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terça-feira, 10 de julho de 2012

A partir de Sobre o declínio da "sinceridade"

As questões referentes à primeira pessoa sempre se mostraram controversas. Há aqueles que não consideram um texto autobiográfico literatura por serem textos referenciais, demasiadamente vinculados à "realidade"; por outro lado há os defensores da qualidade literária das escritas de si, independentemente de sua relação estreita ou não com dados empíricos. Alheio à polêmica e interessado numa pesquisa sobre a história da sinceridade, Walter Benjamin certa vez propôs a Horkheimer um estudo comparativo entre as Confissões de Rousseau e o Diário de Gide. A diferença entre os dois tipos de texto - uma autobiografia e um diário - não se mostraria um empecilho, num primeiro momento, pois ambos, em maior ou menor grau, explicitariam a subjetividades e a sinceridade de seus autores. E é este o ponto de partida para o excelente estudo de Carla Milani Damião, Sobre o declínio da "sinceridade": filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. A autora não se preocupou em polemizar tratar-se ou não de literatura os escritos autobiográficos, mas preferiu trabalhá-los sob à luz filosófico-literária. Iniciou, portanto, seu trabalho com a reflexão à qual se propôs Benjamin, que não pôde levá-la a cabo, pois em 1940, um ano depois do convite feito a Horkheimer, se suicidou para fugir da perseguição nazista.
Para Rousseau, que escreveu suas Confissões de maneira a expurgar seus pecados e buscava, também, um reconhecimento póstumo, a verdade tinha mais a ver com os seus sentimentos, e não necessariamente com os fatos. Segundo ele, "mentir sem proveito nem prejuízo para si nem para outrem não é mentir: não é mentira, é ficção". A questão que envolve o caráter ficcional de um texto, seja ele qual for, é igualmente polêmica ainda hoje e sobre a qual a autora não se detém, mas existiria alguma autobiografia que fosse de fato fiel à vida do autobiógrafo, sem flertar com a ficção? Em todo caso, Carla Milani lembra que sinceridade e obra literária já foram consideradas inseparáveis.
A questão em torno da ficcionalidade de um diário ou autobiografia, se é possível o sujeito manter-se sincero enquanto escreve sobre si, pode ser mais bem pensada ao se analisar os diários de Gide. Isso porque ele mantinha vários diários, sobre variados temas - viagens, a respeito de suas obras, sobre a Segunda Grande Guerra. Escreve a autora: "Em suas obras, os próprios personagens possuem diários e algumas narrativas são construídas com base no diário das personagens. Nessa prática da escrita de múltiplos diários, o interessante é notar que não são obras publicadas postumamente, como costumam ser os diários, mas faziam parte da relação de Gide com o leitor, amigos e inimigos". Neste caso, sua prática diarista de alguma maneira se confundia com sua literatura, dificultando a crença numa sinceridade neles contida. Além do mais, os diversos diários sobre assuntos plurais nos remete para um sujeito que há muito não é mais uno, explicitando a fragmentação do sujeito moderno em vários eus. 
E serão múltiplos eus que serão trabalhados em seu segundo capítulo dedicado a Ecce homo, de Nietzsche, que seria uma genealogia do próprio filósofo. Mas em que sentido? Para Nietzsche, todo texto filosófico também é um texto autobiográfico. Se assim é, como pensar exclusivamente Ecce homo como sua autobiografia, sem o diálogo com sua produção antecedente? Carla Milani Damião considera Ecce homo não como uma autobiografia, mas como uma antiautobiografia, no sentido de que o imodesto Nietzsche trafegaria na contramão da modéstia apregoada por aqueles que se dedicaram a escrever sobre si.
Como a autora se predispôs a um trabalho filosófico-literário, não poderia ficar de fora de seu livro uma análise de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Benjamin já dizia que toda grande obra ou inaugura um novo momento ou o ultrapassa. E parece ser unânime a consideração de que esta volumosa obra de Proust é um destes casos. Quem diz "eu" neste texto? Trata-se de um romance? Uma autobiografia? Memórias? Se admitirmos se tratar de uma autobiografia, como confiar na memória do narrador? E esta memória seria suficiente para assegurar sua sinceridade? Inúmeras outras questões poderiam se somar a estas. Para Proust, falar de si deveria corresponder a falar de nós, daí o narrador Marcel que aparece Em busca... não ser necessariamente o autor, mas "qualquer" Marcel. Assim, Proust transcende o eu empírico e o eleva a uma categoria universal, mesmo porque, para ele, Em busca... é um romance.
Este percurso feito por Carla Milani Damião encerra-se com chave de ouro na última análise de seu livro: Infância berlinense por volta de 1900, de Walter Benjamin. Como o autor de estudos paradigmáticos em torno do narrador, preocupado em diferençar experiência de vivência, se comportará ao escrever a sua própria autobiografia? Segundo a autora, trata-se de um antissubjetivismo de Benjamin justamente porque para ele o sujeito é coletivo na história, não individual. Com raízes no materialismo histórico, a sinceridade só poderia aparecer com a plenitude da experiência. E, para Benjamin, vivemos na era da ausência do intercâmbio de experiências. Infância berlinense... também seria uma antiautobiografia porque, segundo a autora, há a retirada consciente do sujeito do foco narrativo. Em suas palavras, "o pressuposto de Benjamin de expor, antes de tudo, um sujeito histórico e não a história de um indivíduo demonstra que sua estratégia era ter como meta Berlim e o século XIX, e não constituir a identidade de um outro como a criança Walter Benjamin".
É óbvio que, por mais que seja amplo, desenvolvido e fundamentado este excelente livro de Carla Milani Damião, ele não esgota a questão da sinceridade, da subjetividade e da identidade. Lendo-o, me ocorreu que os blogs constituem-se em excelente corpus para um estudo a este respeito. Não tenho interesse em afirmar, como afirmou em entrevista ao jornal Rascunho, recentemente, Fernando Monteiro, que os blogs seriam um desserviço literário, sem nada a dizer. Conheço vários blogs muito bons, com conteúdo - certamente não é o caso do meu, sou apenas um diletante. Mas parece-me que, para além da questão, a meu ver infantil e improfícua, de que os blogs são isso e aquilo, nada acrescentam etc., que deve haver um estudo em torno da questão da individualidade e da subjetividade que se apresentam com o novo (nem mais tão novo assim) canal que se abriu para o exercício literário.

4 comentários:

  1. Bruno, o tema é bastante polêmico dentro e fora da Academia. Definir "Literatura" torna-se cada vez mais complexo. E cada grupo a define como melhor ela se adequa a determinados interesses.
    Particularmente, acredito na "invenção de si", na "multiplicidade dos afetos" que somos, tal e qual Nietzsche abordou, não só especificamente em Ecce homo, mas noutras também. Portanto, creio que mesmo (e também) na autobriografia (gênero que se propõe, a priore, "colado" ao "real") há invenção, (re)corte, torção e intervenção no ordinário... logo "pode ser" sim Literatura. Fora disso tudo é real, mas o que é o real senão uma perspectivação?
    No entanto, há que se verificar o valor estético de cada texto. Afinal, nem tudo que se vende como Literatura, de fato, é.
    Sei que estou dizendo e desdizendo coisas, mas é assim que penso sobre este assunto. Não li o livro que você belamente resenhou aqui, deu vontade de ler. Parece-me que ela apresenta como "sinceridade" e literatura foram se descolando ao longo do tempo. Isso, para mim, remonta à antiga e caduca ideia de "literatura apenas como missão (de nacionalidade) romântica". Analisar Benjamim parece ser indicial desta mudança de ângulo.
    Seja como for, a biografia ou a confissão de um Benjamin, pela contribuição ao entendimento da obra de um importante autor, é muito diferente, em termos de valores teóricos e estéticos, da confissão ou da biografia do joãozinho da esquina. Será? Concordo que "para Proust, falar de si deveria corresponder a falar de nós".
    Outrossim, o Silviano é um ótimo leitor do Gide autobiográfico, talvez seja importante você dar uma olhada nisso. No modo como o Silviano ler.
    Mãos à obra, meu amigo. o trabalho está só começando.

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    1. Penso como você, Léo. A meu ver, não é possível, por exemplo, ler as Confissões de Rousseau - livro que inauguraria o gênero autobiográfico - como exemplar da sinceridade do autor - se entendermos por sinceridade a verdade dos fatos. Hoje estou bastante inclinado a concordar com o Gustavo Bernardo de que tudo é ficção. Restaria saber se é boa ou má ficção, esteticamente falando, que é outro tema polêmico, haja vista nossa última conversa na UERJ sobre o tema. Quanto ao livro propriamente, penso que a autora não se preocupou em diferençar literatura de verdade, mas em traçar uma linha evolutiva sobre a sinceridade, ou seja, sobre as escritas do eu, utilizando os escritores mencionados.

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    2. Pois é. Mas se tudo é ficção, como, a priori, também penso, definindo "ficção" como uma "organização" (caótica, pessoal e metafórica) da vida (real), tudo também é real, já que todo "real é ficcional". há um nó que não se resolve, a meu ver, teoricamente. mas também não sei se nós, enquanto inteletuais e pensadores de teoria, devemos achar o desatar do nós, mas, ao invés, alimentar o nó. se o "real é ficção" a "ficção é real", é no meio, no jogo estético, teórico e metafórico que me coloco para pensar. ao menos tento. só consigo ler os novos realistas, os hiperrealismos... "a vida ao vivo" como recortes, escolhas. Portanto, tentativas (ficcionais) de dar conta de algo infotografável: a vida.

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    3. "Todos os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé". Esta citação de Lejeune ilustra bem esta questão, aparentemente insolúvel. Agora, que narrativas são essas, eis a questão.

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