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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Auto(cine)ficção

Uma vez, na UERJ, Luiz Costa Lima disse que, quando criança, seu filho lhe perguntou o que era ficção. A partir dessa inusitada pergunta, Costa Lima buscou compreender melhor o tema e partiu para suas pesquisas. Atualmente, na literatura, a autoficção é uma modalidade textual bastante em voga. Autores como Bernardo Carvalho, Silviano Santiago, Marcelo Mirisola, Clarah Averbuck e outros escrevem ou já escreveram textos que mesclam referências autobiográficas e narradores ficcionais. Se procurarmos situar a literatura contemporânea em um contexto sociológico/ antropológico, perceberemos que é natural a indecidibilidade entre o que é real e o que é ficção. Na nossa sociedade imagética e midiática, é cada vez mais fácil a apreensão do real. Desse modo, penso eu, diante da facilidade com que o real pode ser apreendido - pelo menos ilusoriamente -, o homem do século XXI sentiria vilipêndio pela ficção, pelo faz de conta, interessado que está pelo real. Não à toa realitys shows e talk shows atingem elevados índices de audiência na mídia televisiva; e autobiografias, memórias, correspondências, entrevistas, autoficções são um nicho editorial seguro; sem falar, claro, dos blogs.
Nessa direção, A falta que nos move, longa baseado em uma peça homônima, de Christiane Jatahy, encontra eco. Os atores, que também são os roteiristas do filme, atuam com seus nomes próprios, isto é, no filme, eles estariam representando a si mesmos, à espera de alguém que viria para o jantar, para só então conversar sobre um filme no qual eles trabalhariam. O filme de Jatahy seria antes uma espécie de making of de um filme que ainda estaria para ser rodado, com os atores despreocupados com um roteiro ficcional e sim vivendo suas próprias identidades. Mas mesmo que o espectador aceite as vivências dos atores como legítimas, empíricas, "reais", daria para acreditar que as filmagens não foram previamente roteirizadas e que as experiências vividas não seriam ficcionais?
Com um quê teatral bastante acentuado - talvez por ser uma filmagem inspirada numa peça de teatro -, a presença da diretora é explicitada através de recados que ela dá aos atores via celular. O roteiro também é colocado em primeiro plano no momento que ele é consultado, no decorrer do filme, já que está afixado em uma parede. Começa-se, então, mais incisivamente, a se confundirem realidade e ficção. Do mesmo modo que em Nove noites, de Bernardo Carvalho, as cartas de Manoel Perna insistem que o leitor vai entrar em um território onde "a verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates" e que "a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui", em A falta que nos move os atores desempenham esssa função, com falas que questionam a autenticidade de suas ações, lembrando que "a realidade está lá fora". Frases como esta, no filme, ajudam a baralhar realidade e ficção, que confundem-se a tal ponto que o espectador sai do cinema se perguntando até onde vão uma e outra.
Depois de escrever uma dissertação de mestrado sobre Nove noites, hoje me pergunto se não seria ingenuidade demais acreditar que pelo menos uma linha do romance tivesse a pretensão de "escrever a realidade", mesmo que referências autobiográficas indubitáveis estivessem ali contidas. No terreno da ficção, a realidade passa a ser ficcional, por mais documental que ela possa ser. Nesse sentido, A falta que nos move é um excelente exemplo de uma estética que não se contenta tão somente com a ficção, mas procura ultrapassá-la, transcendê-la, mesclar-se, (con)fundir-se para, então, afirmar-se novamente como ficção.
Gravado num único dia, durante 13 horas consecutivas, temos na tela as relações entre os atores Pedro Brício, Mariana Vianna, Cristina Amadeo, Daniela Fortes e Kiko Mascarenhas. As tensões vividas pelos atores-roteiristas indiciam uma preocupação do homem desde sempre, e revelada na pergunta infantil do filho de Costa Lima: o que é ficção?

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