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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Carta aberta para Igor Fagundes

 

Querido Igor,

meu próximo livro de poesia, Do amor e das suas (des)formas, sairá pela 7 Letras em 2021. É um livro curto, já no prelo, com 34 poemas, escritos em 2016, e em 2019 foram acrescentados 34 desenhos de autoria de minha mãe, Oci. Tal acréscimo serviu, dentre outras coisas, para me aproximar dela, que já está em outro plano, e porque esse diálogo entre poesia e desenho (uma coisa só - macumbança) exemplifica o amor incondicional de mãe-filho e filho-mãe. Digo isso não para me autopromover, mas para dar crédito a um grande e querido amigo, Seu Tranca-Rua de Embaré, que me disse no terreiro: "Escreva sobre o amor". Ao ouvir isso, nenhuma importância dei a ele, e gira após gira ele retornava imperativo e amigo com a mesma fala "escreva sobre o amor". Enfim me rendi e ainda em 2016 os poemas estavam prontos, esperando apenas os desenhos. Inicialmente não havia a intenção de unir nossas artes, mas que sei eu? Sei apenas sem saber por quê que demoro muito para publicar, e ele, que tudo sabe, deve estar a rir da união. 

Meu primeiro livro de poesias, Pretérito Imperfeito, contém poemas escritos entre 1992 e 2012, mas eu nunca pensei em publicá-los porque não me considerava poeta, apenas um diletante bobo e petulante. Foi Leonardo Davino, irmão de todas as vidas, quem leu e me encorajou a publicar. Naturalmente é dele a orelha, como é a ele que eu agradeço por conhecer você, ao sugerir que eu lesse Poética na incorporação. Foi uma leitura maravilhosa que me fez aprender muito, mas ainda necessitei de alguns anos até amadurecer mais: sou um espírito em evolução (perdoe a redundância) e carecia de mais espiritualidade. Como ainda necessito e muito. A macumba apareceu na minha vida em 2006 e escrevo, também, para lhe contar isso. Na verdade, mais do que falar contigo, falo comigo mesmo, é necessário.

Até 2006, eu era ateu convicto. Chato, diria, porque eu era daquele tipo de ateu que menosprezava a fé e a crença alheias e procurava, cheio de razão (?), provar a inexistência de qualquer coisa sobre-humana. Elisa de Castro, minha companheira há 17 anos e mãe de nossas três Marias, ao contrário, sempre esteve ligada à vida espiritual, mais que isso, à macumba. Ela convidou-me, naquele ano, a ir a uma festa de São Jorge na Tenda Espírita São Jorge, a sétima casa de umbanda aberta pelo Caboclo das 7 Encruzilhadas e que mantém-se com trabalhos ininterruptos até hoje. Obviamente, desdenhei do convite e ela seguiu macumbando sozinha. Diante da minha incredulidade e sobretudo da minha zombaria, Elisa contou para um amigo nosso em comum o meu ateísmo. Ele também é macumbeiro, mas eu desconhecia isso. Foi então que a magia ocorreu. Sem me dizer para onde íamos, e com o pretexto de que precisava da minha ajuda para resolver um problema, levou-me para o Grupo Umbandista Caboclo Rompe Mato. Era uma gira de Preto Velho. Recordo-me que, enquanto assistia a gira, mentalmente criticava a ingenuidade daquelas pessoas, encenando um teatro (macumbança). Enfim, chegou a vez de me sentar diante da Velha Maria do Rosário e, ao dar as mãos a ela, senti algo que jamais havia sentido. E ainda não consigo explicar, só sentir. A bondade e a sabedoria próprias dos Pretos Velhos me colocaram uma pulga atrás da orelha. Se a espiritualidade não existe, o que foi que senti? Se nada disso é real (!), como ela me disse coisas que mais ninguém sabia? Uma semana se passou com a inquietação gritando em mim, até que voltei com o Duda para a gira seguinte, de Exu. Ali me rendi e macumbancei. Comecei a trabalhar no terreiro e a me desenvolver como médium. Alguns anos fiquei no Rompe Mato até receber orientação do alto de que meu lugar era na Tenda Espírita São Jorge, onde trabalho até hoje.

Há muitos pormenores que mereceriam registro aqui, mas não é exatamente sobre mim que pretendo falar, muito embora sempre seja. Até o dia 15 desse mês, eu era um macumbeiro que não acreditava em Deus e que sempre duvidava de tudo. Sobretudo porque possuo uma doença séria que a macumba não dava jeito de curar. Dia 15, fui acometido por uma grave crise novamente e algo diferente ocorreu. Não há explicação. Também não houve cura. Mas houve cura macumbança. O mais próximo que a linguagem pode afirmar é que ocorreu um despertar espiritual. Sou um novo homem desde então. E lá se vão "apenas" 7 dias até o momento que lhe escrevo. Sete. Nada é à toa. 

Dia 16 fui com Elisa e nossas Marias nos refugiar na natureza após meses de isolamento social presos em casa. Era necessário estar próximo do verde, de Oxóssi, de Oxum (minha mãe) e de Omulu (meu pai). No meio da natureza, permanecemos em isolamento, mas não estávamos sozinhos porque nunca estivemos. A caminho de lá, me ocorreu escrever um Manifesto Autofágico, ainda a ser escrito. Na bagagem, Macumbança, único (?) livro que levei comigo. 

Em 2017 defendi minha tese de doutorado, Bruxaria do início ao fim, a ser publicada pela EdUERJ em 2021. Iniciei o doutorado com um projeto para pesquisar blogs, mas exatamente após dois anos, sentia-me insatisfeito com o corpus da pesquisa e não via razão para prosseguir. Exu então se manifestou. Durante uma gira, Dona Maria Padilha me disse para escrever o que eu quisesse, que não deixasse ninguém me impedir. E então a encruzilhada mostrou meu caminho, destrancou a pesquisa e mergulhei na obra do bruxo. Na minha modesta opinião, Machado de Assis é nosso maior nome literário, inigualável e penso que jamais alguém conseguirá escrever-dançar-dançar-escrever como ele. Propus uma tese que também contivesse ficção e busquei uma escrita-pastiche. Assim abro um dos capítulos centrais para a pesquisa, que, humildemente, em vários momentos se aproxima do que você escreve em Macumbança, mas sem o seu talento, ou melhor, o seu axé: "Meu caro leitor crítico, algumas páginas atrás afirmei, mais de uma vez, que a ficção é real. Talvez aches esse argumento absurdo, iludindo-se ou conhecendo-se um ente da realidade estabelecida; mas eu chamo a tua atenção para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer carecerá da colaboração de alguns teóricos e pensadores aptos a me auxiliar, ou melhor, a te ajudar a te reconhecer como um ente ficcional. Nesse ponto, assumo as contradições desse mundo e obedeço às exigências acadêmicas das quais pretendia fugir, pois valso no compasso da orquestra. Como requer a valsa, dividirei em três partes este capítulo, cada uma correspondendo a um movimento". A tese dança. Os leitores dirão se obtive êxito, mas ao menos a banca, meus cinco leitores iniciais, atingindo ao menos o desejo de Brás Cubas, que se contentaria com esse número, aprovou a tese. Se somarmos os dois suplentes, foram sete leitores. Sete. Ela é dedicada ao amigo-irmão Leonardo Davino, o melhor e mais luxuoso interlocutor que eu poderia ter durante a pesquisa.

Voltemos à natureza. No meio do silêncio, da floresta, do lago e da lua (rua), iniciei a leitura de Macumbança. Eu teria lido em um único dia simplesmente porque o livro é genial. Digo que é genial porque me falta palavra mais adequada para expressar o que senti. As palavras sempre a me faltar. O indizível sempre dando um jeito de se dizer. A magia sempre mágica. Não poderia terminar a leitura em um único dia porque passaria os demais sem outro (?) livro e preciso de livros. Assim, a cada dia lia um pouco e descobri que sou incapaz de dizer o que quer que seja de Macumbança porque nada que se diga é suficiente. Se há algo a dizer para elogiar seu trabalho é manter o silêncio, que contém todas as palavras. Fui capaz de escrever crítica e teoricamente sobre Machado de Assis, mas não tenho palavra alguma para resenhar, prefaciar, criticar Macumbança. Nenhuma. Isto é: todas. A ela (a você) só gratidão. Lisonjeio-me ao perceber afinidades entre o que escrevi e o que você escreve, mas se há diálogo, é conceitual, não estilístico. O seu é singular. Cogitei pinçar alguns trechos meus e seus para me engrandecer, mas fica o convite para a leitura. 

Desde que me entendo por macumbeiro fujo da espiritualidade, procurando viver sob o diapasão da razão, da teoria, da filosofia. Se na tese eu quincasborbeei, na vida eu agora macumbanço sem receio algum. A leitura foi sobretudo um aprendizado para a vida. Não mais nego quem sou. Sou poeta, escritor, crítico, professor, pai, marido, filho, macumbeiro. Sou o mesmo homem repartido por todos os homens, escrevo a poesia repartida por todas as poesias, vivo a vida vivida por todas as vidas. A teoria não explica o poético, antes o poético é. O curioso é que defendi isso na tese, mas não sentia, ou melhor, na encruza, apenas pensava. Agora sinto-me pleno. Macumbançar é verbo que não se conjuga no pretérito, sempre no presente.

Antes de regressar da natureza, olhei para o fundo do lago e vi a lua. Era dia claro e a lua estava no fundo das águas de Oxum. Imediatamente olhei para o alto e a vi. 

Eu vi chover eu vi relampejar / mas mesmo assim o céu estava azul / Firma seu ponto na folha da Jurema / Oxóssi é bamba no aracaju

Agora, de volta à cidade, à rua

Mas ele é, capitão da encruzilhada (Ele é) / Mas ele é, ordenança de ogum / Sua divisa quem lhe deu foi oxalá / Sua coroa quem lhe deu foi omulú / Ô salve o sol, salve a estrela, salve a lua / Saravá seu tranca rua, que é dono / Da gira no meio da rua

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