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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Carta aberta para Leonardo Davino

Querido Léo,


acabei de ler seu livro Domingou a pandemia e escrevo imediatamente após encerrá-lo. Recordo apenas de um ou outro texto ter lido no Facebook, mas como ando avesso a redes sociais, a maioria dos registros de seu diário pandêmico era ainda desconhecida. Durante a leitura, tive o desejo de escrever uma resenha mais acadêmica para publicar em algum periódico, mas, devido a nossa amizade e, sobretudo, ao meio pelo qual semanalmente você publicava, penso ser mais apropriado dizer no blog de forma menos formal o que seu livro despertou em mim.

Em primeiro lugar e antes de mais nada, seu receio confidenciado no dia do lançamento de que o livro poderia soar anacrônico é totalmente injustificável. Como disse naquele dia, você publicava ainda no calor da hora e com uma mesma temática, muito diferente do meu projeto de publicar os posts de meu blog. Seu livro é excelente e traça um panorama muito interessante da atualidade, afinal, ainda se morre de Covid-19 nos últimos dias do desgoverno do presidento.

Você sabe que pesquisei por um bom tempo escritas de si e cheguei a publicar algumas coisas a esse respeito. Mas essa não foi a única razão de me deliciar com seu mais recente livro. Do mesmo modo que os textos dos ex-exilados eram mais que uma escrita de si, mas de toda uma geração que vivenciou os horrores da ditadura militar, Domingou a pandemia também cumpre a função de um eu compartilhado com os outros, em um exercício de alteridade ímpar. Em vários momentos, inclusive, percebi certa monotonia, mas isso não é em absoluto uma crítica, justo o contrário (recorde-se que Mário de Andrade rotulou a literatura de Machado de monótona). A monotonia à qual me refiro diz respeito ao isolamento social, que nos fez a todos permanecer em casa nutrindo os mesmos hábitos diários em busca da sobrevivência. E resistimos, apesar do presidento.

Durante o primeiro ano da pandemia, reli Decamerão de Boccaccio e A peste de Camus, obras maravilhosas de dois momentos parecidos com o que (ainda) vivemos. Seu livro deu uma outra perspectiva literária para um momento tão difícil. E, posso dizer sem medo, que serviu, enquanto era escrito seriadamente no Facebook, como formação de irmandades e redes de solidariedade que você tanto preza e prezou. Da mesma maneira que havia quem se despusesse a cantar e a tocar instrumentos nas janelas, como alguns vizinhos meus e tantos outros por aí; que houve uma proliferação de lives das mais diversas; que se buscou alento nas artes em geral para suportar a dura realidade; seus posts cumpriram igualmente esse papel para quem os acompanhava domingo a domingo. E não se preocupe porque a reunião deles em livro é de uma forma tão coesa e bonita que em nada prejudica a publicação pela editora com a qual você manifestou desejo de publicar. A propósito, ótima iniciativa do editor responsável.

A leitura imediatamente anterior que eu havia feito foi A civilização do espetáculo, do Mario Vargas Llosa. Ele apresenta uma verve bastante crítica e ácida à espetacularização que vivemos hoje, à cultura de massas, de certa forma num tom bastante adorniano no clássico ensaio A indústria cultural. Confesso que partilho do pessimismo deles, talvez por isso, dentre outras questões, me ausente das redes sociais, embora reconheça que há vida inteligente em qualquer lugar, mas o que mais me incomoda é a patrulha ideológica que reina pelos feicibuques da vida. Como você escreveu uma escrita de si e adoto o formato de carta, falo de mim também e aproveito para reativar o blog, há muito desatualizado. 

O contraditório disso é que, por mais que me sinta propenso a concordar com Adorno e Vargas Llosa, é impossível hoje eu não me integrar também à cultura de massas. Eu a vivo diariamente e dela faço meu lazer. Como diria Machado, as contradições são desse mundo. E então não posso deixar de lembrar de Umberto Eco e de seu Apocalípticos e integrados. Não de trata de uma coisa ou outra, mas de um e. E não à toa você cita o italiano no seu livro. Pois é, sou apocalíptico e integrado. Talvez se Llosa lesse Domingou a pandemia, certamente faria críticas menos agudas aos escritos em redes sociais. Você demonstra uma articulação excelente de vários discursos, desde as canções, seu objeto de pesquisa, passando pela poesia, literatura, filosofia, artes plásticas, crítica. E de forma tão extraordinária que me lembrou seu projeto ainda inédito dos mashups. Já lhe disse que você deveria retomá-los e insisto. 

Léo, a pandemia irá acabar definitivamente, assim como o presidento está com suas horas contadas. Mas seu livro perdurará, não só como uma escrita de um eu que atravessou o confinamento social, mas igualmente como registro de uma época, uma crônica social que abarca todas as mazelas de um período a ser lembrado, com várias referências sociopolíticas importantes demais para serem esquecidas. Obrigado pela rede de apoio, antes, durante e para depois da pandemia.

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