Quando criança, eu sonhava em ser
astronauta, ou piloto de Fórmula 1. Queria ser diferente, fazer alguma coisa
que me distinguisse dos demais, ser manchete, reconhecido, invejado. Não podia
me imaginar trabalhando num escritório qualquer, sem nenhuma emoção, vítima da
mesmice do cotidiano. Não, eu seria diferente. Ou astronauta ou piloto de
Fórmula 1.
Nada
melhor para mim, que vivia com a cabeça nas nuvens, do que fazer disso minha
profissão. Sair da órbita terrestre, passar pela Lua, conhecer galáxias
distantes e, quando voltar, ter aos meus pés todas as mulheres que eu quisesse.
Do espaço, veria a Terra pequenininha, um ponto azul lindo e distante, capaz de
caber no meu bolso. Sim, eu teria muito o que viver, inúmeras realizações, uma
vida repleta de sucesso. Um planeta só seria pouco para mim.
Mas,
não fosse isso, meu plano B estava assegurado. Viveria a 300 km/h, sem tempo a
perder, a cada semana em uma pista diferente. Após alguns poucos meses,
certamente me transformaria no ídolo de milhões de pessoas, estaria em todos os
lugares, em programas de televisão, outdoors, capas de revistas. Teria produtos
com meu nome e rosto na embalagem, seria exemplo para as crianças, e viveria a
mil por hora, mesmo fora das pistas. Quando pequeno, sempre soube que havia
muito o que fazer e que as minhas 24 horas diárias não seriam suficientes para
todos os meus anseios. Pressa, eu tinha pressa para o sucesso, para viver a
vida, para ser feliz, reconhecido e bem-sucedido.
À medida que eu fui crescendo, porém, minhas ambições infantis cederam espaço
para metas mais plausíveis, realistas e comuns. Já não desejava conhecer o
universo, tampouco correr num carro para atingir a fama e o estrelato. Viveria,
agora, feliz com alguma profissão que me propiciasse uma boa qualidade de vida,
que me permitisse algumas excentricidades, como viajar pelo mundo, pular de
paraquedas, descer numa jaula submarina para ver, frente a frente, o grande
tubarão branco, praticar esportes radicais – e sim, ter muitas mulheres.
Poderia ser talvez um publicitário, roteirista ou quem sabe cineasta.
Mamãe
me dizia que eu podia ser o que quisesse, que eu era um jovem talentoso, bom
aluno, escrevia ótimas redações, que a Rede Globo me pagaria o que eu pedisse
para me ter como um de seus redatores. Mamãe dizia, enfim, que eu podia
continuar sonhando, pois um dia meus sonhos se transformariam em realidade.
Nesse caso, não tinha erro. Bastava aguardar e esperar a vida acontecer, tudo
não passava de uma questão de tempo. E enquanto esperava o início do meu final
feliz, ia vivendo a vida sem grandes sobressaltos, sem preocupações, certo de
que o destino estava traçado.
Mas
o tempo passou e parece que mamãe se enganou. Não me tornei publicitário,
cineasta, tampouco redator de televisão. O que mais me aproxima das minhas
expectativas profissionais é a manutenção de um blog na internet onde posto,
regularmente, algumas impressões de meu dia a dia. Desiludido, escrevo
comentários sarcásticos sobre tudo aquilo que a vida me negou. Não poupo nada
nem ninguém. Nem mesmo meus (poucos) leitores, meia dúzia de quatro ou cinco
fiéis seguidores. Às vezes, até publico alguma coisa mais lírica, a depender do
humor. E assim vou vivendo no meu conjugado aqui na Avenida Nossa Senhora de
Copacabana. Sem dinheiro, sem mulheres, sem aventuras.
O
alvo predileto de minhas críticas internáuticas é o número elevado de pessoas
que acreditam na profecia de que a Terra vai acabar. Como assim? Quer dizer que
a vida se extinguirá, que todos sucumbiremos, que não mais haverá amanhã?
Idiotice, pensava eu. Agora, porém, acho que posso confessar que a implicância
com os crédulos do fim do mundo se dava justamente porque a minha vida de
glórias nunca começou, que dirá terminar. Como posso encerrar minha existência
se eu simplesmente não iniciei nada. Não tive filhos, não plantei uma árvore e
muito menos escrevi um livro. Quer dizer que a minha presença neste planeta foi
completamente infrutífera?! Não realizei nenhum dos meus sonhos, não comi nem a
metade das mulheres que eu desejei, não tive sucesso, dinheiro, status. Mas
parece que agora sim eu vou para o espaço, a hora chegou. Inexoravelmente.
Sim,
o mundo vai acabar. Hoje. Na verdade já começou o fim, resta-me apenas esperar
que a onda gigante que começou a destruir tudo no Japão e na Oceania atinja o
Brasil e o resto do mundo. Lá fora, ouço as buzinas, os gritos, o desespero.
Muitos pretendem subir a serra para se refugiar da fúria advinda do oceano, mas
a angústia da população só tornará o fim mais agônico. A televisão, que vai segundo
a segundo noticiando o fim ao vivo, foi devidamente desligada. Aguardo a minha
hora com resignação. Até com uma inesperada paz. Ao meu lado, o Marlboro, a
cerveja e o desejo de deixar alguma coisa para a posteridade, para tornar menos
vazia minha passagem pelo planeta. Cheguei a me perguntar, entre uma tragada e
outra, que diferença isso faz agora, no meu último dia de vida. E a resposta
que me dei é que possuo a derradeira oportunidade de fazer alguma coisa que
valha a pena; que posso me redimir de mim mesmo enquanto espero a onda
avassaladora chegar e me engolir; que posso fazer a cesta de três pontos no
último segundo da final das Olimpíadas que não se realizarão.
Não
deixarei a oportunidade escapar. Sentado diante de meu laptop, escrevo um conto
autobiográfico que dará conta do que eu (não) fui em 33 anos de vida. Afinal,
quem sabe se um único casal conseguirá resistir à fúria da natureza e repovoar
o mundo, como um dia fizeram Adão e Eva? Ou se, num futuro distante, uma nave
interplanetária não aterrissa aqui numa missão exploratória e descobre que um
de seus nativos, depois de sonhar em conquistar o espaço, se conforta em deixar
um conto que valha a pena ser lido?
Na
verdade, mais do que tudo isso, o que me motiva a escrever este conto não são meus
futuros leitores alienígenas, muito menos uma raça mutante, oriunda da maior e
última hecatombe da humanidade, que poderá vir a descobrir a subjetividade de
um de seus ancestrais, mas um acerto de contas comigo mesmo. Eu, que vivi de
maneira inútil e desapercebida; que nada deixei de legado para as possíveis
futuras gerações; que estive longe de meus planos mais sinceros, puros e
imaculados; eu, para não morrer como um cão, no meu Processo; para fugir do
nada da morte apregoado por Sartre, venho aqui não para escrever um texto, mas
fazer uma reparação comigo mesmo. Este conto, escrito a poucos minutos de meu
fim, será minha redenção. Poderei, depois do ponto final, partir em paz. Mamãe
me dizia que eu poderia ser o que quisesse. Tudo o que quero agora é concluir
esta miniautobiografia. Engenheiro das obras inacabadas, me dou agora a
oportunidade de finalizar alguma coisa digna de nota. Ou que pelo menos mereça
ser lida por alguém – se alguém houver para lê-la.
Vou
me lembrando de todos os livros que comecei e não terminei de ler, mais
preocupado que estava em curtir a vida e, por isso mesmo, não me dando conta de
que as coisas que realmente valem a pena não são fugazes, mas perpassam
gerações. É isso! A literatura é algo que desde Homero permanece, sejam as
epopeias clássicas, os poemas líricos ou os romances burgueses. Uma vez escrito
e registrado, o texto não é mais do autor, é do futuro, é da humanidade.
Finalmente, à espera de meu fim iminente, percebo que o que almejei sempre esteve
dentro de mim. Que importância teriam hoje os produtos com meu nome e rosto?
Alguém se lembraria de um astronauta tupiniquim, que teria vivido provavelmente
nos Estados Unidos, longe de sua terra e sua gente? As inúmeras mulheres com
quem teria dividido a cama chorariam a minha morte? Certamente não. Mas este
conto me redime. Com ele transcendo e alcanço a imortalidade. Agora autor,
coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou
mais um Zé Ninguém. Agora, eu escrevo porque preciso, como sempre ouvi os
escritores de verdade dizerem. Há em mim uma necessidade de me expressar, de
externar meus sentimentos, de não permitir que a minha vida se finde junto com
o meu corpo, condenado à espera da onda gigante.
Vou
morrer em breve. A internet continua, segundo a segundo, atualizando a
população sobre o avanço incontido da onda. Ilhas e mais ilhas do Pacífico
desapareceram. Falta muito pouco. E mal comecei a escrever. Mamãe sempre se
orgulhava das minhas redações, mas agora não consigo progredir, não posso
escrever sobre minhas realizações. E me dou conta de que não as tive. Vivo
solitário num bairro superpovoado, mas sem nenhum amigo, com mulheres fáceis
que ocasionalmente aceitam vir ao meu apartamento.
Uma vez quase me casei.
Ela era uma mulher bonita, gostosa, inteligente e interessante, mas muito
pragmática e objetiva. Se cansou do meu jeito doidivanas, desleixado e
irresponsável. Disse-me que iria em busca de um futuro estável, com alguém
disposto a crescer em sua companhia. Nunca mais a vi. Preferi ficar em casa e
sofrer em silêncio, ou melhor, optei por anestesiar minha dor e solidão com
sexo fácil, comprimidos e cerveja, esta sim companheira inseparável. Hoje ela
deve ser uma mulher de sucesso, casada quiçá com um advogado ou médico, e deve
ter uma prole linda e comportada, autêntica família Doriana. Que se dane, eles
também vão morrer, e, provavelmente, sem nada legar para a posteridade. Eu
posso ser um louco solitário e leviano, com pouco mais na geladeira do que
água, mas sou um autor, deixarei um legado, ainda que inédito. Ainda que apenas
literatura.
As Cordilheiras dos
Andes agora estão completamente submersas, vejo na internet. Falta muito pouco,
enfim. Recordo-me, com um sorriso irônico, que sempre acreditei que o mundo acabaria
com as águas. Mas achava que isso aconteceria na virada do milênio.
Justificava-me dizendo que toda vez que o mundo acabava era desse jeito:
lembrava-me da Arca de Noé, das Metamorfoses,
de Atlândida, o continente perdido. Com o aquecimento global e o derretimento
das geleiras polares, nada mais convincente para a minha crença no fim do mundo
que ele se desse pelo oceano. Mas jamais previ que uma onda gigante, sem
precedentes na história, ocasionada por um meteoro, fosse nos sepultar.
Sinto-me agora como um pirata morto no navio, atirado ao mar para o eterno
descanso.
Mas de que vou
descansar? Deste texto. Ele não é fruto de inspiração, jamais a tive. Só eu sei
o esforço que é concluir uma frase, quantos cigarros são fumados antes de
finalizar um parágrafo. Não podia ser diferente. É justo que a obra da minha
vida demande tempo e suor. Só assim me sentirei realizado. Sempre busquei as
coisas mais fáceis, nunca gostei de trabalho, tarefas, responsabilidades. Agora,
à espera do fim próximo, me dou pela primeira e última vez um trabalho
dignificante. E até que estou gostando da experiência. Se pudesse voltar atrás,
muitas coisas faria diferente em minha vida. Acho que é este o sentimento que
os bons católicos devem nutrir na hora da morte – o arrependimento. Mas não é
exatamente isso o que sinto, mas um vazio indelével, eloquente mesmo. Talvez
preenchido quando der o ponto final, a conclusão, pela primeira vez na minha
vida, de alguma coisa.
Acendo mais um cigarro
e abro a última cerveja da geladeira, a saideira de minha existência. Lá fora,
pânico, gritos, sirenes, buzinas, estrondos. Aqui dentro, uma paz indefectível.
E a certeza de que estou próximo do ponto fin