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terça-feira, 9 de abril de 2013

Domingos sem Deus

Para que serve a literatura é uma pergunta feita exaustivamente e que encontra respostas diversas. Há quem diga que não serve para nada; para outros não passa de entretenimento; há quem responda que é uma maneira de retratar a realidade; alguns afirmam que ela serve para criar realidades outras; e o número de respostas   possíveis se estenderia. 
Parece impossível, no entanto, falar de literatura sem mencionar a dicotomia realidade e ficção. Há estudiosos, como Costa Lima, por exemplo, que afirmam não ser literatura uma obra calcada em aspectos meramente referenciais. Para este autor, para ser literatura tem que ser ficção. Herbert Marcuse, em outra direção, diz ser antiarte um texto que apenas reproduz a realidade estabelecida, sem a transformar. Esta questão é bastante complexa e polêmica e parece não ajudar a pensar a literatura praticada na atualidade. Sim, literatura é ficção; sim, a ficção criada neste século apresenta, no universo anteriormente estritamente ficcional, resíduos autobiográficos e referenciais sem deixar de ser, também, ficção; sim, há hoje um retorno do real, para usar uma expressão de Foster, invadindo a produção ficcional, problematizando conceitos outrora estanques. 
Um tipo de produção textual que mescla ficção e referencialidade, notadamente autobiográfica, é a chamada autoficção. Não é este o caso, porém, de Luiz Ruffato, avesso a este tipo de exposição textual, apesar de concordar que há reminiscências suas em sua obra, mas diluídas. Autor com um projeto literário definido - a criação de uma pentalogia que dê conta dos últimos cinquenta anos da vida proletária no Brasil -, tem em Domingos sem Deus o quinto e último volume da série.
Segundo o próprio Ruffato, seria improcedente utilizar-se do romance - gênero burguês por excelência - para escrever sobre o trabalhador urbano, sobre a classe média baixa. A saída encontrada foi o antirromance, composto por várias histórias autônomas mas interligadas. A ausência de um protagonista e a retomada de personagens em outros momentos representam a contento a realidade a que se predispôs denunciar, pois como ele mesmo escreveu, em "Até aqui tudo bem! (como e porque sou romancista - versão século 21)", "para levar à frente um projeto de aproximação da realidade do Brasil de hoje, torna-se necessária a invenção de novas formas, em que a literatura dialoga com as outras artes (...) e tecnologias (...), problematizando o espaço de construção do romance, que absorve onivoramente a estrutura do conto, da poesia, do ensaio, da crônica, da oralidade..."
A série Inferno provisório seria então um conjunto de cinco antirromances realistas, a dar conta de uma realidade pouco explorada em nossa literatura - a do trabalhador urbano, do proletariado. Para Ana Cláudia Viegas e Franciele Queiroz, "a constituição de tal projeto apresenta peculiaridades, pois, apesar da noção de 'unidade' que a ideia de projeto traz em si, sua composição é estilhaçada, formada por restos de histórias, aglomeração de narradores, ausência de uma perspectiva definida, decomposição de memórias, desdobramento de personagens e muitas simultaneidades na representação de uma 'realidade'". Haveria melhor maneira de tornar verossímil e trazer à luz personagens cotidianamente anônimos, sem qualquer espécie de holofote? A insignificância dessa classe no nosso dia a dia iria de encontro à ausência de um personagem principal - este simplesmente não há e o que há é a incidência da atenção não sobre um personagem, mas sim sobre toda a coletividade, até então calada e ignorada. 
Uma excelente estratégia de Ruffato para legitimar um novo realismo, pautado na performance, é a utilização de uma linguagem bastante oral, muito próxima do que se costuma ouvir na "realidade". Este procedimento não empobreceu seu texto, ao contrário, estetizou a linguagem literária de maneira a dar verossimilhança ao seu projeto, libertando-se do vínculo burguês próprio do romance. Para Vilém Flusser, em seu livro Língua e realidade, "para ser, a realidade precisa parecer". E é o que ocorre em Domingos sem Deus. O leitor não se sente alheio à realidade ali ficcionalizada, como um espectador com acesso às informações via um narrador ideologicamente descompromissado com a causa proletária, ou, na melhor das hipóteses, através de um narrador, mesmo que simpatizante à causa, estranho àquela realidade; o leitor se percebe "dentro" da história e, assim, o realismo performático se mostra mais eficiente.
Ao nutrir o desejo de ser escritor, Ruffato se questionava sobre o que escrever e sobre como escrever. Para ele, seria mais do que natural utilizar como leitmotiv a vida operária, pois esta era já sua conhecida. Haveria aqui, pois, uma aproximação biográfica entre autor e obra, apesar de sua obra não ser nem autobiográfica nem autoficcional strictu sensu. Surge como recurso a utilização de um narrador que narra, de certa maneira, as experiências empíricas autorais, o que não deixa de ser uma afirmativa um tanto quanto tautológica em certo sentido. 
Tema (vida operária) e forma (o antirromance) definidos, restava-lhe uma última pergunta: para que escrever? Para Ruffato, "escrever é compromisso". E é compromissado que ele se arvora a um novo tipo de realismo, com a finalidade de mudar o mundo, ou ao menos lançar um olhar crítico para a realidade que se quer transformar. Em suas palavras, "a Arte serve para iluminar caminhos: e se ela modifica o indivíduo, ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo". À pergunta inicial para que serve a literatura, este escritor mineiro, oriundo de uma classe social silenciada em nossas letras, responderia simplesmente que a literatura serve para conscientizar seus leitores a tal ponto que estes se capacitariam a mudar o mundo. Para finalizar, deixo em suspenso outra pergunta: haveria arma melhor do que a arte e a literatura para tal ambição?

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