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quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Andanças Andinas - contos diminutos

É muito comum na literatura brasileira contemporânea o uso da primeira pessoa do singular. Trata-se de um eu que narra suas vivências e que, de alguma maneira, faz de si também um personagem de ficção, confundindo dados empíricos com passagens completamente ficcionais. O leitor, diante desse hibridismo textual, fica indeciso se deve ou não acreditar nas informações autobiográficas ou se aceita o texto apenas como fabulação. Esse tipo de recurso literário que mescla autobiografia e ficção é conhecido como autoficção e está amplamente presente em diversos autores da prosa e da poesia atuais, bem como - não poderia ser diferente - nos blogs. O caráter cronístico dos blogs é propício para a manifestação de um eu que fala de si ficcionalizando-se, em maior ou menor grau. Se quisermos sair do universo literário e pensarmos essa aparição da primeira pessoa em termos antropológicos, sociológicos e culturais, perceberemos um exibicionismo e um voyeurismo demasiadamente marcantes em nosso tempo. Webcams, máquinas digitais, redes sociais, câmaras de segurança, reality shows expõem a vida íntima de um eu que não tem mais pudor e recato; um eu que quer aparecer e, se possível, por que não, dar também o seu recado.
Faço essa introdução para dizer que Wanderlino Teixeira Leite Netto, em seu Andanças Andinas - contos diminutos, vale-se e ao mesmo tempo esquiva-se dessa prática autoficcional. Poderíamos dizer que ele se aproxima da autoficção no sentido de que seu livro é o resultado de uma viagem realizada, em 1996, aos Andes, isto é, seu livro seria um livro de memórias e, portanto, um livro cuja a observação de sua primeira pessoa é imprescindível para a realização da obra. Sem o empirismo do viajante, que percorreu os Andes peruanos e bolivianos e que pôde vivenciar e testemunhar as diferenças culturais e as riquezas imateriais destes países, o livro não existiria. O próprio autor nos diz isso no início do livro: "Voltei vivamente impressionado com o que vi e ouvi. Imagens e palavras ficaram hibernando num canto qualquer de minha mente, sem que me incomodasse. Belo dia, durante a caminhada matinal que realizo, resolveram acordar da letargia. Aí, sim, provocaram enorme inquietação. Ante tal desassossego, decidi escrever esses minicontos".
É claro que se formos pensar a autoficcção teoricamente, jamais poderíamos dizer que essa experiência turística seria suficiente para qualificá-la como tal. Quis chamar a atenção para o fato de que, como nos relatos autoficcionais stricto sensu, é uma vivência empírica que dá suporte e embasamento para a produção textual. No caso de Andanças Andinas, todavia, as semelhanças param aí. Ao longo dos quarenta e dois minicontos, o pronome eu não aparece, tampouco qualquer desinência que nos remeta a ele; Wanderlino conseguiu utilizar sua experiência de vida sem, contudo, marcá-la textualmente. Não fosse o prefácio esclarecendo o leitor da viagem realizada, não há nenhuma marca textual que evidencie isso, o que é, a meu ver, muito positivo, pois o autor consegue transformar vida em literatura sem necessariamente se presentificar e, assim, se distancia da autoficção.
Não sei dizer, aliás, se o termo minicontos é apropriado, uma vez que eles são, na realidade, poesia. Não me refiro à prosa poética, mas à poesia versificada mesmo, com um força poética bastante singular. Ou seria uma prosa versificada? Talvez esta segunda alternativa seja mais apropriada para designar a construção discursiva em Andanças Andinas. Vale dizer que, prosa ou verso, é um texto acima de tudo poético. E é com o olhar do poeta atento e lúcido que ele abre o livro, mostrando que uma estátua do colonizador espanhol, diariamente polida por um nativo, o é não para enaltecer o europeu, mas simplesmente para que a memória dos conquistados permaneça viva. O abismo que há entre as culturas europeia e americana é tema de outros minicontos, todos muito bem escritos, sem o apelo desnecessário de uma literatura engajada. Wanderlino consegue escrever sobre a dicotomia riqueza x pobreza sem se valer de um panfletarismo que, via de regra, é pobre esteticamente.
Lendo os quarenta e dois minicontos que compõem o livro, o leitor terminará sua leitura com o desejo de realizar a mesma viagem e (re)descobrir os mesmos personagens apresentados por Wanderlino. Não se trata apenas de conhecer dois países vizinhos, mas de mergulhar numa história de colonização, subjugação, violência e imposição cultural que nós, brasileiros, apesar de geograficamente não termos a altura e o relevo andinos, conhecemos bem.

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