Pesquisar neste blog

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A filha do livreiro


A vida pode ser difícil; a rotina demasiada cansativa; a realidade muito chata e angustiante. O que parece ser paradoxal nisso tudo é o interesse exagerado que o "real" suscita nos sujeitos deste início de século. Câmeras de segurança, webcams, reality e talk shows etc.  dariam conta da realidade tal qual ela é. As imagens e os discursos provenientes destes reprodutores da realidade seriam inequívocos, dando ao indivíduo que a eles tem acesso a certeza de não estar sendo ludibriado, de estar a par do que realmente acontece, sem qualquer intervenção que maculasse a realidade, cada vez mais presente e perseguida. Talvez a maior crítica que as telenovelas sofram, por exemplo, é o fato de muitas vezes não serem fidedignas à realidade, causando no telespectador certo repúdio. Mas as telenovelas não são obras de ficção, sem um compromisso direto e restrito à realidade? E por que uma de suas maiores críticas é justamente o fato de serem ficção? Não se trata de um documentário, que, por sua vez, por mais que tenda a se ater aos fatos empíricos, é também construção discursiva, seleção do que será ou não filmado, enfim, em alguma instância também ficção. Haveria, no mundo de hoje, extremamente midiatizado e imagético, um certo vilipêndio pela ficção e uma adoração crescente pelo real? Ou ao menos por uma reprodução deste real, seja qual for?
Com a literatura acontece a mesma coisa. O número de (auto)biografias, de publicação de diários, entrevistas, cartas corresponderia a esta verdade alheia à ficção. As autoficções não seriam, seguindo este raciocínio, uma tentativa de sobrevida da ficção, mesclando-a com a realidade empírica do autor? Bernardo Carvalho já admitiu que escreveu Nove noites, romance autoficcional, porque percebeu, após o insucesso de vendas de seus dois primeiros livros, que o público estava interessado em histórias baseadas em fatos reais. Se de fato isso acontece, penso ser um duplo prejuízo para o público: primeiro porque estaria se privando, voluntariamente, da ficção; segundo porque, em sua busca por uma "verdade realista", continuaria sendo "enganado" por uma construção discursiva, que fugiria, de qualquer modo, da realidade estabelecida e entraria no universo ficcional.
Diante deste cenário, Marcela Tagliaferri presenteia seus leitores com um romance que problematiza a dicotomia ficção versus realidade de maneira extremamente bela, inteligente, instigante e, sobretudo, (meta)ficcional. Em A filha do livreiro, seu primeiro romance, ela cria de início uma cidade fictícia, Libertazul, "lugar de leitores", onde a história, ou histórias, se desenvolverá (ão). Por ser uma cidade das Letras, portanto, de muitos livros e leituras, há um entrecruzamento entre várias histórias, de maneira a exigir do leitor atenção e cuidado. Este não conseguirá compreender a beleza do romance se espera por uma narrativa linear, de simples compreensão. Há um embaralhamento que ocorre primeiro porque o romance vai sendo escrito à medida que a leitura avança; segundo porque há mais de uma narradora e, portanto, o romance se desenvolve sob mais de um ponto de vista.
Para complexificar mais o romance, a própria autora junta-se à narrativa: "A mulher despertou o ódio de alguém quando fechou a livraria. No entanto, Felício não faz ideia de quem seria capaz de cometer um assassinato no lugar. Liga a máquina, abre o pen drive, encontra o arquivo A filha do livreiro, clica duas vezes e assim que o Word entra, Felício começa a ler." Dentro da investigação ficcional em busca do conteúdo do livro, que poderia revelar o assassino de Ana Clara, deparamo-nos com a metaficção, pois é o próprio romance de Tagliaferri que vai sendo, página a página, sendo escrito. Talvez seja fácil decifrar a presença da autora na sua própria ficção, pois, como anota a narradora, "nada melhor do que entrar na beleza de um história e viver com os personagens, o tempo para e a vida ganha o gosto do inesperado, da dor, da alegria, das formas poéticas." Enquanto na busca incessante pelo real, somos apenas espectadores, usufruímos da "realidade" sem a mínima oportunidade de nela intervir, na ficção - e Marcela faz isso muito bem - isso não é só possível, é também poético e necessário. É a partir da ficção que conseguimos viver realidades mais prazerosas e mais lúdicas, de maneira a suportarmos, em nosso dia a dia, o caos e o tédio do cotidiano.
Há algumas hipóteses que justificariam um narrador cada vez mais preocupado - ou talvez sem saída - em misturar ficção e realidade, mas não cabe entrar em seara tão complexa e teórica aqui. O que importa é que em Libertazul "a ficção abria novas possibilidades que ela experimentara." Com o embaralhamento de ficção e realidade, na construção de um romance inteligente e instigante, estamos diante de uma realidade outra, muito mais fascinante porque lírica e (meta)ficcional. Em A filha do livreiro, "a realidade assumiu a fantasia, e só existia ela ouvindo a voz da princesa." Não à toa, o romance dialoga com Gabriel Garcia Márquez, com Guimarães de Grande sertão: veredas, e com As mil e uma noites - enfim, um romance que rende um tributo à (meta)ficção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário