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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

(Des)canonizar

Há alguns pouco anos, conversava com um amigo sobre minha pesquisa (acho que estava no final do doutorado, salvo engano) e mencionei o cânone. Como ele não é da área de literatura e é católico praticante, recordo-me perfeitamente da sua reação em função justamente do caráter inusitado: espantou-se com o emprego da palavra, pois, além de desconhecer que é um termo usual nos estudos literários, atribuía à palavra o atributo sacro. Pois bem, a literatura é feita por homens e para homens, não por divindade alguma. 

Relembro esse episódio anedótico porque já faz algum tempo que tenho me interessado em pesquisar e problematizar o cânone literário. Em 2021 publiquei dois ensaios sobre os romances Exaltação!, de Albertina Bertha, e O Coronel Sangrado, de Inglês de Sousa. Ambos são boas obras praticamente de todo olvidadas pela academia. Voltando mais um pouco no tempo, em 2013 iniciei o doutorado com a intenção de pesquisar blogs de diletantes amadores de modo a pesquisar os processos de autoficcionalização de pessoas comuns, ainda distantes do circuito literário. Ironicamente, abandonei o projeto inicial e defendi a tese, publicada também em 2021, sobre Machado de Assis, talvez nosso nome mais canônico, mas com a intenção de, dentre outras questões, evidenciar a importância dos quatro primeiros romances do bruxo considerados "menores" se comparados à excelência da produção romanesca a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas. O cânone, enfim, há tempos tem sido motivo de minha inquietação como pesquisador.

Naturalmente, a partir dos estudos culturais, muito tem se discutido sobre o tema de forma bastante interessante e instigante. Obras de autores periféricos, negros, homossexuais, de autoria feminina mais e mais vêm à luz em estudos interessantíssimos e que se inquietam em consagrar ao cânone títulos comumente de homens brancos, afinal, o cânone é formado por homens e para homens. Além disso, talvez seja válida a afirmativa de que as histórias das literaturas nacionais sejam também grandes formadoras daquilo que se convencionou denominar como obras merecedoras de serem lidas, em um processo de retroalimentação: lemos porque está nos manuais de historiografia literária e se lá estão, temos que ler. 

Falando em historiografia, é comum a assertiva de que é difícil historiar o presente, muito embora isso seja cada vez mais relativizado. Se por um lado pensa-se que é necessários um distanciamento temporal para se olhar com atenção para o presente, por outro são muitos os escritores contemporâneos de certa forma canônicos, haja vista o número crescente de autores ainda vivos e produzindo estudados e pesquisados em teses, dissertações, ensaios. E a despeito de qualquer coisa, há cada vez mais publicações de autores e autoras de qualidade no século XXI. Por que apenas alguns recebem atenção crítica e alvíssaras de pesquisadores? Muitas são as hipóteses para essa seleção sem entrar no mérito da qualidade estética e literária dos mesmos. Tiragens por grandes editoras é apenas um dos vários exemplos que poderiam ser elencados aqui. E a facilidade de publicação por editoras de menor porte, normalmente com edições por demanda, pode servir como uma forma de deslegitimização das publicações de jovens autores ainda distantes de leitura atenta da academia.

Para quem tem interesse pelo tema, recomendo a leitura de Disciplina, Cânone: continuidade e rupturas, livro organizado por Jovita Norona, Maria Clara C. de Oliveira, Maria Luiza S. Pereira e Rogério Ferreira, resultado da sexta edição do simpósio internacional que o Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da UFJF, realizou em 2012. Para mim, certamente, foi de grande valia a leitura e já tenho mais alinhavada a construção argumentativa de alguns textos que irei escrever em breve. Além de uma entrevista com Marcelino Freire e Sérgio Vaz, possui cinco partes, a saber: os sistemas literários nacionais, o cânone literário e a crítica hoje; gênero e reconfigurações do cânone: escritas do eu; literaturas: (in)disciplinas; o sistema literário e a tradução; crítica literária, leitura e cultura. São vários os pesquisadores que assinam os capítulos e, como é comum em coletâneas como essa, é natural que determinado assunto interesse mais ou menos ao leitor, mas de todos os textos tira-se proveito.

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