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sábado, 14 de julho de 2012

História da vida banal - parte I

Bem, pertenço ao gênero masculino. Gosto de futebol, de mulher, de ver televisão. Gosto de conversa de botequim, de pornografia e de falar besteira. Mas também sou sensível. Até de poesia eu gosto, e aprecio, de um modo geral, manifestações artísticas. Chego a sentir algumas caracterísitcas próprias de minha mulher, que está grávida de novo. Ela não acredita em mim, acha que estou debochando, mas contra fatos não há argumentos - é como se eu estivesse grávido também -, a psicologia me entende e me apoia. Sou um ótimo pai e o melhor marido que eu consigo ser - ajudo nas tarefas domésticas, dou importância ao bem-estar coletivo etc. etc. Para resumir esta minha carta de apresentação, sou, confesso, um ogro, mas um ogro com um acento não tão agudo. Mas, ainda assim, um ogro.
O parágrafo acima foi sugerido pelo meu advogado, de modo a me contextualizar perante o tribunal e a facilitar minha absolvição. Ontem, depois que as crianças dormiram e eu, ogramente, me vi a sós no quarto com minha mulher, cheio de más intenções na cabeça, ela me faz a [fatal] pergunta: "Você não reparou em nada não?" Nesse momento um frio correu pela minha espinha, tentei controlar a respiração, agir naturalmente, vasculhando as gavetas do meu cérebro onde deveria estar registrada alguma coisa nova que eu deveria ter percebido. Já nervoso, gaguejando, enquanto ela, em pé, me encarava com ódio nos olhos, impaciente com minha hesitação, arrisquei.
- Suas unhas estão lindas, você achou que eu não ia perceber? Mas sempre que pensava em falar a respeito alguma coisa acontecia, o telefone tocava, desviava minha atenção e acabei esquecendo.
- Gostou mesmo da cor?
- Claro! Estão lindas, super bem feitas!
Considerando-me um ogro, enunciar essas frases verossimilmente faz de mim um concorrente ao Oscar.
Por uma fração de segundo, respirei aliviado e voltei aos meus pensamentos impudicos. Foi quando ela, ainda de pé, ainda me olhando com ódio e menosprezo, disparou:
- Mais nada?
Tive, então, um acesso de tosse nervosa, levantei, fui ao banheiro, à cozinha em busca de um copo d'água, tentando, a qualquer custo, ver nela alguma coisa diferente. Desisti. Me despedindo da noite de luxúria que eu havia planejado, confessei:
- Não, a-amor, não re-reparei em mais nada...
- Pois eu cortei o cabelo e você não faz nenhum comentário!!!!!
Puta que pariu! Um homem, por mais ogro que seja, tem que distinguir um cabelo pré e pós salão de beleza, não tem jeito. E isso é dito inclusive por médicos que prezam pela saúde de seus pacientes. Noite perdida, chutei o balde.
- E o que tem de diferente nele?
- Aqui do lado ele está em camadas, aqui atrás ele tirou o volume, na frente...
Juro por Deus, ou por qualquer outra coisa de maior relevância, aqui perante o tribunal, que eu não percebi diferença nenhuma. Quando eu vou ao barbeiro - nós homens não vamos ao salão -, digo curto e grosso: "Passa a máquina". Simples, prático e rápido. Para que minha mulher exigisse de mim a visualização de alguma diferença, ela teria que voltar careca!! Agora, perceber camadas laterais e perda de volume atrás? Fala sério! Argumentei, me desculpei, disse que ela tinha toda a razão do mundo, que eu era um merda de homem, que ela estava linda. Gastei todo o meu repertório, mas de nada adiantou. Em um minuto saía do quarto com meu travesseiro e um lençol na mão em direção ao sofá.

Um comentário:

  1. Excelente! Interessante o fascínio que causas com a tua própria identidade de escrita! Não vejo a hora de ler a parte II.

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