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sexta-feira, 21 de abril de 2017

A literatura como arquivo da ditadura brasileira, de Eurídice Figueiredo


A literatura, como a arte em geral, serve, dentre outras coisas, para transformar a realidade. Em muitos casos, para perpetuar a memória e manter vivos momentos importantes da história do país. Somente a anamnese, via ficção, é capaz de reviver e tornar verossímil aquilo que, para a realidade, é absurdo. Muitos são os romances da literatura brasileira que tematizam e eternizam os anos agônicos de repressão, tortura, exílio e morte daqueles que se opuseram ao regime militar. Apesar de, historicamente, ser muito recente o término da ditadura e a conquista da democracia, parece permanecer olvido o período dos anos de chumbo que o país atravessou. As recentes manifestações populares de intervenção militar e o crescente índice de aceitação de Jair Bolsonaro para assumir a presidência do país, via sufrágio universal (!), indicam que pouco se sabe sobre os anos em que os militares estiveram no poder. Particularmente, prefiro acreditar em ignorância do que em ideologia consciente dos partidários da ditadura.
Eurídice Figueiredo, em seu A literatura como arquivo da ditadura brasileira, elenca e analisa um bom número de romances que tratam desse período, separando-os em três períodos distintos: de 1964 a 1979, de 1979 a 2000 e, finalmente, de 2000 a 2016. Suas análises são concisas e cirúrgicas, mapeando a relativa pouca produção literária sobre a ditadura militar brasileira. Dentre os escritores contemporâneos, a hipótese da ausência de mais textos, autobiográficos ou não, sobre nossa história recente é atribuída à falta da vivência daquele período, o que explica por um lado, mas alarma por outro, pois, com a lei da anistia, nos abstivemos de investigar e condenar os criminosos responsáveis pela desumanidade da tortura e da morte de muitos brasileiros, além de denunciar o pouco ou nenhum contato com a história recente brasileira. A literatura, apesar de escassa sobre essa temática, tem papel fundamental para avivar os horrores por que muitos passaram, em maior ou menor grau de sofrimento.
Antes de analisar os romances, Eurídice Figueiredo "arma-se" de um arcabouço teórico frutífero para discutir o trauma por que passaram as vítimas da barbárie militar que, em nome da democracia e dos bons costumes, paradoxalmente cerceia, justamente, a democracia. Não vivíamos democraticamente, muito embora fosse em nome da liberdade que o cerco se fechava contra o perigo vermelho. Muitos episódios, nesse sentido, são risíveis, apesar de trágicos. Aqueles que se opuseram às arbitrariedades do regime militar sofreram na pele as consequências da luta por um país justo e livre, prisioneiros da tentativa de soberania que os EUA impunham em plena Guerra Fria. Vale lembrar que o PCB, ainda durante o Governo Vargas, mantinha-se na clandestinidade e que os comunistas, para permanecerem atuantes, necessitavam consorciar-se a outros partidos legalizados.
Hoje, na segunda década do século XXI, insiste-se muito em limitar o local de fala sobre determinadas "minorias" aos componentes das mesmas: as lutas em prol de justiça social e igualdade de negros, homossexuais, transexuais, mulheres, índios etc. são legitimadas, via de regra, apenas se encabeçadas pelos próprios. Por um lado, entendo a reivindicação do "local de fala" desses grupos marginalizados e vitimizados desde sempre por uma sociedade branca, patriarcal e heterossexual, mas, por outro, a segmentação, a meu ver, fragiliza e enfraquece cada um desses grupos. Escrevendo sobre as vítimas subversivas contrárias e combatentes ao regime militar, Eurídice Figueiredo finaliza o livro com um relato pessoal, inserindo-se, assim, dentre as pessoas que vivenciaram o horror, o medo e o exílio daquele período. Pesquisadora e militante se coadunam, convergem para o mesmo ponto, e o livro encerra-se com um depoimento emocionante e humano. A leitura de A literatura como arquivo da ditadura brasileira é rica e importante não apenas porque evidencia a excelência da pesquisa, mas também porque demonstra a vivência sobre o corpus da mesma. Além, claro, de enumerar as obras que tratam de tema tão caro para a nossa história.

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