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domingo, 22 de julho de 2012

Febre do Rato

Uma vez um amigo meu me disse que todo filme em preto e branco era um bom filme. Não posso dizer que ele tem razão, mas Febre do Rato, longa de Claudio Assis, é extraordinário! O filme suscita no expectador atento inúmeros caminhos interpretativos, várias possibilidades de leitura. O primeiro que me ocorreu - e eu não sou tão atento assim - foi qual a importância que a poesia tem hoje em dia, se é que há alguma utilidade para ela - e aqui podemos estender esta leitura para outras manifestações artísticas. 
Considerada por muitos como uma arte elitista, para iniciados, raras vezes quem escreve poesia fora do circuito literário mais "academicista" e já inserido no mercado editorial consequirá algum público que a valide. Aparentemente, a poesia tem se restringido, porque tem perdido sua oralidade, ao mundo do livro que, naturalmente, necessita de um retorno fincanceiro para suas editoras. Mas este não é o único problema enfrentado. Para aquele que consegue romper os limites impostos pelo mercado e insere-se, bem ou mal, no mercado, outro precisa ser encarado: o da qualidade. Por ser uma arte para poucos, é como se a pergunta "quem você pensa que é para escrever poesia?" rondasse os [novos] poetas. Tenho a impressão (que pode ser equivocada) de que para ser poeta é necessário pertencer a um clube seleto.
Em evento recente organizado por Ítalo Moriconi na UERJ, um poeta perguntou quem lê sua poesia se motoristas de ônibus não a leem. Para ele, num país de iletrados, a poesia circularia entre a crítica especializada e a Academia, com alguns poucos "membros" admitidos no "clube" - estes sim deveriam ler sua poesia e, assim, proporcionar um diálogo e uma divulgação. Bem, em Febre do Rato, o poeta que declama oralmente sua arte advém de um local de onde menos se esperaria a presença de um poeta, de acordo com a ideia equivocada dela ser uma arte para poucos e de que não é qualquer um que a compreende. E aí me veio a segunda pergunta, ainda no cinema: para gostar de poesia é necessário compreendê-la? Valendo-me de minha experiência pessoal, asseguro que não entendo nada de cinema, mas fui capaz de sair da sala de exibição ontem com a certeza de ter assistido a um filme muito bom. Do mesmo modo que pouco - para não dizer nada - entendo de artes plásticas ou de música, mas isso não me impede de apreciá-las. Ainda na faculdade de Letras, um professor me disse que era possível escrever um livro inteiro com base em um único poema. Sim, podemos. Mas para se gostar de poesia é premissa que haja um conhecimento erudito que a esclareça? Por que a arte precisa ser explicada? E explicada para quem? Por quem? 
E aí me veio a questão principal suscitada pelo filme. Como então pensar o sujeito que escreve poesia hoje? E o que a lê? Ou a ouve, mesmo sem compreendê-la, apreciando-a? Uma alternativa, que é bastante restrita, seria apenas considerar que, mediante a dificuldade de fazer parte do "circuito", o poeta procuraria outros meios de divulgar seu trabalho, seja na internet, seja oralmente, seja nas ruas em pequenos e artesanais periódicos. Sim, isso é possível e acontece, principalmente se considerarmos os blogs, mas ainda não equaciona o problema.
Sentado no cinema, me veio à cabeça, ainda durante a exibição, que o filme tratava do sujeito fraturado conceituado por Costa Lima, em Mímesis: desafio ao pensamento. Uma cena, dentre várias, que problematiza a impossibilidade do sujeito hoje se representar, é a cena em que Eneida xeroca várias partes de seu corpo e, posteriormente, monta, com os fragmentos, um outro eu, uma representação, nem por isso menos "verdadeira". A Eneida é, inclusive, sob meu ponto de vista, uma personagem-chave, na medida em que ela é a primeira pessoa a não aceitar a poesia do poeta. Até então, sua poesia era lida, ouvida, distribuída e, sobretudo, aceita no espaço de sua circulação. Considerando que o sujeito, hoje, precisa do receptor para se constituir enquanto tal, a partir do momento que Eneida rejeita a poesia ela rejeita concomitantemente o sujeito poeta, que passa a não mais se reconhecer e a não mais ser reconhecido pelos demais personagens. Inicia-se uma busca para que o poeta encontre em Eneida uma resposta para si próprio. Mas, mesmo que a jovem Eneida se rendesse aos encantos do poeta e, principalmente, à sua arte, isso poderia atribuir-lhe um eu, não "o" eu. Mimeticamente, não somos mais únicos, cartesianos; somos muitos, plurais. A teorização de Costa Lima sobre a mímesis é por demais complexa para ser aqui mais bem aprofundada, por isso utilizo suas palavras: "O sujeito fraturado é não só um sujeito que não unifica e comanda suas representações senão que é visto no exercício de sua dupla função: apresenta e recebe; produz e suplementa". Ou, mais à frente: "Assim, o sujeito fraturado implica o lançar-se apresentativo, que, por não poder se cumprir sem a apresentação de quem se lança, traz consigo uma marca ou mancha de representação".
Outra característica importante que o filme apresenta é que o poeta traz consigo uma anarquia que deveria ser imanente à obra de arte. Que ela também frequente a Academia, mas a ultrapasse, atinja horizontes mais largos e extensos, públicos vários. Achei bastante interessante, já no fim do filme, a manifestação feita no dia da independência, afinal, o sujeito não é mais nacional, como o era. Não dá mais para pensar a poesia - ou a arte em geral - com padrões nacionalistas, em busca de uma unidade nacional não mais existente, pelo menos a meu ver.
Uma última observação, para finalizar: bastante atenção aos versos declamados pelo poeta e às falas em geral e bom filme. 

2 comentários:

  1. Texto muito, muito, muito bom, Bruno. Abre várias frentes de interpretação, como o filme.

    O filme é bárbaro: dioniso na veia, demonio no meio do reDEMOinho, poesia oral, vocal, irracional e hiperracional.

    Abraço axé!

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