Pesquisar neste blog

sábado, 20 de abril de 2013

Vésperas

Escritor. O que vem a ser isso? Luís Fernando Veríssimo já declarou ter sentido dificuldade em explicar qual era a profissão de seu pai Érico no colégio para seus colegas. Outra dificuldade comum é associar o escritor a ficcionista, como se críticos literários, ensaístas etc. também não o fossem. Ou não seriam estes também escritores, já que escrevem textos? Flávio Carneiro, com uma produção tanto ficcional quanto ensaística e teórica, chama atenção para isso, afirmando que a escritura de textos não ficcionais é uma tarefa de escritores igualmente.
Durante um bom tempo, esta segunda categoria de escritores se preocupou em afirmar que, na produção ficcional, a figura autoral pouco ou nada importava para a compreensão da obra de ficção, que teria apenas no texto toda a chave necessária para a compreensão e deleite da obra. Estava decretada a morte do autor. Qualquer alusão à vida empírica do escritor ficcionista ou possível biografismo deveriam ser descartados para uma leitura séria que se quisesse fazer de um texto literário. O texto bastava em si, deveria ser suficiente para o leitor, em uma palavra, era indelével.
De uns anos para cá, porém, o interesse pela figura autoral vem crescendo, em parte por causa do retorno do real, de acordo com Hal Foster, e em parte devido à nossa sociedade extremamente midiatizada. Como pensar a morte do autor se ele está presente em programas de televisão, em lançamentos de livros, em feiras literárias, em palestras em universidades etc.? E não é só isso. Mesmo antes do chamado retorno do autor, das autoficções cada vez mais presentes na literatura contemporânea, havia uma espécie de fascínio pela figura autoral. Roland Barthes já reconhecia o interesse dos leitores em associarem pessoa e obra; já aceitava um fetichismo em torno do autor; já o admitia, enfim, presente em biografias.
Adriana Lunardi, em Vésperas, seu segundo livro, dedica cada um de seus nove contos a nove escritoras já falecidas. São elas Virginia Woolf, Dorothy Parker, Ana Cristina César, Colette, Clarice Lispector, Katherine Mansfield, Sylvia Plath, Zelda Fitzgerald e Júlia da Costa. Mas não se trata de um livro biográfico, ao contrário. Por mais que cada uma das nove escritoras tenha realmente existido, legando-nos obras expoentes da literatura, aqui elas são "apenas" personagens de uma muito bem construída ficção. Quem nunca teve a curiosidade, ou pôs-se a imaginar, o que teria acontecido nos últimos instantes de vida de um ídolo, literário ou não? Para isso, talvez, o segredo seja controlar a imaginação, como dito no conto Kass, referente a Katherine Mansfield. Ou, quiçá, dar-lhe asas, de modo a entregar-se à criação, ao onírico, à fantasia. De um modo ou de outro, Lunardi reinventa, no universo ficcional, a vida de cada uma das "biografadas". 
A escolha dessas autoras, contudo, a meu ver, não é arbitrária. Selecionando as escritoras citadas, Adriana cria para si uma espécie de filiação, do mesmo modo que a narradora do conto Clarice assim justifica a visita ao túmulo de Lispector: "Sobretudo, tinha ido ali para me filiar." Assim, a construção, por parte do leitor curioso e fetichista, de uma identidade autoral em Adriana Lunardi passa pelas escritoras-personagens de seu livro, tornando-se também, em certo sentido, uma escritora-personagem. Isto não significa que haja em Vésperas uma referência autobiográfica, muito menos que se trate de autoficção, mas isso não impede que o leitor, tal qual a autora, crie sua própria ficção a partir do interesse natural que há por quem escreveu o texto.
Se o formalismo e o estruturalismo ainda estivessem em voga, talvez fosse correto afirmar que a vida das escritoras não tivesse muita importância, apenas suas obras, estas sim imortalizadas. Mas uma vez que agora elas são personagens de uma obra de ficção, Adriana Lunardi conferiu-lhes a imortalidade que porventura alguém pudesse duvidar ou ao menos relativizar. Um trecho exemplar encontra-se no conto Minet-Chéri: "Sinto inveja, por um segundo, de não ser mortal e experimentar o gozo das coisas condenadas. Em tudo antever um fim, e ainda assim desperdiçar; desdenhar cada segundo com uma autoridade que só nos deuses se justificaria. Em meu destino não há riscos. Fui criada para durar, viver um tempo que não finda. Esse é o mal de que padecem as criaturas inventadas pelas criaturas." Esta é a fala da narradora do conto, Claudine, personagem de Colette. Apenas a personagem de ficção seria imortal, mas, agora, Lunardi confere imortalidade também à Colette, transformando-a igualmente em uma personagem de ficção. Por outro lado, contudo, o narrador do conto Victoria, referente a Sylvia Plath, complexifica: "Eis uma razão para comemorar quando se chega aos sessenta anos e não se está inscrito na eternidade." Aqui, o narrador ficcional ressente-se de não chegar à eternidade enquanto Sylvia Plath a alcançou. Poderíamos dizer, portanto, que no campo da ficção tudo é possível, para além de teorias e academicismos muitas vezes insuficientes para dar conta do que seja a ficção?
O escritor. O que vem a ser isso? Para Mario Vargas Llosa é tão-somente uma pessoa que tem uma necessidade premente de alimentar sua solitária. Eu acrescentaria que hoje o escritor transformou-se em personagem de si mesmo, no sentido de que, enquanto personalidade multimidiática, acaba performando-se e dando a conhecer ao público uma identidade de um eu que se quer conhecer, que se quer dar a reconhecer como escritor. Adriana Lunardi, em Vésperas, denota alimentar incessantemente a sua solitária, pois, não fosse assim, ela teria sido incapaz de escrever livro tão bonito, inventivo, ficcional - dando-se a conhecer através de uma filiação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário