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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Exercício

Como ser pai? Esta era a pergunta que ele sempre se fazia. Suas boas intenções eram inequívocas, mas, como dizem, delas o inferno está cheio. Repetir os erros de seu pai ele não queria, já aprendera na própria pele quão doloridos eles foram. Não, isso não. Tudo menos isso. Mas então? Até onde ir? Até que ponto o zelo se transforma em tirania? O carinho em sufocação? A liberdade em desleixo? O afeto em grude? Ele não sabia. E se martirizava, autoinfligia-se penas horrorosas. Queria ser pai, o melhor, o mais amado. Mas não sabia como. E dia após dia continuava tentando, errando e, às vezes, acertando. Quando errava novos erros, ao invés de se sentir grato por não repetir velhas faltas, culpava-se por estar a ampliar o seu repertório de imperfeições. Mas não desistia, isso nunca. Certo ou errado, o amor que sentia pela prole era enorme. Seu filho seria um homem de bem. Haveria de ser doutor, ou arquiteto, quiçá músico. Mas músico erudito, ou violino ou flauta. Mas, depois de sonhar com o agora jovem solista no Municipal, ele afligia-se com a falta de opção que roubava de seu filho. E parava de sonhar. Seu filho seria o que bem entendesse. Mesmo que a profissão fugisse dos ideais de grandeza desejados para o rebento. Mas como fazer isso? Até onde ir? A partir de que ponto ele estaria abusando da infância do menino?
O menino, alheio às inquietações paternas, continuava crescendo. E perguntando. E pedindo. E se negando. E discordando. E malcriando. O pai desesperava-se. Sabia que precisava cuidar e educar seu filho, mas desconfiava de que precisava afrouxar um pouco a corda, deixá-lo ser criança. Às vezes, comer besteira não é o fim do mundo; às vezes, ver tevê até tarde pode ser saudável; às vezes, fugir da recomendação de impropriedade dos programas da televisão não desvirtua a honra de ninguém para toda a eternidade. Ele sabia de tudo isso. Mas o que ele não sabia era a medida, era o exato momento entre a perda de limite e a rédea muito curta. Até que ponto ele podia dizer "não"; em que momento ele podia dizer "sim".
E foi depois de mais de um dia de angústia que ele se deitou para dormir, extenuado. Pela primeira vez na vida, fitando o escuro do teto, ele chamou Deus. Sem jeito, é verdade, mas lera em algum lugar que não há jeito certo ou errado para se falar com Ele. Então pediu. Queria, mais do que ser um excelente pai, ser amigo do filho, ou melhor, queria que o filho fosse seu amigo. Precisava quebrar a barreira intransponível que havia entre a autoridade e a diversão, entre a seriedade e a leveza. Lembrou-se de seu pai. Homem sempre ocupado, metido em gravatas e em telefonemas. Não tinha lembrança do pai em nenhum evento da escola, em nenhum momento importante da sua infância. Sua expectativa era sempre companheira da frustração. Chorou. Então pediu, copiosamente, que Deus lhe ajudasse, que lhe mostrasse como fazer diferente, que acordasse um novo pai. Não mais amoroso, pois isso era impossível. Nenhum pai do mundo tinha tanto amor para dar quanto ele. Só não sabia como. Adormeceu. Não sonhou com nada. Acordou.
No quarto ao lado, parecia um anjo dormindo, seu filho. À espera dele acordar, pôs-se a refletir no tempo. Como era tudo diferente. O mundo de sua meninice era outro, completamente diverso. Agora, sentia-se anacrônico. O mundo tecnológico no qual se via vivendo era uma incógnita. Tudo muito diferente. A televisão e o rádio agora são aparelhos obsoletos. Ouvia seu filho falar de notebook e de um monte de sigla para a qual ele desconhecia a serventia. Outros tempos, outro mundo. Foi ao espelho. Viu as rugas, testemunhas de sua aflição. Lavou o rosto e, neste momento, parece que Deus, de alguma maneira inexplicável, resolveu conceder-lhe a graça. O mundo já não era mais pesado. A vida agora era bela, vívida. Ele, finalmente, sem saber nem como nem por quê, como num passe de mágica, abandonara toda a rigidez com a qual sempre vivera e com a qual tentava criar seu filho. Ele desceu de seu posto de severidade, de "senhor eu sei o que é melhor pra você", e, simplesmente, igualou-se ao filho. Percebeu que, já que não teve seu pai por perto quando criança, seria criança de novo, mas agora ao lado do filho. Substituiu a diacronia pela sincronia. Viveria feliz.
Toda essa transformação se deu assim, de uma hora pra outra. Não havia nada a temer. Havia tudo a viver. Toda uma infância. Mas o mais legal de tudo isso é que ele não seria um "amiguinho" de seu filho, necessitando de um adulto que supervisionasse tudo, oferecendo a responsabilidade ausente da vida infantil. Não. A responsabilidade havia, estava consigo. Agora, ele continuava a ser responsável, mas não chato. Era como se fosse uma criança mais experiente, que já conhecia as brincadeiras e já aprendera onde havia espinhos, a maneira mais fácil de subir e descer das árvores, por exemplo. E ele, brincando junto, ensinava seu filho, divertindo-se também. Aprendendo também. Se deu conta, depois de muito tempo, que ser adulto é muito chato, que os adultos não entendem nada, não conseguem ver o elefante dentro da jiboia, como desenhou o pequeno príncipe. O grande barato da vida é ser sempre criança, alheio ao mundo insosso e descolorido dos adultos. É dar importância ao que realmente tem importância - e isso os adultos não sabem fazer. Somente as crianças.
E, de mão dada com seu filho, de volta a sua meninice, seguiu sua vida, agora mais divertida, engraçada, fantástica, onírica, real, artística. E foi feliz.

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