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domingo, 17 de outubro de 2010

O menino*

O menino tem de perto sua vida seguindo-o paralelamente, qual sombra vivendo à luz do sol. Levado pelo cansaço, vencido pelo entusiasmo. Seu corpo vermelho destaca-se na cor cinzenta do mundo que salpica brandas gotas d'água. O passo adiante entre a vida e o menino, intervalo de tempo, intertexto de espaço. O menino esbarra em sua vida no meio do caleidoscópio.
O sonho do menino - desafasagem espaço-temporal - é sempre aliada às mais velhas tradições, todas elas, juntas, numa crise epilética. O desespero surdo não percebe seus próprios gemidos. A vida permance espreitando o menino.
O menino acordou. Traz em si sangue quente, adrenalina e fadiga dando suporte ao caos. Caos de todos os dias, todos os momentos, diversas variações. E a vida do menino? Permanece desconectada da realidade, atira inconsciente em realidades... Qual seguir? Qual dançar?
Traveste-se a cada esquina encontrada na grande avenida, o menino. Seu rosto, ao mesmo tempo, sorri da janela do ônibus, de cima dos viadutos, de dentro das casas, em todos os espelhos para todas as direções. Cruzam-se corpo e mente, vermelho e cinza, o rapaz. Chega a bifurcação. Menino e vida. Rapaz e retorno. A avenida.
Segue no espaço, dança no tempo, o fim da linha. Anoitece. A vida desaparece, esquece do menino, dá lugar ao homem. Sem seu espião o menino brinca. Agora é ele que segue a vida. A avenida. A toda esquina uma face, um sorriso, sorrindo para a vida alheia do menino, que brinca despreocupado na longa avenida. Sua vida? Foi despistada na septuagésima-segunda esquina. Segue perdida, a vida.
O menino, agora, dá corpo à sua trajetória vermelha. Todo o espaço percorrido, do sempre para adiante, transforma-se num rito psicodélico. É vermelha a aveniida que distende seu comprimento, converge sua largura e recebe uma altura inconstante. Tórridas gotas d'água agridem o menino. O tempo é um ponto fixo. O espaço é uma frase sem sentido. Com uma das mãos ele pega o relógio. Com uma careta ele devolve-o ao tempo. Estático.
Despe-se a cada esquina encontrada na alucinógena avenida, o menino. Seu corpo é um só bloco compacto, material de pura racionalidade. E sua vida, ainda perdida? O rubro de sua matéria torna-o demoníaco, deformado. Percebe então o mundo de ponta-cabeça, a face avessa às mais velhas tradições.
Escorre por entre seus dedos toda a sua irracionalidade; a lógica de sua razão leva-te à mais tórrida obsessão. Efemeridade. Faculdade ineficaz da memória. O menino vive anacronicamente no mesmo espaço abstrato: a avenida, suas esquinas, seus desvios, sua morfina.
A charada da bifurcação: o momento da divisão/criação da possibilidade de germinação, o paradoxo, enfim, desvendado. Contato com feiticeiros, herdeiros de conservadoras diferenciações. As esquinas sucedem. O tempo multiplica-se num espaço imutável. O caminho vai ao encontro da verdade oracular. Fim.
E por entre sombras e desvios, atalhos e ataques, tempos e espaço, razão ou não, tradição e variação, a vida do menino observa-o com um sorriso sarcástico de quem ainda tem o que dizer (mal-dizer).
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* Escrito em 1995 e publicado em 2004.

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