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terça-feira, 17 de setembro de 2013

Redenção

Quando criança, eu sonhava em ser astronauta, ou piloto de Fórmula 1. Queria ser diferente, fazer alguma coisa que me distinguisse dos demais, ser manchete, reconhecido, invejado. Não podia me imaginar trabalhando num escritório qualquer, sem nenhuma emoção, vítima da mesmice do cotidiano. Não, eu seria diferente. Ou astronauta ou piloto de Fórmula 1.
Nada melhor para mim, que vivia com a cabeça nas nuvens, do que fazer disso minha profissão. Sair da órbita terrestre, passar pela Lua, conhecer galáxias distantes e, quando voltar, ter aos meus pés todas as mulheres que eu quisesse. Do espaço, veria a Terra pequenininha, um ponto azul lindo e distante, capaz de caber no meu bolso. Sim, eu teria muito o que viver, inúmeras realizações, uma vida repleta de sucesso. Um planeta só seria pouco para mim.
Mas, não fosse isso, meu plano B estava assegurado. Viveria a 300 km/h, sem tempo a perder, a cada semana em uma pista diferente. Após alguns poucos meses, certamente me transformaria no ídolo de milhões de pessoas, estaria em todos os lugares, em programas de televisão, outdoors, capas de revistas. Teria produtos com meu nome e rosto na embalagem, seria exemplo para as crianças, e viveria a mil por hora, mesmo fora das pistas. Quando pequeno, sempre soube que havia muito o que fazer e que as minhas 24 horas diárias não seriam suficientes para todos os meus anseios. Pressa, eu tinha pressa para o sucesso, para viver a vida, para ser feliz, reconhecido e bem-sucedido.
À medida que eu fui crescendo, porém, minhas ambições infantis cederam espaço para metas mais plausíveis, realistas e comuns. Já não desejava conhecer o universo, tampouco correr num carro para atingir a fama e o estrelato. Viveria, agora, feliz com alguma profissão que me propiciasse uma boa qualidade de vida, que me permitisse algumas excentricidades, como viajar pelo mundo, pular de paraquedas, descer numa jaula submarina para ver, frente a frente, o grande tubarão branco, praticar esportes radicais – e sim, ter muitas mulheres. Poderia ser talvez um publicitário, roteirista ou quem sabe cineasta.
Mamãe me dizia que eu podia ser o que quisesse, que eu era um jovem talentoso, bom aluno, escrevia ótimas redações, que a Rede Globo me pagaria o que eu pedisse para me ter como um de seus redatores. Mamãe dizia, enfim, que eu podia continuar sonhando, pois um dia meus sonhos se transformariam em realidade. Nesse caso, não tinha erro. Bastava aguardar e esperar a vida acontecer, tudo não passava de uma questão de tempo. E enquanto esperava o início do meu final feliz, ia vivendo a vida sem grandes sobressaltos, sem preocupações, certo de que o destino estava traçado.
Mas o tempo passou e parece que mamãe se enganou. Não me tornei publicitário, cineasta, tampouco redator de televisão. O que mais me aproxima das minhas expectativas profissionais é a manutenção de um blog na internet onde posto, regularmente, algumas impressões de meu dia a dia. Desiludido, escrevo comentários sarcásticos sobre tudo aquilo que a vida me negou. Não poupo nada nem ninguém. Nem mesmo meus (poucos) leitores, meia dúzia de quatro ou cinco fiéis seguidores. Às vezes, até publico alguma coisa mais lírica, a depender do humor. E assim vou vivendo no meu conjugado aqui na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Sem dinheiro, sem mulheres, sem aventuras.
O alvo predileto de minhas críticas internáuticas é o número elevado de pessoas que acreditam na profecia de que a Terra vai acabar. Como assim? Quer dizer que a vida se extinguirá, que todos sucumbiremos, que não mais haverá amanhã? Idiotice, pensava eu. Agora, porém, acho que posso confessar que a implicância com os crédulos do fim do mundo se dava justamente porque a minha vida de glórias nunca começou, que dirá terminar. Como posso encerrar minha existência se eu simplesmente não iniciei nada. Não tive filhos, não plantei uma árvore e muito menos escrevi um livro. Quer dizer que a minha presença neste planeta foi completamente infrutífera?! Não realizei nenhum dos meus sonhos, não comi nem a metade das mulheres que eu desejei, não tive sucesso, dinheiro, status. Mas parece que agora sim eu vou para o espaço, a hora chegou. Inexoravelmente.
Sim, o mundo vai acabar. Hoje. Na verdade já começou o fim, resta-me apenas esperar que a onda gigante que começou a destruir tudo no Japão e na Oceania atinja o Brasil e o resto do mundo. Lá fora, ouço as buzinas, os gritos, o desespero. Muitos pretendem subir a serra para se refugiar da fúria advinda do oceano, mas a angústia da população só tornará o fim mais agônico. A televisão, que vai segundo a segundo noticiando o fim ao vivo, foi devidamente desligada. Aguardo a minha hora com resignação. Até com uma inesperada paz. Ao meu lado, o Marlboro, a cerveja e o desejo de deixar alguma coisa para a posteridade, para tornar menos vazia minha passagem pelo planeta. Cheguei a me perguntar, entre uma tragada e outra, que diferença isso faz agora, no meu último dia de vida. E a resposta que me dei é que possuo a derradeira oportunidade de fazer alguma coisa que valha a pena; que posso me redimir de mim mesmo enquanto espero a onda avassaladora chegar e me engolir; que posso fazer a cesta de três pontos no último segundo da final das Olimpíadas que não se realizarão.
Não deixarei a oportunidade escapar. Sentado diante de meu laptop, escrevo um conto autobiográfico que dará conta do que eu (não) fui em 33 anos de vida. Afinal, quem sabe se um único casal conseguirá resistir à fúria da natureza e repovoar o mundo, como um dia fizeram Adão e Eva? Ou se, num futuro distante, uma nave interplanetária não aterrissa aqui numa missão exploratória e descobre que um de seus nativos, depois de sonhar em conquistar o espaço, se conforta em deixar um conto que valha a pena ser lido?
Na verdade, mais do que tudo isso, o que me motiva a escrever este conto não são meus futuros leitores alienígenas, muito menos uma raça mutante, oriunda da maior e última hecatombe da humanidade, que poderá vir a descobrir a subjetividade de um de seus ancestrais, mas um acerto de contas comigo mesmo. Eu, que vivi de maneira inútil e desapercebida; que nada deixei de legado para as possíveis futuras gerações; que estive longe de meus planos mais sinceros, puros e imaculados; eu, para não morrer como um cão, no meu Processo; para fugir do nada da morte apregoado por Sartre, venho aqui não para escrever um texto, mas fazer uma reparação comigo mesmo. Este conto, escrito a poucos minutos de meu fim, será minha redenção. Poderei, depois do ponto final, partir em paz. Mamãe me dizia que eu poderia ser o que quisesse. Tudo o que quero agora é concluir esta miniautobiografia. Engenheiro das obras inacabadas, me dou agora a oportunidade de finalizar alguma coisa digna de nota. Ou que pelo menos mereça ser lida por alguém – se alguém houver para lê-la.
Vou me lembrando de todos os livros que comecei e não terminei de ler, mais preocupado que estava em curtir a vida e, por isso mesmo, não me dando conta de que as coisas que realmente valem a pena não são fugazes, mas perpassam gerações. É isso! A literatura é algo que desde Homero permanece, sejam as epopeias clássicas, os poemas líricos ou os romances burgueses. Uma vez escrito e registrado, o texto não é mais do autor, é do futuro, é da humanidade. Finalmente, à espera de meu fim iminente, percebo que o que almejei sempre esteve dentro de mim. Que importância teriam hoje os produtos com meu nome e rosto? Alguém se lembraria de um astronauta tupiniquim, que teria vivido provavelmente nos Estados Unidos, longe de sua terra e sua gente? As inúmeras mulheres com quem teria dividido a cama chorariam a minha morte? Certamente não. Mas este conto me redime. Com ele transcendo e alcanço a imortalidade. Agora autor, coloco-me ao lado de nomes importantes e desimportantes da literatura, não sou mais um Zé Ninguém. Agora, eu escrevo porque preciso, como sempre ouvi os escritores de verdade dizerem. Há em mim uma necessidade de me expressar, de externar meus sentimentos, de não permitir que a minha vida se finde junto com o meu corpo, condenado à espera da onda gigante.
Vou morrer em breve. A internet continua, segundo a segundo, atualizando a população sobre o avanço incontido da onda. Ilhas e mais ilhas do Pacífico desapareceram. Falta muito pouco. E mal comecei a escrever. Mamãe sempre se orgulhava das minhas redações, mas agora não consigo progredir, não posso escrever sobre minhas realizações. E me dou conta de que não as tive. Vivo solitário num bairro superpovoado, mas sem nenhum amigo, com mulheres fáceis que ocasionalmente aceitam vir ao meu apartamento.
Uma vez quase me casei. Ela era uma mulher bonita, gostosa, inteligente e interessante, mas muito pragmática e objetiva. Se cansou do meu jeito doidivanas, desleixado e irresponsável. Disse-me que iria em busca de um futuro estável, com alguém disposto a crescer em sua companhia. Nunca mais a vi. Preferi ficar em casa e sofrer em silêncio, ou melhor, optei por anestesiar minha dor e solidão com sexo fácil, comprimidos e cerveja, esta sim companheira inseparável. Hoje ela deve ser uma mulher de sucesso, casada quiçá com um advogado ou médico, e deve ter uma prole linda e comportada, autêntica família Doriana. Que se dane, eles também vão morrer, e, provavelmente, sem nada legar para a posteridade. Eu posso ser um louco solitário e leviano, com pouco mais na geladeira do que água, mas sou um autor, deixarei um legado, ainda que inédito. Ainda que apenas literatura.
As Cordilheiras dos Andes agora estão completamente submersas, vejo na internet. Falta muito pouco, enfim. Recordo-me, com um sorriso irônico, que sempre acreditei que o mundo acabaria com as águas. Mas achava que isso aconteceria na virada do milênio. Justificava-me dizendo que toda vez que o mundo acabava era desse jeito: lembrava-me da Arca de Noé, das Metamorfoses, de Atlândida, o continente perdido. Com o aquecimento global e o derretimento das geleiras polares, nada mais convincente para a minha crença no fim do mundo que ele se desse pelo oceano. Mas jamais previ que uma onda gigante, sem precedentes na história, ocasionada por um meteoro, fosse nos sepultar. Sinto-me agora como um pirata morto no navio, atirado ao mar para o eterno descanso.
Mas de que vou descansar? Deste texto. Ele não é fruto de inspiração, jamais a tive. Só eu sei o esforço que é concluir uma frase, quantos cigarros são fumados antes de finalizar um parágrafo. Não podia ser diferente. É justo que a obra da minha vida demande tempo e suor. Só assim me sentirei realizado. Sempre busquei as coisas mais fáceis, nunca gostei de trabalho, tarefas, responsabilidades. Agora, à espera do fim próximo, me dou pela primeira e última vez um trabalho dignificante. E até que estou gostando da experiência. Se pudesse voltar atrás, muitas coisas faria diferente em minha vida. Acho que é este o sentimento que os bons católicos devem nutrir na hora da morte – o arrependimento. Mas não é exatamente isso o que sinto, mas um vazio indelével, eloquente mesmo. Talvez preenchido quando der o ponto final, a conclusão, pela primeira vez na minha vida, de alguma coisa.
Acendo mais um cigarro e abro a última cerveja da geladeira, a saideira de minha existência. Lá fora, pânico, gritos, sirenes, buzinas, estrondos. Aqui dentro, uma paz indefectível. E a certeza de que estou próximo do ponto fin

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