Pesquisar neste blog

sábado, 14 de agosto de 2010

Dois anjinhos

Agora estão dormindo. Parecem dois anjinhos. As coisas mais lindas do mundo. Mas estiveram acordadas durante o dia. Transformaram a casa num pandemônio. A promessa que fizeram, logo após o almoço, de que se comportariam e me deixariam estudar à tarde não durou cinco minutos. Trancado no escritório, tentava em vão me concentrar. Mas a concorrência era desleal. Não eram dois anjinhos. Eram duas máquinas de fazer barulho. E valiam-se de toda sorte de brinquedos para produzir ruído. Impossível me concentrar. Decidi apelar para minha autoridade paterna. Fui até o quarto - o QG onde se concentravam as traquinagens - e, sem dizer nada, lancei um olhar intimidador. Pausa no barulho. Senti-me como um general que tem domínio sobre a sua tropa. Respirei fundo, orgulhoso, e dei meia-volta, marchando de volta ao escritório. Sentado à mesa, porém, recomeçam os sons variados. Bola na parede, xilofone e flauta de brinquedos numa sinfonia surreal, a televisão gritando, reclamando atenção das desordeiras, risos, brigas e... choro. Novamente o general bate a tropa em revista, busca saber o que aconteceu. Dadas as devidas explicações, muda-se a tática. Ao invés da intimidação paterna, uma conversa, olhos nos olhos, sobre a importância da obediência. Vocês não estão proibidas de brincar, mas façam isso sem tanta algazarra, papai precisa muito ler um texto nada simples. Em vão. As crianças estavam diabólicas. Na mesa, uma xerox de "Activo e reactivo", do Deleuze. À medida que a leitura avançava (?), lembrava-me da Solange, minha professora de inglês que tenta me fazer ler na língua de Shakespeare. Fico muito cansado depois da aula porque faço um esforço hercúleo para entender isso, digo regularmente a ela. A dificuldade agora se repetia, mas em meu idioma. Acho que não tenho muita capacidade de abstração, penso lendo Deleuze. Exausto. Lá fora, no quarto, silêncio inesperado. Suspendi a respiração, como a acurar os ouvidos. Nada. Ouviria uma agulha cair no chão tranquilamente. Isso não era bom sinal. Já deveria saber que duas crianças, em silêncio, estão tramando alguma coisa. O que os olhos não veem o coração não sente, pensei, querendo me convencer de que nada acontecera. Li mais algumas linhas. A respiração ofegante. Uma gota de suor descendo pela têmpora. Não me contive. A responsabilidade paterna falou mais alto. Levantei-me. Abri a porta com cuidado. Lancei um olhar para fora. Nada vi. Dei um passo. Outro passo. Sem motivo, parecia que era eu quem estava fazendo arte e que a qualquer momento seria descoberto e posto de castigo. Percebi um rastro de objetos abandonados pelo chão em direção à cozinha. As desordeiras certamente se refugiaram por lá. Mas cozinha não é lugar de criança, raciocinei. Pé ante pé, me esgueirei para surpreendê-las. O general pegaria a tropa com as calças na mão. O silêncio persistia. O que elas estarão fazendo?, perguntava intrigado. Quando finalmente criei coragem e entrei na cozinha, supreendi minhas princesinhas sentadas com duas bonecas rodeadas por toda a sorte de doces da casa - sorvete, balas, chocolates, biscoitos. Diante da minha atonicidade, me disseram, com a maior simplicidade do mundo: - Papai, chegou bem na hora, elas se comportaram e a gente prometeu que se elas se comportassem a gente ia deixar elas comerem o que quisessem. Quer comer doce com a gente? Diante dessa explicação tão natural e tão infantil, o que fazer a não ser me sentar também no chão da cozinha e brincar de ser criança com meus anjinhos?

2 comentários:

  1. Não tem como não ler e se enternecer, por mais general que você se faça.... rs
    Cara, sorte a delas em serem suas filhas, sorte do pai general, pelos anjinhos.
    Três anjinhos. :)
    Delícia te ler.

    ResponderExcluir
  2. Espetacular.
    Depois sou eu que sou talentosa. Fala sério.

    ResponderExcluir