir. E afianço que é ao lado direito de Deus - se Ele também existir. Afinal, não bastasse ser pai de três meninas lindas, a mãe...

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Crônica de um pai de terceira viagem - Final

39 semanas. Aguardo minha mais nova princesinha nascer a 39 semanas. Fazendo as contas, são 273 dias. Durante esse tempo, senti um monte de coisas esquisitas, que nós homens não costumamos sentir. Por exemplo, sinto vontade de fazer xixi o tempo todo, choro emocionado com comerciais de tevê, tenho oscilações de humor. A mãe, obviamente, acha que eu debocho dela, que na verdade não sinto nada dessas coisas. Não queria sentir, honestamente, mas ou sou demasiado sensível, ou Deus se diverte às minhas custas. Ou as duas coisas. Às acusações de deboche, tenho ao meu lado e em minha defesa a psicologia, que assegura ser "cada vez mais frequente, segundo especialistas, que homens também se sintam 'grávidos' enquanto se prepararam para a chegada do bebê". Mas há uma diferença essencial entre a "minha gestação" e a da minha mulher: eu mantive a sanidade. Quer dizer, venho tentando, já que ela, por estar louca, tenta me enlouquecer também.
Não vou mais enumerar suas sandices porque, além de querer preservar-me emocionalmente são, desejo que minha integridade física permaneça intacta. Mas tenho uma teoria. Pois é, sou dado a teorias. Eis o que, depois de muita reflexão, descobri: a mulher (vou generalizar por questão de segurança) quer a exclusividade sobre qualquer coisa relacionada à gravidez por egoísmo. Ela não admite que um homem também apresente sintomas que deveriam ser só delas. Talvez elas fiquem com a pior parte, pois elas têm o corpo alterado, possuem hormônios esquisitíssimos, amamentarão e, ainda, sentirão as dores do parto. Nunca pari e jamais parirei. Desconheço essa dor. Mas como se costuma dizer, Deus é sábio e, em sua infinita sabedoria, arrumou um jeito de equilibrar as contas: durante nove meses os homens sofrerão - eu sofri, juro - toda sorte de loucura de suas respectivas mulheres. E aí, querido leitor, está a maior de todas as injustiças. Digamos que a dor do parto demore, sei lá, algumas poucas horas. Isso se não for uma cesariana, na qual a mulher não sentirá lá muita coisa. Mas agora calcule o número de horas contidas em nove meses. Não perca seu tempo, já fiz a conta e é de aproximadamente 6.480 horas. Ora, convenhamos. Quem sofre mais durante uma gestação? A essa pergunta prefiro não responder diretamente, pois vai que ela lê isso aqui e me atinja com uma frigideira ou...
Se o assunto é injustiça, o argumento da mãe de minhas princesinhas é de que a minha contribuição na gravidez foi de apenas uma gota. Na primeira vez que ela me disse isso, respondi ironicamente que não tenho culpa de ser mais evoluído, pois posso gerar uma vida apenas com uma gota, sem a qual, aliás, nada acontece. Isso me rendeu uma semana comendo macarrão com salsicha. Tudo bem, ossos do ofício.
Sei que sempre vivemos em uma sociedade patriarcal, em que as mulheres eram submissas e não tinham lá muitos direitos. Um absurdo, concordo. Mas o fato delas estarem conquistando, dia a dia, mais espaço - hoje o mundo já é delas, também concordo - não lhes dá o direito de privar os pobres homens de sentirem seus sintomas gestacionais. E o que sinto é culpa das mulheres. Reivindicaram tanto igualdade de direitos, que até nisso agora somos iguais. Não quero mais ir ao banheiro a cada dois minutos, chorar feito criança vendo comercial na tevê etc. Por isso, Deus do céu, peço para que essa criança, linda e amada, venha logo ao mundo. Que a próxima nobre porcelana sobre a seda azul venha o mais rápido possível e me traga junto a Maria Cecília. Ainda me resta um pingo de sanidade, que pode se extinguir a qualquer momento se minha mulher não parir logo.
Não vou entrar na questão de não ter direito, como ela já tem e usufrui, de licença paternidade. Não, para mim nada. Afinal, "só" contribuí com uma gota. Para finalizar essa sessão das crônicas de um pai de terceira viagem, solicito-lhes um favor: caso não tenham notícias minhas nas próximas 36 horas, chamem a polícia. Nunca se sabe. E ela ainda terá atenuante de pena por assassinar seu marido nas condições em que se encontra.
Chega! Que nós homens nos unamos e queimemos nossas cuecas em praça pública, talvez assim a gente possa conquistar mais direitos no mundo das mulheres. Aos homens também peço meu perdão, pois já contribuí com mais três mulheres, que no futuro, vocês sabem, estarão contra nós, pobres coitados.
Ogum, a hora é boa! Salve São Jorge, conto com sua ajuda.

domingo, 5 de agosto de 2012

Crônica de um pai de terceira viagem IV

- Mô...
- [...]
- ... a lua está cheia.
- É.
- Então?...
- Então o quê?
- Isso não te faz pensar em nada?
- Não.
- Olha para a lua.
- Tô olhando.
- E o que você acha?
- Acho linda.
- Não, idiota! O que significa a lua cheia??
- Ué, significa que a gente consegue vê-la inteira, redondinha.
- Meu Deus! Você não sabia que as chances das mulheres entrarem em trabalho de parto na lua cheia aumentam muito??
- Pois é, já ouvi falar a respeito.
- Só isso que você vai dizer, imagino.
- Peraí, tô vendo o jogo.
- Vendo o jogo???!!! Eu posso entrar em trabalho de parto agora!!
- Tá.
- E você não está nervoso??
- Não.
- Porra! Eu tô dizendo que posso entrar em trabalho de parto agora e você acha isso normal???
- Acho.
- Como assim você acha normal? Posso saber por que você acha normal eu entrar em trabalho de parto?
[Nesse momento olho para a lua de novo e respiro fundo]
- Deve ser porque você está grávida há mais de nove meses.
- E se a bolsa romper agora, o que o senhor meu marido vai fazer?
- Vou pegar a mala que já está pronta, chamar um taxi e te levar para a maternidade.
- Nessa calma?
- Você prefere que eu faça isso nervoso?
- Claro que não!!
- Então deixa eu ver o jogo.
- Mas a lua está cheia e eu posso parir ainda hoje!
- Puta que pariu...
[Após esse leve desabafo um copo d'água explode na parede a alguns centímetros da minha cabeça]
- Todos os maridos que se prezam ficam nervosos nesse momento.
- Mas essa é a minha terceira filha, porra, já sei o que fazer, como fazer e em que momento fazer. Agora deixa eu ver o jogo?
[Enquanto varro os cacos de vidro espalhados pela sala, ela insiste]
- Não vou conseguir parir com um marido assim tão senhor de si!! Eu sou uma mulher grávida!!
- Pois é, e eu sou um homem pagando penitência.
- Tá bom, se não quer ir à maternidade comigo não precisa, eu vou sozinha, satisfeito????
[Olho de novo para a lua, penso em São Jorge e suplico misericórdia. Se eu tiver que esperar a próxima lua cheia enlouqueço]

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Leitura "terapêutica" sobre Valente (por pura falta do que fazer)

Relacionar-se é bastante difícil. Independente de com quem seja, afinal, ceder, compreender, aceitar e respeitar podem ser verbos difíceis de serem conjugados para um sujeito egocêntrico. E mesmo para alguém capaz de abdicar do seu ego e altruisticamente dar mais do que receber, torna-se complexo qualquer tipo de relação cuja subjetividade acaba sendo a tônica. Sentimentos como amor, raiva, ciúme etc. muitas vezes complexificam a convivência entre duas ou mais pessoas. Mas talvez a relação mais complicada, porque primeira, é a relação entre pais e filhos. Que todo pai quer o melhor para o seu filho é dizer o óbvio, que ele buscará oferecer todas as oportunidades para o bem-estar e uma vida adulta saudável e bem-sucedida também é chover no molhado. Mas isso torna-se um problema quando o pai resolve achar que sabe o que é o "melhor" para o filho, anulando suas vontades e sua individualidade.
Assistindo a Valente, animação de Mark Andrews e Brenda Chapman, o zeloso pai pode se identificar com a rainha que educa a jovem princesa Merida de maneira a transformá-la numa irretocável rainha futura. Ignorando a aversão da filha pela vida monarca, que sua mãe traçara para ela, com insistência educa a princesa para aquilo que é o desejo não da princesa, mas de sua mãe. Talvez a rainha não tenha percebido que há dois tipos de filhos: os ideais e os reais. E é com estes que convivemos e com quem temos que nos relacionar. E respeitar. E apoiar.
Quando a jovem e rebelde Merida vê, a contragosto, sua mão disputada para um casamento arranjado, ela foge e se depara com uma bruxa. E então a situação se inverte. Ela solicita que a bruxa modifique sua mãe, de maneira a ser aceita como ela é - a antítese de uma princesa educada nos padrões reais. A falta de aceitação materna gera, na filha, a mesma inaceitação, que agora busca modificar a mãe. (Aqui poderíamos também dizer que é comum os filhos buscarem algo completamente diverso da motivação paterna como uma maneira de se autoafirmarem e contestarem a autoridade exercida pelos progenitores.) A bruxaria é feita, mas o resultado não foi o esperado. Em virtude do insucesso em modificar o outro - fato impossível -, ambas lutam para recuperarem suas identidades até então negligenciadas mutuamente.
Uma leitura mais terapêutica poderia ser desenvolvida, como o fato da rainha reproduzir a educação que recebera - continuaríamos agindo como nossos pais. É claro que, por se tratar de uma produção da Disney, o final é feliz, tudo se ajeita no fim, mas este é um filme que deve ser assistido com atenção pelos pais da criançada.
As crianças, por sua vez, poderão gostar do filme, mas não é o tipo de animação que entusiasmará os pequenos, pelo menos a julgar pelo público da sessão à qual eu assisti. Minha filha caçula, de quatro anos, mais de uma vez disse não estar gostando do filme e que estava com medo em várias cenas. A mais velha, de quase oito, não se queixou ao longo da animação e, no final, disse ter gostado bastante. Pode até não ser um filme excelente, mas aborda questões interessantes acerca da sempre conflituosa relação entre pais e filhos.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

A bagunça nossa do meu dia a dia

Quando eu era solteiro, era a pessoa mais desorganizada que eu conhecia. Nada tinha lugar e tudo era uma enorme bagunça. Eu justificava-me dizendo que se arrumassem minha zona eu jamais voltaria a encontrar alguma coisa, que eu me entendia na minha bagunça. Como se eu realmente encontrasse o que quer que seja... Minhas coisas simplesmente desapareciam. Como eu sempre vivia meio que no mundo da lua, dava pouca ou nenhuma importância para o caos do meu quarto. Mas um dia eu arrumei uma namorada, mulher bonita, gostosa, inteligente e... extremamente organizada. Dessas que têm toc. Um horror. A primeira vez que ela foi ao meu antigo quarto de solteiro, por muito pouco não entrou em colapso. Quando abriu meu guarda-roupa, sentou-se na cadeira da escrivaninha - que servia também como cabide -, contraiu todos os músculos do rosto, e, enquanto uma lágrima escorria pela face, exclamou, entre os dentes, "Meus Deus, o que é isso!".
Nesse exato momento, depois que ela não saiu correndo e ainda se dispôs a arrumar "aquilo", percebi que ela ou muito me amava ou que era muito doida. Hoje, transcorridos alguns bons anos, percebo claramente que sou muito amado, mas que ela é extremamente louca. A minha desorganização está para mim como a loucura está para ela. Mas, voltando ao que interessa, ela conseguiu arrumar meu guarda-roupa. Descobri que vários livros que eu achava que estavam perdidos se encontravam, na verdade, naquela espécie de terceira dimensão. Havia, claro, roupas também, muitas das quais não eram vestidas há anos, do mesmo modo que saíram de dentro do meu guarda-roupa bolsas, cadernos, walkman, discos ainda em vinil, fitas cassetes e algumas pornôs, uma televisão, um velotrol e outras coisinhas...
Enquanto ela arrumava, dobrava, reagrupava, organizava e me lançava olhares recriminatórios, eu fumava sentado no chão da parede oposta, de cabeça baixa, pensando no que eu tinha me metido. Mas aí lembrava do sexo, respirava fundo e acendia outro cigarro. O próximo passo foi a escrivaninha, que já não era mais utilizada por pura falta de serventia. Havia de tudo nela, inclusive absorventes íntimos, que eu não soube explicar o que faziam ali. Depois de um dia inteiro na "operação organização", descobri que eu tinha um quarto espaçoso, arejado, limpo e... organizado. Se eu não fosse testemunha ocular da obstinada arrumação de minha namorada, sairia pela porta com a certeza de ter entrado em um outro apartamento.
O tempo passou e a gente acabou casando - era a ratificação de sua loucura. Mas, ao invés de jurar para um padre toda aquela baboseira de "até que a morte nos separe", precisei jurar de pé junto, sobre a Bíblia, que passaria a viver mais organizadamente. E jurei. E ela acreditou.
Nos primeiros meses consegui, com ajuda de Deus - foi quando soube que Ele existia - manter as coisas em seu devido lugar. Mas só eu sei o sofrimento que era retirar alguma coisa da gaveta e depois recolocá-la na mesma gaveta. Isso ainda era melhor do que ouvir o sermão que viria depois. Lembro de uma vez que deixei, depois de beber um copo de coca-cola, o dito cujo no chão ao lado do sofá. Só faltei apanhar, após ouvir um discurso inflamado e veemente de que "todas as coisas tinham o seu devido lugar". E novamente pensava no sexo, me calava e seguia adiante.
Mas se havia descoberto a existência de Deus, descobri, após o primeiro ano, que o diabo também existia. Foi ele quem me devolveu a minha desorganização caótica. Ela ressurgiu aos poucos, com meias e tênis abandonados no meio da sala. Em seguida veio a toalha molhada sobre a cama. Os copos eram deixados onde quer que eu estivesse após o último gole. E os cinzeiros viviam embaixo de qualquer coisa. O golpe de misericórdia veio, porém, no dia em que ela ia guardar minhas roupas passadas no nosso guarda-roupa e caiu de lá um violão em cima da cabeça dela. E eu ainda reclamei da desafinação proveniente de sua desatenção. Aí ela sentou, abaixou a cabeça, respirou fundo e... pensou no sexo. Acabou desistindo de sua mania de arrumação, graças a medicamentos prescritos por nosso psiquiatra. Pois é, casal unido frequenta o mesmo psiquiatra.
Como ela, agora mais calminha por causa das tarjas pretas, parou de se preocupar com minha bagunça, a coisa ficou crônica. E cronificou-se com a melhor de minhas boas intenções. A gente conseguiu comprar um apartamento maior e aí um dos cômodos passou a ser o meu escritório. Só meu. Território que deveria ser respeitado e que concetraria a minha bagunça. Prometi, cheio de amor e de compaixão, que manteria o restante da casa em ordem. O problema é que ela respeitou o acordo e não entrava lá nem para arrumar eventualmente a desordem instalada. Em pouco tempo, a realidade do meu quarto de solteiro reapareceu. Não conseguia mais trabalhar, tampouco entrar, em meu escritório. Minha mesa de trabalho tinha de tudo e eu não me achava mais. Como sou dado a ideias brilhantes, transferi meu escritório para o nosso quarto. Nos primeiros dias, diante das reclamações exasperadas de minha mulher, eu jurava que manteria as coisas "arrumadinhas". Em pouquíssimo tempo, entretanto, ela não tinha mais espaço para deitar na cama.
Hoje, depois de vencer o toc dela com o meu caos, saio todo fim de semana para visitá-la numa clínica de repouso. E, quando penso naquele primeiro dia no meu quarto de solteiro, me convenço de que eu tinha razão: ela é realmente louca. Não fosse, estaria em casa comigo, pessoa normal e ajustada. Apenas lamento quando penso no sexo...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Carta aberta para minha mãe

Pois é, mãe, estou com muita saudade de você. Hoje ela bateu quando vi no Facebook - aquele negócio na internet de que você não gostava e nem queria ouvir falar - vários comentários sobre o dia dos avós. E aí pensei que minhas filhas perderam a melhor avó do mundo. Aquela que fazia todas as vontades das netas, mesmo nos contrariando. Pois é, mãe, não tive a sabedoria necessária para entender o que todo mundo sempre falou e continuará falando, que os avós servem para estragar os netos, para paparicar, para mimar e, sobretudo, para amar muito. Mas eu, chato pra caramba, acho que por ter vivido torto minha vida inteira, ficava com medo de que os excessos pudessem prejudicar minhas princesinhas no futuro. É que eu, idiota, preocupado em policiar os avós, esquecia que era a minha função não permitir que elas também entortassem - e, caso entortassem, seria por livre escolha delas, só delas. Eu continuaria aqui amando muito elas, como sempre fui amado, mesmo quando fazia as maiores merdas do mundo - e não foram poucas. Em suma, os avós deseducam para os pais continuarem a árdua tarefa de educar. E deve ser muito bom ser avó para deseducar, para só dizer sim, para, no final das contas, ser avó.
A Maria Cecília deve nascer a qualquer momento, já está tudo pronto esperando por ela. Na verdade falta só o berço, que chega por esses dias. Ela não terá o privilégio das irmãs de te conhecer, mas será a única com o teu nome. E nós não permitiremos que ela não a conheça. As suas telas continuam nas paredes, as suas fotos também e, mais do que tudo, a lembrança e o amor que todos ainda temos.
Há três dias atrás, voltando do parquinho com as crianças, a Maria Antônia lembrou muito de você. Ficou tristinha, com saudade, mas sabe como é criança, logo passou para outro assunto. A Maria Eugênia, que era mais colada contigo, evita tocar no assunto, acho que é para, de alguma maneira, evitar o contato com a dor da perda. Porque dói muito, mãe.
Mas não se preocupe, tanto a Maria Eugênia quanto a Maria Antônia estão ótimas. Lindas, bagunceiras, inteligentes, espertas, engraçadas. Suas netas, não dava pra ser diferente, né? Ah, também são teimosas... mas acho que isso puxaram mais de mim.
Elisa está doida para parir logo, não está se aguentando, coitada. Papai e Gustavo estão bem, só com muita saudade.
Agora fico me lembrando de todas as coisas que não fizemos juntos. Acho que nós dois perdemos tempo demais com coisas desimportantes e aí esquecemos as coisas que realmente importam. Nunca comemos um japonês juntos, quase nunca íamos a uma exposição juntos, para você poder me ensinar alguma coisa sobre artes plásticas... Havia tanta afinidade entre nós e a gente sempre se manteve distante, que idiotice, né? A gente podia ter tido ótimas conversas sobre literatura, artes plásticas, filosofia. A gente podia também ter falado muita besteira juntos, que é bem mais interessante. Quanta risada perdemos... A vida é tão curta e tem tanta coisa para se viver. Nunca fomos à Europa juntos, olha que absurdo!!
Mãe, vou ficando por aqui. Feliz dia dos avós para você. Te amo muito, sempre amei e sempre amarei. Desculpa pelas minhas cagadas ao longo da vida, mas... você sabe... Até breve.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Confissões autoperformáticas de um sujeito fraturado e ignorante

Ignorante. Débil. Parvo. Este sou eu, proprietário deste blog, que não sei por que razão você visita. Talvez você, desavisadamente, tenha clicado em um link qualquer; ou o Google, sabe-se lá o motivo, tenha elencado meu blog numa lista de assuntos de teu interesse; ou você é uma pessoa curiosa. Independente do motivo, o que importa é que você está aqui e, por isso, resolvi me apresentar. Assim, caso seja sua primeira visita, poderá sair sem grandes traumas. Sou ignorante, mas educado. A ironia reside justamente no fato de eu, apesar da minha limitação intelectual, prezar bastante assuntos e temas que fogem da minha compreensão. Acho importante a leitura de filosofia, de literatura; acredito que a arte é uma forma de expressão que nos eleva; e que ela suscita questões fundamentais para o Homem, muitas das quais discutidas e rediscutidas desde sempre.
Mas eu não me reconheço como um ignorante há muito tempo. Até me achava um cadinho inteligente, capaz de refletir sobre temas complexos, sobre os quais tinha, inclusive, boas tiradas. Sim, durante algum tempo acreditei ser uma pessoa inteligente, modestamente, acima da média. Hoje, ficaria feliz se me apresentassem como mediano. Pelo menos assim não me reconheceria como burro, ignorante, conforme apresentação inicial nesta nossa conversa.
Resolvi fazer esta confissão porque este blog chama-se Identidade de um Eu, o que significa duas coisas: primeira, por ser um blog, isto é, um diário, deve conter a minha verdade e permanecer distante da mentira; segunda, a minha identidade necessita ser preservada, nem que seja a identidade de apenas um dos eus. E é este que se confessa um parvo sem eira nem beira.
Para seguir a trilha da verdade contida neste blog, descobri-me um ignóbil quando, com a melhor das intenções, resolvi ler Mímesis: desafio ao pensamento, de Luiz Costa Lima. Livro grosso, com mais de 400 páginas, com ele eu iria adquirir um conhecimento teórico-filosófico sobre a mímesis e tudo que advém com ela. Passearia pelo conceito de mímesis desde os gregos, passando por Descartes, Kant, Heidegger, Schopenhauer, Nietzsche, Freud, Deleuze, Foucault e outros. Poderia, com esta leitura de fôlego, agregar conhecimento e ter mais subsídios para discutir questões como o sujeito, a mímesis, a verdade, a ficção, a arte, enfim. 
Mas o que deveria ser uma solução, para quem acreditava que devemos estar sempre em busca do conhecimento, se mostrou um gradessíssimo problema quando, ainda no início do livro, me deparei com a realidade - eu não conseguia compreender o que Costa Lima tentava me dizer. Percebi que não possuía leituras suficientes dos filósofos abordados pelo autor e que sua teorização se demonstrava demasiada complexa. Afinal, que caminho epistemológico eu deveria seguir, ou melhor, qual era a argumentação de Costa Lima? Em que momentos ele discordava e em quais outros ele aproximava-se dos pensadores em questão?
Mas se me descobri um ignorante, igualmente me apresentei como um obstinado. Não desisti da leitura, levei-a até o fim, sublinhando, anotando, interrogando, fraturando-me. Acho que para ser minimamente capaz de entender este livro, precisaria relê-lo, trelê-lo e, depois, fazer um curso sobre o mesmo. Mas, amigo, caso você ainda não tenha desistido deste blog e continue a ler este ignorante, saiba que o problema não é do autor, tampouco do livro. O problema é exclusivamente meu, que sou meu próprio óbice. Talvez eu não seja um caso perdido porque consegui perceber que o livro é muito bom, pena que lido por alguém muito ruim. Mas você, leitor paciente, poderá tirar ótimo proveito desta leitura. E quiçá me ajudar posteriormente. Me tirar do limbo onde me encontro agora.
Foi o próprio Costa Lima, curiosamente, quem me estendeu a mão e sorriu com benevolência mediante minha ignorância confessa. Em mais de um trecho, ele queixa-se de sua incompetência filosófica, psicanalítica e de seu amadorismo em relação às artes plásticas. Nestes momentos, perdoem-me dizer, senti um nós se justapor ao meu eu. Pelo menos por segundos, senti-me próximo do eu autoral, capaz de entendê-lo e de me solidarizar. Por frações de segundos, nossas primeiras pessoas se deram as mãos e unificaram-se. Mesmo que, no caso dele, sua incompetência servisse apenas como uma espécie de modéstia, ou de retórica. Ou, ainda, como um salvo-conduto para transitar em seara alheia.
Infelizmente, sou incapaz de resenhar este livro como ele merece, daí confessar-me um ignorante, mesmo porque a leitura deste livro "ao leitor deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou reconhecer-se um imbecil". Aqui, desculpo-me com Costa Lima e com Foucault, mas sinto fascínio e me reconheço um imbecil. As duas coisas, por que não? Se não sou mais um sujeito uno e solar, cartesiano, e me reconheço como um sujeito fraturado, cuja "experiência estética nos faz sentir nosso próprio estado", repito aqui para você, querido leitor, que sou um ilustre ignorante, afinal, se finjo, logo existo.


domingo, 22 de julho de 2012

Febre do Rato

Uma vez um amigo meu me disse que todo filme em preto e branco era um bom filme. Não posso dizer que ele tem razão, mas Febre do Rato, longa de Claudio Assis, é extraordinário! O filme suscita no expectador atento inúmeros caminhos interpretativos, várias possibilidades de leitura. O primeiro que me ocorreu - e eu não sou tão atento assim - foi qual a importância que a poesia tem hoje em dia, se é que há alguma utilidade para ela - e aqui podemos estender esta leitura para outras manifestações artísticas. 
Considerada por muitos como uma arte elitista, para iniciados, raras vezes quem escreve poesia fora do circuito literário mais "academicista" e já inserido no mercado editorial consequirá algum público que a valide. Aparentemente, a poesia tem se restringido, porque tem perdido sua oralidade, ao mundo do livro que, naturalmente, necessita de um retorno fincanceiro para suas editoras. Mas este não é o único problema enfrentado. Para aquele que consegue romper os limites impostos pelo mercado e insere-se, bem ou mal, no mercado, outro precisa ser encarado: o da qualidade. Por ser uma arte para poucos, é como se a pergunta "quem você pensa que é para escrever poesia?" rondasse os [novos] poetas. Tenho a impressão (que pode ser equivocada) de que para ser poeta é necessário pertencer a um clube seleto.
Em evento recente organizado por Ítalo Moriconi na UERJ, um poeta perguntou quem lê sua poesia se motoristas de ônibus não a leem. Para ele, num país de iletrados, a poesia circularia entre a crítica especializada e a Academia, com alguns poucos "membros" admitidos no "clube" - estes sim deveriam ler sua poesia e, assim, proporcionar um diálogo e uma divulgação. Bem, em Febre do Rato, o poeta que declama oralmente sua arte advém de um local de onde menos se esperaria a presença de um poeta, de acordo com a ideia equivocada dela ser uma arte para poucos e de que não é qualquer um que a compreende. E aí me veio a segunda pergunta, ainda no cinema: para gostar de poesia é necessário compreendê-la? Valendo-me de minha experiência pessoal, asseguro que não entendo nada de cinema, mas fui capaz de sair da sala de exibição ontem com a certeza de ter assistido a um filme muito bom. Do mesmo modo que pouco - para não dizer nada - entendo de artes plásticas ou de música, mas isso não me impede de apreciá-las. Ainda na faculdade de Letras, um professor me disse que era possível escrever um livro inteiro com base em um único poema. Sim, podemos. Mas para se gostar de poesia é premissa que haja um conhecimento erudito que a esclareça? Por que a arte precisa ser explicada? E explicada para quem? Por quem? 
E aí me veio a questão principal suscitada pelo filme. Como então pensar o sujeito que escreve poesia hoje? E o que a lê? Ou a ouve, mesmo sem compreendê-la, apreciando-a? Uma alternativa, que é bastante restrita, seria apenas considerar que, mediante a dificuldade de fazer parte do "circuito", o poeta procuraria outros meios de divulgar seu trabalho, seja na internet, seja oralmente, seja nas ruas em pequenos e artesanais periódicos. Sim, isso é possível e acontece, principalmente se considerarmos os blogs, mas ainda não equaciona o problema.
Sentado no cinema, me veio à cabeça, ainda durante a exibição, que o filme tratava do sujeito fraturado conceituado por Costa Lima, em Mímesis: desafio ao pensamento. Uma cena, dentre várias, que problematiza a impossibilidade do sujeito hoje se representar, é a cena em que Eneida xeroca várias partes de seu corpo e, posteriormente, monta, com os fragmentos, um outro eu, uma representação, nem por isso menos "verdadeira". A Eneida é, inclusive, sob meu ponto de vista, uma personagem-chave, na medida em que ela é a primeira pessoa a não aceitar a poesia do poeta. Até então, sua poesia era lida, ouvida, distribuída e, sobretudo, aceita no espaço de sua circulação. Considerando que o sujeito, hoje, precisa do receptor para se constituir enquanto tal, a partir do momento que Eneida rejeita a poesia ela rejeita concomitantemente o sujeito poeta, que passa a não mais se reconhecer e a não mais ser reconhecido pelos demais personagens. Inicia-se uma busca para que o poeta encontre em Eneida uma resposta para si próprio. Mas, mesmo que a jovem Eneida se rendesse aos encantos do poeta e, principalmente, à sua arte, isso poderia atribuir-lhe um eu, não "o" eu. Mimeticamente, não somos mais únicos, cartesianos; somos muitos, plurais. A teorização de Costa Lima sobre a mímesis é por demais complexa para ser aqui mais bem aprofundada, por isso utilizo suas palavras: "O sujeito fraturado é não só um sujeito que não unifica e comanda suas representações senão que é visto no exercício de sua dupla função: apresenta e recebe; produz e suplementa". Ou, mais à frente: "Assim, o sujeito fraturado implica o lançar-se apresentativo, que, por não poder se cumprir sem a apresentação de quem se lança, traz consigo uma marca ou mancha de representação".
Outra característica importante que o filme apresenta é que o poeta traz consigo uma anarquia que deveria ser imanente à obra de arte. Que ela também frequente a Academia, mas a ultrapasse, atinja horizontes mais largos e extensos, públicos vários. Achei bastante interessante, já no fim do filme, a manifestação feita no dia da independência, afinal, o sujeito não é mais nacional, como o era. Não dá mais para pensar a poesia - ou a arte em geral - com padrões nacionalistas, em busca de uma unidade nacional não mais existente, pelo menos a meu ver.
Uma última observação, para finalizar: bastante atenção aos versos declamados pelo poeta e às falas em geral e bom filme. 

sábado, 14 de julho de 2012

História da vida banal - parte I

Bem, pertenço ao gênero masculino. Gosto de futebol, de mulher, de ver televisão. Gosto de conversa de botequim, de pornografia e de falar besteira. Mas também sou sensível. Até de poesia eu gosto, e aprecio, de um modo geral, manifestações artísticas. Chego a sentir algumas caracterísitcas próprias de minha mulher, que está grávida de novo. Ela não acredita em mim, acha que estou debochando, mas contra fatos não há argumentos - é como se eu estivesse grávido também -, a psicologia me entende e me apoia. Sou um ótimo pai e o melhor marido que eu consigo ser - ajudo nas tarefas domésticas, dou importância ao bem-estar coletivo etc. etc. Para resumir esta minha carta de apresentação, sou, confesso, um ogro, mas um ogro com um acento não tão agudo. Mas, ainda assim, um ogro.
O parágrafo acima foi sugerido pelo meu advogado, de modo a me contextualizar perante o tribunal e a facilitar minha absolvição. Ontem, depois que as crianças dormiram e eu, ogramente, me vi a sós no quarto com minha mulher, cheio de más intenções na cabeça, ela me faz a [fatal] pergunta: "Você não reparou em nada não?" Nesse momento um frio correu pela minha espinha, tentei controlar a respiração, agir naturalmente, vasculhando as gavetas do meu cérebro onde deveria estar registrada alguma coisa nova que eu deveria ter percebido. Já nervoso, gaguejando, enquanto ela, em pé, me encarava com ódio nos olhos, impaciente com minha hesitação, arrisquei.
- Suas unhas estão lindas, você achou que eu não ia perceber? Mas sempre que pensava em falar a respeito alguma coisa acontecia, o telefone tocava, desviava minha atenção e acabei esquecendo.
- Gostou mesmo da cor?
- Claro! Estão lindas, super bem feitas!
Considerando-me um ogro, enunciar essas frases verossimilmente faz de mim um concorrente ao Oscar.
Por uma fração de segundo, respirei aliviado e voltei aos meus pensamentos impudicos. Foi quando ela, ainda de pé, ainda me olhando com ódio e menosprezo, disparou:
- Mais nada?
Tive, então, um acesso de tosse nervosa, levantei, fui ao banheiro, à cozinha em busca de um copo d'água, tentando, a qualquer custo, ver nela alguma coisa diferente. Desisti. Me despedindo da noite de luxúria que eu havia planejado, confessei:
- Não, a-amor, não re-reparei em mais nada...
- Pois eu cortei o cabelo e você não faz nenhum comentário!!!!!
Puta que pariu! Um homem, por mais ogro que seja, tem que distinguir um cabelo pré e pós salão de beleza, não tem jeito. E isso é dito inclusive por médicos que prezam pela saúde de seus pacientes. Noite perdida, chutei o balde.
- E o que tem de diferente nele?
- Aqui do lado ele está em camadas, aqui atrás ele tirou o volume, na frente...
Juro por Deus, ou por qualquer outra coisa de maior relevância, aqui perante o tribunal, que eu não percebi diferença nenhuma. Quando eu vou ao barbeiro - nós homens não vamos ao salão -, digo curto e grosso: "Passa a máquina". Simples, prático e rápido. Para que minha mulher exigisse de mim a visualização de alguma diferença, ela teria que voltar careca!! Agora, perceber camadas laterais e perda de volume atrás? Fala sério! Argumentei, me desculpei, disse que ela tinha toda a razão do mundo, que eu era um merda de homem, que ela estava linda. Gastei todo o meu repertório, mas de nada adiantou. Em um minuto saía do quarto com meu travesseiro e um lençol na mão em direção ao sofá.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Minhas confissões circulares

Fui presenteado com meu primeiro diário aos 8 anos de idade, mais ou menos. Minha mãe me dera um depois que eu, através de seu exemplo, me entusiasmei em escrever também. Desde sempre minha mãe habituou-se a escrever sua vida, seus pensamentos, suas angústias e alegrias. E os escrevia à caneta, à moda antiga. E ai de quem pensasse em se aproximar deles para uma espiadinha. Seus escritos eram secretíssimos, e, sempre que eu pedia para lê-los, ela me dizia que somente após sua morte. Ela confiava ao diário, enfim, aquilo que não podia ser dividido com ninguém. E foi mais ou menos isso que ela me disse quando me deu meu primeiro diário. Mas o que eu entendi foi que aquela agenda servia para que eu enumerasse minhas atividades cotidianas. E assim comecei a relacioná-las: "Brinquei. Fui para a escola. Fiz dever de casa. Vi televisão". No dia seguinte, sem grandes variações, registrava a mesma coisa. Após uma semana, desisti do empreendimento e abandonei o diário, ainda sem entender quanta coisa minha mãe escrevia.
Muitos anos depois, no meu segundo ano de mestrado, decidi criar um diário acadêmico, que se preocuparia com minhas atividades acadêmicas, ligadas direta ou indiretamente ao meu projeto. Mas o escrevia no computador, muito mais rápido e prático. Mas, diferentemente de minha mãe, tinha a intenção de publicá-lo. Quando disse isso a minha amiga Mariá, ela deu um muxoxo e comentou que ninguém se interessaria em ler sobre tais atividades; se eu quisesse leitores, deveria escrever sobre minha vida sexual. Refleti e ponderei que ela tinha razão, mas, como sou teimoso, dei prosseguimento ao meu diário acadêmico - ainda inédito, pois não encontro nem tempo nem entusiasmo para trabalhar em cima dele e torná-lo atrativo o suficiente para uma possível edição. Mesmo porque Mariá deve ter razão...
Defendido o mestrado, meu diário virtualizou-se e transformou-se neste blog. E aqui procuro registrar, diletantemente, minhas atividades culturais, sejam elas quais forem. Procuro exercitar, dessa forma, minha escrita. Escrevo, portanto, resenhas de livros que li, de filmes, peças ou qualquer outro evento que assisti, além de colocar algum texto meu com veleidades literárias, seja em prosa ou em verso. Acho que não preciso dizer o óbvio, que senti uma grande diferença entre escrever um diário para mim mesmo, sem leitores, e escrever aqui na internet, onde sei lá quem irá ler e, (!) comentar. Mas mesmo assim vim vindo até o dia em que me dei conta de que havia coisas sobre as quais eu não tinha nada o que dizer. Às vezes assistia a um filme que, por mais que eu tivesse gostado, não me suscitava nenhum tipo de interesse em transformar aquela vivência em texto. Acontece que sou por demais metódico e, então, deveria solucionar o impasse. Assim, em outubro de 2010, criei meu twitter, que registraria os casos de mutismo, por assim dizer. Colocava lá o que tinha feito, sem desenvolver, porém. Há quase dois anos que blog e twitter convivem harmonicamente.
Obedecendo a um critério puramente cronológico, devo dizer que em outubro de 2011 criei um outro blog, ao qual não dou nenhuma importância, espécie de filho bastardo, e que, recentemente, me rendi ao facebook, aliando-me à multidão que diariamente atualiza sua rotina - ou inventa uma, tanto faz. Mas o que importa e é o motivo deste post é que hoje aconteceu um episódio interessantíssimo, pelo menos para mim, que não pode ser compartilhado com ninguém. E eis que meu eu metódico, inconformado com o silêncio, aflito com o segredo, lembrou-se do diário. Sim! Por que não? Posso voltar ao diário e anotar o que eu quiser, secretamente, sem que ninguém leia, compartilhe ou curta. Me pergunto por que maldita razão precisei escrever essas minhas confissões circulares para dizer que iniciei com um diário e talvez a ele eu retorne. Para constatar que há coisas que interessam somente a mim, à minha individualidade, ao meu eu. Mas eu sou muitos e, assim, não poderia ser nós? E sendo nós seria justo manter só comigo o segredo? Vou pensar no assunto e decidir se vamos nos interessar.

terça-feira, 10 de julho de 2012

A partir de Sobre o declínio da "sinceridade"

As questões referentes à primeira pessoa sempre se mostraram controversas. Há aqueles que não consideram um texto autobiográfico literatura por serem textos referenciais, demasiadamente vinculados à "realidade"; por outro lado há os defensores da qualidade literária das escritas de si, independentemente de sua relação estreita ou não com dados empíricos. Alheio à polêmica e interessado numa pesquisa sobre a história da sinceridade, Walter Benjamin certa vez propôs a Horkheimer um estudo comparativo entre as Confissões de Rousseau e o Diário de Gide. A diferença entre os dois tipos de texto - uma autobiografia e um diário - não se mostraria um empecilho, num primeiro momento, pois ambos, em maior ou menor grau, explicitariam a subjetividades e a sinceridade de seus autores. E é este o ponto de partida para o excelente estudo de Carla Milani Damião, Sobre o declínio da "sinceridade": filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. A autora não se preocupou em polemizar tratar-se ou não de literatura os escritos autobiográficos, mas preferiu trabalhá-los sob à luz filosófico-literária. Iniciou, portanto, seu trabalho com a reflexão à qual se propôs Benjamin, que não pôde levá-la a cabo, pois em 1940, um ano depois do convite feito a Horkheimer, se suicidou para fugir da perseguição nazista.
Para Rousseau, que escreveu suas Confissões de maneira a expurgar seus pecados e buscava, também, um reconhecimento póstumo, a verdade tinha mais a ver com os seus sentimentos, e não necessariamente com os fatos. Segundo ele, "mentir sem proveito nem prejuízo para si nem para outrem não é mentir: não é mentira, é ficção". A questão que envolve o caráter ficcional de um texto, seja ele qual for, é igualmente polêmica ainda hoje e sobre a qual a autora não se detém, mas existiria alguma autobiografia que fosse de fato fiel à vida do autobiógrafo, sem flertar com a ficção? Em todo caso, Carla Milani lembra que sinceridade e obra literária já foram consideradas inseparáveis.
A questão em torno da ficcionalidade de um diário ou autobiografia, se é possível o sujeito manter-se sincero enquanto escreve sobre si, pode ser mais bem pensada ao se analisar os diários de Gide. Isso porque ele mantinha vários diários, sobre variados temas - viagens, a respeito de suas obras, sobre a Segunda Grande Guerra. Escreve a autora: "Em suas obras, os próprios personagens possuem diários e algumas narrativas são construídas com base no diário das personagens. Nessa prática da escrita de múltiplos diários, o interessante é notar que não são obras publicadas postumamente, como costumam ser os diários, mas faziam parte da relação de Gide com o leitor, amigos e inimigos". Neste caso, sua prática diarista de alguma maneira se confundia com sua literatura, dificultando a crença numa sinceridade neles contida. Além do mais, os diversos diários sobre assuntos plurais nos remete para um sujeito que há muito não é mais uno, explicitando a fragmentação do sujeito moderno em vários eus. 
E serão múltiplos eus que serão trabalhados em seu segundo capítulo dedicado a Ecce homo, de Nietzsche, que seria uma genealogia do próprio filósofo. Mas em que sentido? Para Nietzsche, todo texto filosófico também é um texto autobiográfico. Se assim é, como pensar exclusivamente Ecce homo como sua autobiografia, sem o diálogo com sua produção antecedente? Carla Milani Damião considera Ecce homo não como uma autobiografia, mas como uma antiautobiografia, no sentido de que o imodesto Nietzsche trafegaria na contramão da modéstia apregoada por aqueles que se dedicaram a escrever sobre si.
Como a autora se predispôs a um trabalho filosófico-literário, não poderia ficar de fora de seu livro uma análise de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Benjamin já dizia que toda grande obra ou inaugura um novo momento ou o ultrapassa. E parece ser unânime a consideração de que esta volumosa obra de Proust é um destes casos. Quem diz "eu" neste texto? Trata-se de um romance? Uma autobiografia? Memórias? Se admitirmos se tratar de uma autobiografia, como confiar na memória do narrador? E esta memória seria suficiente para assegurar sua sinceridade? Inúmeras outras questões poderiam se somar a estas. Para Proust, falar de si deveria corresponder a falar de nós, daí o narrador Marcel que aparece Em busca... não ser necessariamente o autor, mas "qualquer" Marcel. Assim, Proust transcende o eu empírico e o eleva a uma categoria universal, mesmo porque, para ele, Em busca... é um romance.
Este percurso feito por Carla Milani Damião encerra-se com chave de ouro na última análise de seu livro: Infância berlinense por volta de 1900, de Walter Benjamin. Como o autor de estudos paradigmáticos em torno do narrador, preocupado em diferençar experiência de vivência, se comportará ao escrever a sua própria autobiografia? Segundo a autora, trata-se de um antissubjetivismo de Benjamin justamente porque para ele o sujeito é coletivo na história, não individual. Com raízes no materialismo histórico, a sinceridade só poderia aparecer com a plenitude da experiência. E, para Benjamin, vivemos na era da ausência do intercâmbio de experiências. Infância berlinense... também seria uma antiautobiografia porque, segundo a autora, há a retirada consciente do sujeito do foco narrativo. Em suas palavras, "o pressuposto de Benjamin de expor, antes de tudo, um sujeito histórico e não a história de um indivíduo demonstra que sua estratégia era ter como meta Berlim e o século XIX, e não constituir a identidade de um outro como a criança Walter Benjamin".
É óbvio que, por mais que seja amplo, desenvolvido e fundamentado este excelente livro de Carla Milani Damião, ele não esgota a questão da sinceridade, da subjetividade e da identidade. Lendo-o, me ocorreu que os blogs constituem-se em excelente corpus para um estudo a este respeito. Não tenho interesse em afirmar, como afirmou em entrevista ao jornal Rascunho, recentemente, Fernando Monteiro, que os blogs seriam um desserviço literário, sem nada a dizer. Conheço vários blogs muito bons, com conteúdo - certamente não é o caso do meu, sou apenas um diletante. Mas parece-me que, para além da questão, a meu ver infantil e improfícua, de que os blogs são isso e aquilo, nada acrescentam etc., que deve haver um estudo em torno da questão da individualidade e da subjetividade que se apresentam com o novo (nem mais tão novo assim) canal que se abriu para o exercício literário.

domingo, 8 de julho de 2012

Crônica de um Pai de Terceira Viagem III

No consultório do Dr. Isaac Nepomuceno Insanus:

- Olá, meu jovem, quanto tempo!
- Estou mal, sucumbi.
- O que houve?
- Não dei conta.
- Desenvolva...
- O senhor sabe... duas crianças, ou melhor, duas pestes, uma mulher grávida, quer dizer, louca, e a perspectiva das coisas se agravarem quando a terceira peste nascer.
- Hum...
- Hum? É tudo isso que o senhor tem a dizer? Estou a base de ansiolíticos, e nem com eles consigo mais dormir.
- Como vai o trabalho?
- Pois é, não aguento mais minha tripla jornada! Não dá mais para trabalhar, cuidar de duas pestes e ainda bancar o psiquiatra de uma grávida cujos hormônios estão na Disneilândia. Isso quando ainda não preciso assumir as tarefas domésticas, lavar, passar, etc.
- Entendo...
- Ok, o senhor entende e? Vim em busca de socorro, preciso de soluções, não de compreensão. Estou a ponto de transpor a fronteira, enlouquecer definitivamente.
- O que tem feito de lazer?
- O que é isso mesmo?
- Aí está, meu jovem! Você não pode colocar-se nessa rotina estressante e não usufruir de um minuto sequer de lazer.
- Tá, mas o que eu faço?
- Em primeiro lugar, retome seus prazeres lúdicos, vá mais ao cinema, teatro, enfim, as coisas que você gosta de fazer e sempre fez. Dê um tempo para você mesmo. Vá jogar bola com os amigos.
- E as crianças?
- Ora, meu rapaz! Quando estiver com as crianças, junte-se a elas na bagunça. Não tente ser um pai chato que só diz não. Imponha limites, mas, na maior parte do tempo, seja criança junto com elas, vai te fazer muito bem.
- Sério?
- Seriíssimo. Dê vazão para a sua criança interior, brinque com elas, esqueça um pouco as responsabilidades.
- Ok. Mas e quanto àquela louca barriguda lá de casa?
- Nesse caso o buraco é mais embaixo.
- Vai dizer isso pra mim??
- Quanto tempo falta para a bebê nascer?
- Pouco mais de um mês.
- Façamos o seguinte: concorde com tudo o que ela disser...
- Mas, Dr. Insanus...
- ... afinal, com loucos costumamos sempre concordar, não é mesmo, meu jovem [e uma gargalhada se fez ouvir no consultório, depois da qual precisei concordar].
- Isso vai resolver meu problema?
- Só isso não. Leve-a para sair também. Haverá aqueles momentos que serão só seus, mas acrescente alguns momentos para o casal, e, se os hormônios se manifestarem, faça a mesma coisa.
- O quê?
- Alie-se. Se não podemos vencê-los, juntamo-nos a eles [mais risos].
- Como assim?
- Comporte-se igualmente, como um louco desequilibrado e perigoso.
- Isso vai funcionar?
- Acabou seu tempo, meu jovem, volte mês que vem com boas notícias.
- [!]

segunda-feira, 21 de maio de 2012

No coração do mundo


Quem se interessa por cinema, mas não quer se limitar às produções comerciais ou prefere expandir seu horizonte fílmico para além das películas euro-norte-americanas, pode encontrar em No coração do mundo, de Denilson Lopes, uma ótima e diversificada leitura. Nos dez ensaios que compõem o volume, Denilson se preocupa em analisar o cinema através de uma estética do cotidiano e do comum, dando enfoque a cineastas como Tsai Ming Liang, Wong Kar-Wai, Béla Tarr e outros. 
É interessante o olhar de Denilson sobre o comum num momento em que, em nossa sociedade midiática, de excesso de informação, ele tenha cada vez mais o desejo de falar [= aparecer], mas, em contrapartida, sinta-se cada vez menos ouvido. Hoje, feliz ou infelizmente, qualquer pessoa pode aparecer na mídia e, da noite para o dia, se tornar uma celebridade, mas isso não lhe garante voz [= conteúdo], apenas imagem [= exposição].
Para Denilson, é importante frisar, o homem comum não é antítese da celebridade, mas se aproxima de personagens excêntricos - na medida em  que foi construído por Deleuze e Agamben, num diálogo entre o universal e o individual. "O comum é uma construção transversal que atravessa identidades, mas não as elimina, e talvez, no contexto global de hoje, atravesse culturas". Não se trata, portanto, de restringi-lo a um aspecto simplório, estigmatizado, excluído socialmente. O homem comum é sim um homem da metrópole, mas nem por isso (ou por isso mesmo) "visível".
Um aspecto interessante em torno do comum, na minha opinião, é que cada vez mais ele está "capturado" midiaticamente, isto é, dia a dia nossa sociedade imagética se interessa mais por pessoas comuns, que não teriam um status de importância que lhe outorgasse relevo. O interesse se daria justamente por ser comum, sem caracteres especiais. Seja no cinema, na literatura (notadamente nos blogs), na televisão (reality shows), o comum tem servido para saciar o desejo do público, que talvez se regozije em se reconhecer.
Paradoxalmente, este homem comum nutre a ambição de ascender socialmente justamente abandonando seu atrativo para se elevar à qualidade de celebridade. Denilson, "para traduzir esteticamente o comum, defend[e] que este pode ser pensado como uma encenação minimalista inserida num contexto pós-dramático".
No coração do mundo é um livro que reflete sobre o comum no cinema, mas as reflexões do autor podem e devem ser apropriadas para outras manifestações artísticas, pois, dentre outros motivos, são bastante atuais.