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terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Beijo na língua

Resolvi neste início de ano colocar minhas leituras em dia e diminuir a pilha de livros à espera de tempo para serem lidos. Melhor escolha não haveria do que começar pelos três livros do escritor e poeta Wanderlino Teixeira Leite Netto que há muito engrossavam a já empoeirada pilha. O primeiro, Beijo de língua, poderia ser catalogado como mais um livro de contos. Com suas narrativas curtas, cada texto, por mais que formalmente endossasse a nomenclatura de se tratar de contos, em muito se aproxima de uma outra obra-prima sua, Retrato sem moldura, esta sim já devida e saboreosamente lida há tempos. A proximidade se dá porque os contos trabalham, poeticamente, com o invisível do cotidiano, com as emoções e sensações alheias, muitas vezes, a um olhar menos atento, mas que não escapam do olhar arguto do poeta. Wanderlino consegue, em Beijo de língua, fazer da prosa poesia e, assim, render louros à nossa língua, beijá-la, respeitá-la, amá-la, venerá-la e cultuá-la. Seu texto não é apenas muito bem escrito academicamente, mas, sobretudo, captura com maestria a essência humana, sem com isso recorrer à grandiosidade dos grandes feitos; ao contrário, é justamente no aparentemente insignificante que ele encontra e explicita o belo, que dá ao simples o status de arte. Sou capaz de desafiar qualquer leitor a procurar, neste livro, as imperfeições que exaustiva e obsessivamente eram alvo de Lupércio, personagem de "Ponto Final", um dos últimos contos do volume. Neste, "pouco lhe interessava a trama, muito menos o destino dos personagens. Na poesia, desdenhava das rimas e das metáforas. Punha sempre de lado a perspicácia do cronista e a engenhosidade de quem tece um conto. Das notícias dos jornais, quase nada absorvia. O interesse de Lupércio concentrava-se nos erros". Pobre Lupércio... Pode parecer paradoxal que um livro que beije com tanto amor, tesão e ao mesmo tempo respeito a língua apresente um protagonista ávido por encontrar nela apenas erros. Mas se por um lado a língua nos capacita a construir o mundo, por outro "foram elas, as palavras, as responsáveis pelos abismos, pelos tantos desencontros", como escrito em "Arlete, Arlete...", ponto alto do livro, segundo Lena Jesus Ponte, sua prefaciodora. Aqui, o romance do protagonista com Arlete poderia ser outro caso ela "não me tivesse dito o que disse, a esta hora eu estaria ao seu lado. Se as palavras inexistissem, tudo teria sido diferente entre mim e Arlete. Mas há o verbo, maldito seja. (...) Nesses anos todos, Arlete nunca me afagou com palavras, só seus olhos me fizeram carinho". Ao contrário de Arlete, as palavras são a matéria-prima para um delicioso beijo de língua, a despeito de qualquer filosofismo acerca da linguagem.
O segundo livro lido foi Asas na pedra, seleção de haicais. Das narrativas em prosa curtas o autor passa para os poemas japoneses de três versos, capazes de dizer muita coisa com poucas palavras. Recordo-me que, ainda na graduação em Letras, o professor Paulo Bezerra dizia entusiasmado que um livro inteiro poderia ser escrito a partir de um único poema.  O próprio título leva-nos à prolixa contradição de objetos da natureza duros e imóveis capazes de se tornarem alados e ganhar altura. E isso só é possível graças à poesia. A primeira parte do livro, intitulada "Pedra", não apresenta a dureza deste signo, mas sim preciosidades como "Em busca de si,/ foi aos álbuns de retratos./ Total desencontro." A imobilidade de um passado registrado em fotografias encontra a mobilidade de um presente que se quer conhecer, embora o caminho escolhido tenha sido improfícuo. O poeta conseguiu, nestes três versos, dizer muito mais do que se diria em livros de psicanálise ou mesmo de filosofia. A segunda parte do livro chama-se "Asas". Aqui, "O vento é coreógrafo./ As folhas, as bailarinas./ Meus olhos, plateia." Este haicai serviria muito bem como epígrafe de Beijo de língua, pois indicia o olhar atento do poeta para a simplicidade/ complexidade da vida. Um último haicai como aperitivo: "Navego em poemas./ Misto de barco e de luz,/ os versos são velas." E como velas são capazes de nos conduzir para o infinito.
Com estas velas cheguei ao mais recente livro de Wanderlino Teixeira Leite Netto, lançado em 2012, intitulado Café pingado. Liberto dos versos formais de um haicai, em seu último lançamento o poeta entrega-se aos versos livres, pois "A poesia ousa, urde,/ em tudo pousa, a tudo alude." Sendo assim, fica fácil compreender o poema "Profissão de fé": "Aos doze anos, entre os muitos planos,/ sonhava em ser garçom./ Acreditava ter o dom de bem servir o alimento./ Há desejos submersos habitando em mim./ Sustento ainda aquele intento./ Sendo assim, faço versos." Cabe a nós nos servirmos do banquete oferecido por Wanderlino em Café pingado, que dialoga, dentre outros, com Fernando Pessoa, em "Danos da verdade", já que "o poeta é mesmo um fingidor..." Curiosamente, após em mais de um momento dizer-se adepto dos versos livres, ansioso por um encontro com algum modernista e avesso a Bilac, como no conto "Garçom, mais um pouco de água quente!", de Beijo de língua, o poeta de Café pingado encerra o livro com o "Soneto da colheita e da transformação", que nos faz pensar em quão fingidor ele de fato o é. Ou seria apenas a demonstração cabal de sua versatilidade? Mais do que qualquer palavra minha, vale mais a pena lermos este soneto: "Cabe ao poeta antes de tudo estar atento./ A poesia se desvela a todo instante,/ mas é preciso assimilar cada momento/ para extrair o seu detalhe relevante.// Uma palavra, uma atitude, um sofrimento,/ um riso franco, uma carência, um de repente,/ o pôr do sol, a chuva fina, o mar e o vento,/ para o poeta são o adubo da semente.// Mas o poeta deve ter sempre consigo/ que a poesia tem um quê de universal. Nada de atá-la fortemente ao próprio umbigo.// Poesia é o pão e o verso em muito lembra o trigo./ Cabe ao poeta ir apanhá-lo no trigal/ e transformá-lo na alimento que bendigo."
Ora, que nos alimentemos da poesia de Wanderlino, seja em prosa ou em verso. Para quem se interessar em conhecer um pouco mais a sua obra, basta clicar aqui.

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